Monday, April 25, 2022

O Menino do Dedo Verde, de Maurice Druon (resenha)

Esta resenha foi publicada na página nove da edição 7740 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 21 de abril de 2022. Eu mesmo revisei o texto; devido à falta de tempo hábil para escrever um texto inédito, apenas peguei uma resenha que havia escrito para o Good Reads em 2019 e acrescentei algumas informações, usando como gancho para a publicação o fato de Maurice Druon ter nascido e morrido em abril.  

O clipe de Tunic (Song for Karen), do Sonic Youth, tem alguns trechos que citam O Menino do Dedo Verde, comentou comigo uma ex-namorada, nos já distantes, muitos distantes, anos 1990. Nunca me esqueci disso e em julho de 2019 vi um exemplar da obra, uma maltratada edição de 1979, num brechó/sebo que estava arrecadando recursos para animais de rua. Comprei imediatamente e, concluída a leitura, o doei para uma biblioteca livre; a moça que estava responsável pela lojinha me disse, na ocasião, que é um clássico da literatura infantil. A introdução informa que Maurice Druon é um dos compositores da letra do hino antifascista Le Chant des Partisans. Outra boa referência. Druon, aliás, apesar de ter sido membro da Resistência contra os nazistas na França durante a Segunda Guerra Mundial, teve vida longeva e morreu num abril como este, poucos dias antes de fazer 91 anos, em 2009. O livro é uma fábula que quase imperceptivelmente remete ao também clássico O Pequeno Príncipe, mas é uma leitura que flui melhor e é mais encantadora. A história tem certo viés religioso, como nota o tradutor, Dom Marcos Barbosa. No entanto, não há proselitismo. Incomoda-me apenas que Druon esqueça-se que mudou o nome da cidade onde Tistu, o protagonista, mora, volte a usar o nome antigo no meio da trama e lembre-se do novo nome no final do livro, como se nada tivesse acontecido. Não é possível que esse anacronismo seja uma falha de tradução, mas seria interessante conferir isto em edições mais recentes, pois o livro ainda está em catálogo no Brasil. Há uma certa idealização da alta burguesia que também me causa certa estranheza, embora esta seja retratada até que criticamente, com o passar da história. Assim que acabei a leitura fui rever o clipe do Sonic Youth e percebi que as referências ao livro são breves, porque o tema da música na verdade é a vida de Karen Carpenter e o roteiro do vídeo foca-se na biografia dela, mas ao mesmo tempo são explícitas e bem encaixadas.

Daniel Souza Luz é professor, jornalista, escritor e revisor




Wednesday, April 20, 2022

Indesculpável

Este conto foi publicado na página nove da edição 7737 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 14 de abril de 2022. Apenas traduzi e adaptei para a realidade brasileira um conto que escrevi originalmente em inglês, tendo em mente os rednecks racistas do sul dos EUA, em 30 de outubro de 2007, embora só o tenha publicado no meu blog de textos em inglês em 24 de janeiro de 2008. Eu mesmo revisei o texto, cujo teor sarcástico foi muito influenciado por letras do Jello Biafra, do Dead Kennedys, e um pouco pelo Bukowski. 

Pouco antes da devolução de seu dinheiro, Jerry Garcia estava pensando em suicídio. Ele nunca teve nenhuma chance, ele não conseguia parar de pensar nisso. Um perfeito perdedor. Os pais eram doidivanas. Eles gastaram tudo em drogas e álcool. Mas eles também eram hippies, então o garoto cresceu em uma atmosfera de amor e foi batizado com o nome do líder do Grateful Dead. Eles apoiaram muitos de seus desejos quando ele era um pirralho. Quando a loja de bicicletas faliu, os dois fugiram e não deram a mínima para os credores. Afinal, o sonho não acabou. Ele não podia culpá-los. Eles não reagiram bem quando ele se rebelou na esteira dos hormônios adolescente, ironicamente desejando ser um cara comum e disciplinado, e negaram todas as suas acusações. A mãe comprou tudo o que ele desejava. O pai fez tudo o que Jerry queria. O resto do dinheiro foi investido em bebida, maconha e ácido, mas eles nunca se importaram com posses. Hippies, no verdadeiro sentido da palavra. Quando sumiram, tudo ficou para Jerry, que não podia ser cobrado no nome deles. Felizmente, a comarca já não tinha regras e costumes medievais naquela época, assim como uma minoria de lugares naquele interiorzão esquecido. O juiz estipulou um novo lar para o garoto abandonado. Ele foi adotado com seu Nintendo, brinquedos, bicicleta, raiva e medos. Na adolescência, ele só sabia ler e alguma coisa sobre matemática graças à mãe, mas nunca foi à escola, apenas vagueou pelo bairro e se divertiu muito. Era o final dos anos oitenta. Os anos noventa foram um pesadelo. Seus novos “pais” o colocaram na escola. Jerry nunca foi um saco de pancadas, apesar de sua falta de sociabilidade, por causa de sua condição física. Mas, em uma cidade pequena, ele teve que estudar com crianças pequenas, desde o início. Mesmo que isso fosse mais humilhante ainda, ele reabriu a bicicletaria e jurou honrar todas as dívidas. As pessoas do entorno começaram a apadrinhá-lo, por causa de seus esforços. Uma criança com senso de dever. Ou um tolo que pensa que o sistema feudal ainda é legal. Depende do ponto de vista. Quando ele acabou de se tornar independente, depois de anos de lucro zero, apenas pagando as dívidas e tendo o básico para se alimentar, o banco fez uma bagunça com sua conta. Um erro de sistema, eles alegaram. Bem, tudo bem, mas eles não corrigiram o erro, e até, sutilmente, tentaram culpar Jerry pela desistência. Ele quase desistiu e fechou as portas. Então, em uma espécie de milagre, ele viu uma carta debaixo de seus cobertores. Sua mãe – sua mãe biológica – lhe enviou uma carta. Rosa, que o adotara, não consegue disfarçar o ciúme, mas colocou a carta na cama dele escrupulosamente. Maria estava morando na estrada. Ela apenas relata banalidades que soam e cheiram como a chegada de um zéfiro açucarado em uma fábrica de suor. Essa boa sensação durou algum tempo. Logo depois, ele se tornou amargo e mais irritado do que nunca. Seu pai apenas diz um oi. Eles viajam pelo país fazendo biscates e viraram as costas por anos. Eles que se fodam. Ele voltou a trabalhar e trabalhou duro. O banco, finalmente, liberou seu dinheiro com um bônus, para evitar problemas legais. Hoje Jerry é um exemplo de cidadão de bem. Seus ray-bans e bigode tornaram-se o rosto do terror para os hippies da cidade. Como PM, ganhou todo o respeito que sempre julgou merecer.

Daniel Souza Luz é professor, escritor, jornalista e revisor


Mural em homenagem a Jerry Garcia, do Grateful Dead, pintado por Claire Bain em 1999 no The Warfield Theater, em San Francisco, Califórnia. Foto tirada por Franco Folini em 15 de agosto de 2012, postei aqui via licença Creative Commons. 





Monday, April 11, 2022

Parque Industrial, de Pagu (resenha)

Esta resenha foi publicada na página oito do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em nove de abril de 2022. Eu mesmo revisei o texto e incluí uma informação na última frase, aqui neste blog, a qual não consta na publicação do jornal, para fins de maior clareza: a de que é uma pena que Pagu não tenha escrito mais romances, pois foram poucos, mas ela escreveu muitos artigos na imprensa, contos, uma autobiografia e um livro de ensaios político-ideológicos. Também corrigi erros de concordância verbal e nominal que deixei passar na publicação no jornal. 

Patrícia Rehder Galvão, a Pagu, nasceu na vizinha São João da Boa Vista. No entanto, foi uma verdadeira cidadã do mundo: mais do que cosmopolita, teve uma vida de aventuras e uma militância política que lhe valeu torturas inomináveis na mão da polícia política do ditador Getúlio Vargas. A primeira vez que li a respeito dela não foi na escola, mas sim na revista de HQs underground Chiclete com Banana, do quadrinista Angeli, quando ainda era adolescente: ela foi também uma das pioneiras dos quadrinhos no Brasil, com os personagens Malakabeça, Fanika e Kbelluda. No artigo sobre a HQ dela também se mencionavam as viagens para o exterior, o trabalho como jornalista que a levou entrevistar Sigmund Freud e as sementes de soja que trouxe para o país, introduzindo esse cultivo no país. Essa história de vida impressionante proporcionou-lhe experiência suficiente para escrever Parque Industrial ainda muito jovem, aos 21 anos. No começo deste ano a Companhia das Letras o relançou, devido às comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 – Pagu foi musa dos modernistas. Agora é um momento mais apropriado para escrever a respeito, sem Ruy Castro poluindo o debate a respeito do modernismo com discussões bizantinas. Esta edição de Parque Industrial manteve o prefácio de 1994, escrito por Geraldo Galvão Ferraz. Notei que já o havia lido; com certeza foi reproduzido à época em algum caderno cultural dos grandes jornais brasileiros, que eu lia avidamente – deixando os livros de lado, desgraçadamente. Se eu os lesse, saberia que Galvão estava, em parte, equivocado: o panfletarismo da obra, um defeito comum na arte, é neste caso uma qualidade e não uma mácula. Afinal, trata-se explicitamente de um romance proletário. A trama captura a atmosfera do Brás, bairro operário de São Paulo, na virada dos anos 1920 para 1930, registrando amores, a luta por melhores condições de trabalho, as contradições decorrentes disso e incursões na vida burguesa de bairros mais aquinhoados. Pagu tece uma colha de retalhos bem urdida que entrelaça habilmente os destinos de personagens de origens muito variadas. Os defeitos do livro são muito outros: embora a linguagem seja moderna até hoje, com frases curtas e precisas, há uma profusão de personagens que exigem muito a atenção do leitor para que se lembre quem é quem, pois a profundeza psicológica deles e suas características não são bem trabalhadas – ou seja, uma característica de um romance realista do século 19, especificamente O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Há certo esquematismo que leva a algumas falhas de lógica interna: num mundo sem celulares e com telefones inacessíveis à população explorada, uma operária que estava em casa já sabe da demissão de outra e até já lhe arrumou emprego antes que ela saísse da fábrica. O panfletarismo, às vezes até moralista, embora a autora e personagens critiquem a moral burguesa, só pesa a mão no capítulo Paredes Isolantes e ao final. Ainda assim, não é nada ingênuo, como afirma Galvão: os exploradores são também predadores sexuais, salvando-se o personagem Alfredo, inspirado em Oswald de Andrade, e há descrições cruas de estupros. Aliás, é muito difícil escrever sobre sexo sem cair na vulgaridade risível e Pagu o faz muito bem ao retratar relações consensuais. É uma pena que ela não tenha escrito muito mais romances, pois além desse, publicado com o pseudônimo de Mara Lobo, há apenas mais um, feito em parceria com Geraldo Ferraz.

Daniel Souza Luz é professor, jornalista, escritor e revisor





Tuesday, April 05, 2022

Longe das Aldeias, de Robertson Frizero (resenha)

Esta resenha foi publicada na página oito do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em dois de abril de 2022. O texto foi revisado por mim mesmo, no afogadilho, então talvez precise de correções posteriormente.  

Este livro é de 2015 e foi lançado pela editora Dublinense; no entanto, foi relançado no fim de 2021 e distribuído como brinde no clube de assinaturas TAG também no final do ano passado. Frizero é um escritor gaúcho que talvez seja apresentado a um público maior devido a isso. Tomara, a se julgar por essa obra. Longe das Aldeias é um romance, como destacado na capa, e é curtíssimo. Ou, talvez, devido a isso, uma novela. De qualquer forma, categorizações à parte, é um primor de concisão que traz uma história sufocante cuja intensidade é ressaltada no corte preciso. A trama revela-se aos poucos. Temos uma família de emigrados que vive no Brasil; isso é óbvio, mas não é dito em momento algum em que lugar estão. Apenas sabe-se que atravessaram o oceano para viver num país tropical, daí o porquê do batismo do livro, mas é fácil depreender que vivem entre brasileiros pelos nomes e rumos dos namorados de uma das personagens centrais. De onde vieram e quando também é impreciso, porém, também é possível inferir que se trata da Europa. Trata-se de algum lugar destruído por uma guerra no qual a intolerância religiosa levou a um genocídio. Seriam judeus à época da Segunda Guerra Mundial ou mulçumanos quando da fragmentação da antiga Iugoslávia seguida das cruentas guerras subsequentes? Só se sabe que seus inimigos são cristãos. De qualquer forma, os horrores, se não os mesmos, são sempre incomensuráveis e quase incompreensíveis, dado que religiões em geral pregam a congregação entre os homens, mas, obviamente, suas estruturas verticalizadas favorecem o autoritarismo e o ódio a quem é diferente. Da família, sabe-se que duas irmãs aportaram na nova terra, uma delas com o filho recém-nascido, Emanuel. O fio condutor é tecido por ele, que tenta entender quem é a figura fantasmagórica do pai, Josif, e como os demais parentes pereceram. A mãe, Marija, tem uma doença debilitante e a progressiva perda de contato com a realidade leva-a com frequência a alucinar com o passado e a guerra. Ela e irmã, Mirna, jamais contaram em detalhes o que aconteceu, embora cultuem a memória da família. Resta a Emanuel, que vai estudar História na faculdade, juntar pontas soltas dos relatos da progenitora e da tia com a leitura de livros sobre a política bélica de terra arrasada. O leitor experimentado logo adivinha quem é o pai e como Emanuel foi concebido – ele só não percebe logo por que é muito jovem e é um terror difícil de ser encarado, embora ele o intua. Isso, no entanto, em momento algum ofusca o impacto da história. A mãe é aparentemente uma figura opressiva, mas tanto o protagonista quanto o leitor vão compreendendo suas razões e as intricadas mentiras que construiu. Plasmando o rebento a seus inimigos e mesmo à religião deles, embora não abandonando a sua, ela recobra a humanidade. Há muito lirismo em meio à brutalidade, o pendor poético do autor não vem à tona apenas nos poemas que ele concebeu como se fossem de Emanuel, que os lê para a mãe adoentada. A narrativa, portanto, não é seca, mas sim adornada com passagens sutis que jamais edulcoram nada, apenas lembram-nos que certa fantasia é o que tornam o intolerável algo suportável, dando algum sentido à vida.       

Daniel Souza Luz é professor, jornalista, escritor e revisor