Patrícia Rehder Galvão, a
Pagu, nasceu na vizinha São João da Boa Vista. No entanto, foi uma verdadeira
cidadã do mundo: mais do que cosmopolita, teve uma vida de aventuras e uma
militância política que lhe valeu torturas inomináveis na mão da polícia
política do ditador Getúlio Vargas. A primeira vez que li a respeito dela não
foi na escola, mas sim na revista de HQs underground Chiclete com Banana, do
quadrinista Angeli, quando ainda era adolescente: ela foi também uma das
pioneiras dos quadrinhos no Brasil, com os personagens Malakabeça, Fanika e
Kbelluda. No artigo sobre a HQ dela também se mencionavam as viagens para o
exterior, o trabalho como jornalista que a levou entrevistar Sigmund Freud e as
sementes de soja que trouxe para o país, introduzindo esse cultivo no país.
Essa história de vida impressionante proporcionou-lhe experiência suficiente
para escrever Parque Industrial ainda muito jovem, aos 21 anos. No começo deste
ano a Companhia das Letras o relançou, devido às comemorações do centenário da
Semana de Arte Moderna de 1922 – Pagu foi musa dos modernistas. Agora é um
momento mais apropriado para escrever a respeito, sem Ruy Castro poluindo o
debate a respeito do modernismo com discussões bizantinas. Esta edição de
Parque Industrial manteve o prefácio de 1994, escrito por Geraldo Galvão
Ferraz. Notei que já o havia lido; com certeza foi reproduzido à época em algum
caderno cultural dos grandes jornais brasileiros, que eu lia avidamente –
deixando os livros de lado, desgraçadamente. Se eu os lesse, saberia que Galvão
estava, em parte, equivocado: o panfletarismo da obra, um defeito comum na
arte, é neste caso uma qualidade e não uma mácula. Afinal, trata-se
explicitamente de um romance proletário. A trama captura a atmosfera do Brás,
bairro operário de São Paulo, na virada dos anos 1920 para 1930, registrando
amores, a luta por melhores condições de trabalho, as contradições decorrentes
disso e incursões na vida burguesa de bairros mais aquinhoados. Pagu tece uma
colha de retalhos bem urdida que entrelaça habilmente os destinos de
personagens de origens muito variadas. Os defeitos do livro são muito outros: embora
a linguagem seja moderna até hoje, com frases curtas e precisas, há uma
profusão de personagens que exigem muito a atenção do leitor para que se lembre
quem é quem, pois a profundeza psicológica deles e suas características não são
bem trabalhadas – ou seja, uma característica de um romance realista do século
19, especificamente O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Há certo esquematismo que
leva a algumas falhas de lógica interna: num mundo sem celulares e com
telefones inacessíveis à população explorada, uma operária que estava em casa
já sabe da demissão de outra e até já lhe arrumou emprego antes que ela saísse
da fábrica. O panfletarismo, às vezes até moralista, embora a autora e
personagens critiquem a moral burguesa, só pesa a mão no capítulo Paredes
Isolantes e ao final. Ainda assim, não é nada ingênuo, como afirma Galvão: os
exploradores são também predadores sexuais, salvando-se o personagem Alfredo,
inspirado em Oswald de Andrade, e há descrições cruas de estupros. Aliás, é
muito difícil escrever sobre sexo sem cair na vulgaridade risível e Pagu o faz
muito bem ao retratar relações consensuais. É uma pena que ela não tenha
escrito muito mais romances, pois além desse, publicado com o pseudônimo de Mara Lobo, há apenas mais um, feito em parceria com Geraldo Ferraz.
Daniel Souza Luz é professor,
jornalista, escritor e revisor
No comments:
Post a Comment