Este ensaio foi publicado na página sete da edição 7791 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em nove de julho de 2022. Em relação ao texto publicado no jornal, apenas aperfeiçoei a redação da última frase.
Neste
ano em que se comemorou, meses atrás, o centenário da Semana Moderna de 1922,
os escritores modernistas, mesmo de segunda geração, voltam à tona. É o caso de
Antônio de Alcântara Machado, mais conhecido como o autor de Brás, Bexiga e
Barra Funda. O que me fez querer ler este livro, no entanto, foi uma crônica do
Ivan Angelo que li numa Vejinha (Veja SP) em 2018, enquanto aguardava uma
consulta médica do meu pai em Sampa, e na qual Angelo elogiava muito a obra. Como
já havia lido o conto Gaetaninho, que é ótimo, numa das coletâneas Para Gostar
de Ler, é um livro que antes mesmo de ler já me trazia ótimas memórias. E que
decepção. Não podia deixar de lê-lo neste ano, então peguei uma edição
destinada para vestibulandos do final do século passado na biblioteca da
Caldense. Começa mal, os primeiros contos são enfadonhos; nem as invencionices
modernistas na linguagem os salvam. Depois melhora, mas ao mesmo tempo que as
habilidades de narrador de Alcântara Machado se destacam, os preconceitos dele
se avultam. E não é só o elitismo, mas como bem nota a professora Cely Arena
nos textos complementares, há racismo. Ela ainda tem dúvidas se é do narrador
ou do autor, mas para mim está bem claro que Alcântara Machado era tão racista
que fazia Monteiro Lobato parecer um destacado abolicionista. Todos os
personagens negros são muito mais caricaturais do que os imigrantes italianos
que ele já retrata com um viés pitoresco – Parque Industrial, da Pagu, é também
uma obra modernista e faz um retrato muito mais interessante do Brás e dos seus
trabalhadores, até porque é marcado pela alteridade. Além disso,
características negativas são pespegadas aos personagens negros sem nenhum
pejo. Qual a razão para essa falta de escrúpulos a não ser racismo? E não vou
nem entrar no mérito de como ele se refere aos indígenas. Não sabia que essa
edição também trazia junto o livro Laranja da China (possivelmente porque desde
os anos 1970 as duas obras são editadas juntas sob o título Novelas
Paulistanas); é muito superior, embora muito menos famoso, e salva a leitura
desse volume escolar, pois nele Alcântara Machado já era um narrador mais
seguro e usava recursos estilísticos características do modernismo com mais
parcimônia e criatividade. Infelizmente, os estereótipos racistas continuaram
presentes. Como os seres humanos são complexos e contraditórios, há matizes que
também revelam qualidades à frente do seu tempo: um conto como Carmela, que a
professora Arena entende que retrata a falta de mobilidade social da mulher
imigrante, também pode ser entendido como um elogio à liberdade sexual
feminina. No entanto, apesar da linguagem ser moderna e fluída, muito
influenciada pelo Oswald de Andrade, o livro é pra lá de anacrônico, mesmo para
a época em que foi escrito, menos de três décadas após a abolição da
escravatura. Isso dá uma pista de como o racismo estrutural deveria ser
naturalizado na elite política a qual Alcântara Machado pertencia. Essa edição
é para um vestibular de 1999; se àquela época, no posfácio, já se criticava o
racismo e o elitismo do autor, hoje creio que a grita seria tão forte que a
obra seria retirada da lista de leituras obrigatórias. Não seria imerecido,
embora seja um autor que precise ser lido, tal como Lobato, até para se
entender os mecanismos dos preconceitos que insinuam-se em narrativas.
Daniel Souza Luz é jornalista, escritor, revisor e professor
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