Este ensaio foi publicado na página 7 da edição 7796 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 16 de julho de 2022. Trata-se de uma reflexão que fiz originalmente em 2006 e que decidi atualizar, ampliando muito o texto, além de aperfeiçoá-lo.
Uma questão que tem
me interessado, ao tomar contato com obras de décadas atrás que não têm
reedições acrescidas de fortunas críticas e novos posfácios (mas deveriam, até
porque há efemérides que as favoreceriam), é refletir sobre como as novas
gerações de leitores as recepcionariam, no caso de uma revalorização dos
autores. Expressões e passagens que passavam despercebidas outrora hoje causam
certo estranhamento, isso quando não se descobre que são explicitamente
preconceituosas. Os cancelamentos são motivados, muitas vezes, por causas
justas, tisnando a reputação de autores. Não é algo que deva ser
superdimensionado, no entanto. Há escritores que fazem da má reputação sua fama,
como é o caso de Charles Bukowski, que a explicitava em seus contos, muitos dos
quais autobiográficos. Não há cancelamento que o atinja ou a Céline, um colaboracionista
dos nazistas na Segunda Guerra que jamais li, mas que continua sendo reputado como
um dos titãs da literatura francesa, apesar de seu envolvimento com os nazis
não ser segredo. E, na verdade, não há novidade nesta questão do cancelamento,
a não ser o termo. De tempos em tempos, mesmo depois de mortos, escritores, ao
menos os que foram tidos como bússolas morais do seu tempo, têm o caráter posto
à prova. Em 2006, por exemplo, li uma
reportagem interessante, assinada por Kátia Mello, na revista IstoÉ: um
jornalista alemão reuniu na correspondência de Ernest Hemingway evidências de
que o escritor matou 122 soldados do Eixo durante a 2ª Guerra Mundial, época em
que se alistou no exército dos Estados Unidos. A reportagem abre com uma
consideração de que o fato abala um mito da esquerda. Para mim, isto não
deveria surpreender ninguém ou abalar coisa alguma. Ele ajudou os lendários
documentaristas Joris Ivens e Roman Karmen a registrar os horrores da Guerra
Civil Espanhola; o documentário foi bancado por intelectuais norte-americanos
de esquerda que estavam preocupados com Franco e chegou a ser visto pelo
presidente Roosevelt. No entanto, quem leu atentamente Adeus às Armas sabe
perfeitamente o quanto Hemingway é frio em relação à guerra, embora o livro
permita vislumbrar também uma leitura pacifista. A prosa dele é quase
insensível, seca e sem grandes insights, exatamente o inverso da
escrita de Henry Miller, para citar apenas outro escritor norte-americano que
perambulou pela Europa naquela época de efervescência literária. Miller
vagabundava em Paris enquanto Hemingway lutava contra fascistas na Espanha, e
isso, claro, reflete-se na forma como escrevem. Embora o vazio das mortes sem
sentido seja o momento no qual Hemingway concentre a força da sua escrita nesta
obra, em que justamente a frieza produz os momentos de mais alta densidade
literária, é patente que ele as considera inelutáveis em uma guerra. Adeus Às
Armas também evidencia que ele possuía uma tendência belicista atávica. Quando o
narrador, seu alter ego, mata um aliado, o faz sem culpa e sequer tece grandes
considerações posteriores a respeito. No entanto, se for verdade os fatos
levantados na correspondência, não deixa de ser lamentável que Hemingway tenha
matado um soldado alemão de 17 anos que tentava escapar do confinamento. A reportagem
cita a atração por combates que Hemingway demonstrou em vida. Não sei o quanto
isso o angustiava ou não, se os assassinatos a sangue frio que ele teria
cometido na prisão – os inimigos estavam cativos, portanto fora de combate –
influenciaram seu suicídio em julho de 1961, mas creio que um passado tão
violento não deixe de ser um fator determinante. Bom ou mau caráter (consta que
ele também traía a esposa, a quem dedicava os livros), ele continua a ser um
dos grandes autores do século passado.
Daniel Souza Luz é jornalista, escritor, revisor e professor
Ernest Hemingway em seu barco, 1950. Foto de domínio público, sem atribuição do autor. |
No comments:
Post a Comment