Este ensaio pessoal foi publicado na página 7 da edição 7786 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). Em relação à publicação no jornal, tive que fazer uma correção: troquei as bolas na questão de quem cantava uma canção numa resenha do JAL sobre o Velvet Underground. Ou seja, insisti no que era certo ao comentar um erro dele para ilustrar o meu. Total Inception.
Fanzines foram um alicerce do
underground nos anos 1980 e 1990. Numa época em que a informação era escassa, eram
um meio de circulação de ideias e principalmente de divulgação de cenas
musicais em publicações xerocadas, amadoras, geralmente com colagens – uma
herança do dadaísmo –, mas que eventualmente tinham textos mais bem elaborados
e profundos do que revistas tradicionais. Li inúmeros, fiz quatro (dos quais
somente dois tiveram mais de uma edição), colaborei com vários e vi desde a
valorização do meio pela mídia tradicional até a decadência com a chegada da
internet. No fim dos anos 1990 eles até coexistiram com sites simples feitos
por fanzineiros no finado Geocities, mas neste século toda essa fecunda cena pereceu
aos poucos. Foi quando tive a ideia de fazer um fanzine literário, nos idos de
2003, com contos em vez de resenhas de shows e discos, sem imaginar que seria
assim que zines renasceriam: como suporte em papel para novos escritores que
não têm condições de bancar seus próprios livros em gráficas. Mas é outra era,
em que são vendidos na rua e em saraus, e não há mais um intenso escambo dessas
publicações pelo correio. Também não há mais ligação com o punk rock, que
ressuscitou e reconfigurou o formato, inaugurado na década de 1930 por fãs de
ficção científica, em 1977. Por isso mesmo, foi uma honra ter sido convidado
para colaborar com a segunda edição do Discos que F.. Muitas Vidas, que tem o
título assim mesmo, autocensurado, numa brincadeira do editor Renato Lauris Jr.
Afinal, esse é o único meio em que realmente não há censura. Nos anos 1990,
aliás, grassavam vários quebra-paus nas discussões em textos e entrevistas. A
data desse número dois é de um ano atrás, quando Lauris me pediu um artigo, mas
ele só foi editado em papel recentemente. Ótimo, imediatismo é coisa de redes
sociais. O disco que ferrou minha mente não poderia ser outro: o Never Mind The
Bollocks, Here’s The Sex Pistols. Tanto que cometi um erro imperdoável no meu
artigo: afirmei que C’mon Everybody era cantada pelo guitarrista Steve Jones e
na verdade foi pelo Sid Vicious. Agora entendo por que o grande jornalista José
Augusto Lemos cometeu uma gafe quando escreveu que a Nico cantava uma
música cujo vocal foi feito pelo Lou Reed no primeiro disco do Velvet Underground. Tudo bem, estou em boa
companhia, um dia reedito esse artigo dos Pistols e o corrijo. O zine traz
muitos outros discos clássicos do punk, pós punk, hardcore e grindcore; todos
os textos são deliciosos de ser lidos por quem cresceu colecionando vinis,
fitas e CDs (tenho quase todos os discos comentados nessa edição). Não há
resenhas propriamente, todos os textos são de memórias. O título diz tudo:
discos, nas eras punk, pós punk e grunge/metal, alteravam a percepção de mundo
do ouvinte, o modo como agem e suas relações pessoais. Ora, não é por acaso que
discutia com chefes e que apenas dois deles sejam meus amigos em redes sociais,
afinal odeio autoritarismo, nem é à toa que detesto fachos. Isso, claro, não é
algo restrito à minha geração, com os hippies também foi assim. Em cada memória
desse zine é possível visualizar as cenas, quem é das antigas sabe: um amigo
aparece com uma fitinha cassete misteriosa, um chegado está ouvindo um disco
fora de série na vitrolinha da avó, lê-se sobre uma banda numa revista e se
compra um CD no escuro. E nada mais é como era antes. Em particular, o artigo
do anarcopsicólogo Luiz Henrique sobre uma das obras-primas do Napalm Death, um
ícone do barulho extremo, traz uma lembrança importante: feminismo, direitos
dos animais, luta contra homofobia, quase todas as pautas de hoje, tudo isso já
era discutido à exaustão nas letras e nos fanzines. Não tinha cancelamento na
época, o termo era boicote e isso, como já disse, fazia como que o pau
quebrasse – às vezes, de verdade, não era virtual. Hoje o rock é,
majoritariamente, um lixo conservador. Claro que ainda há bolsões de
resistência e criatividade, mas voltaram para o underground. Antes, se eu via
alguém com camiseta de banda da qual gosto, ia puxar papo. Hoje prefiro passar
longe. As novas gerações que gostam de divas LGBTQIA+ e rap nacional são mais
relevantes agora e escandalizam mais os reacionários. Foram os fãs da Anitta
que ferraram os sertanojos bolsonaristas desperdiçadores de dinheiro público,
não foram os ouvintes do Slayer (aliás, outra banda associada à rebeldia que terminou
mais velhusca do que vovôs fascistas). Roqueiros não incomodam esses pilantras,
que incorporaram as tatuagens e poses. E que fique claro que hoje aprecio
música caipira de fato, inclusive este fanzine começa com uma citação do Zé
Rodrix e do Tavito. De qualquer forma, é muito bom notar que minha geração
venceu e que passamos o bastão. Quem quiser manter a chama viva, pode escrever
para o Lauris e pedir cópias dessa edição e da anterior: revsobrevidas@gmail.com
Daniel Souza Luz é jornalista,
revisor, escritor e professor
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