Monday, December 26, 2022

O caso das bicicletas

Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7906 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 24 de dezembro de 2022. Eu mesmo revisei o texto, portanto alguns errinhos podem ter passado. Em relação à versão publicada ao jornal, corrigi uma palavra que digitei de forma errada (correligionário, que lá saiu como "correlegioniários"). 

No início dos anos 1980 meu pai costumava levar a mim e meus irmãos para andarmos de bicicleta no aeroporto de Poços. No calçamento de pedras entre os jardins era tolerado que nós andássemos nas nossas bicicletinhas com rodinhas. Meu irmão aprendeu a andar sem o apoio das rodas laterais antes de mim; eu aprendi semanas depois, irritado com as provocações dos adultos sem noção que também iam passear por ali. Essas bicicletinhas ficaram pequenas demais para nós uns anos depois. O BMX já era um esporte mais popular, víamos em filmes como ET: O Extraterrestre, pegávamos emprestadas as Caloi Light de alguns amigos para darmos umas voltinhas e queríamos nossas bikes no mesmo estilo para darmos nossos pulos por aí também. Ah, antes que me esqueça: naquelas idas ao aeroporto uma vez meu pai deu carona a um velhinho que desembarcou lá. Eu lembro que ele era simpático e careca. Anos depois meu pai disse que era o Tancredo Neves e que ele ficou com pena do Tancredo chegar lá e não haver nenhum correligionário para recebê-lo. Minha mãe não se lembra disso, nunca conversei a respeito com meu irmão, acho que minha irmã não era nascida e eu era criancinha demais para saber quem ele era ou guardar a fisionomia. Isso deve ter sido em 1980 ou 1981. Depois dessa breve digressão, vamos ao que interessa: pedimos nossas bicicletas de BMX para o Papai Noel. Há fotos de nós andando nessas bikes, Monarks de pneus amarelos, aliás muito pesadas quando comparadas com às Caloi Light, em 1985. Isso significa que foram presenteadas no Natal de 1984. Eu e meu irmão estávamos muito ansiosos para ganhá-las. Não queríamos dormir no horário que minha mãe e meu pai estipularam. Meu pai tentou nos despistar. Imagino que as bicicletas estivessem no quintal do predinho onde morávamos ou algo assim. Ou seja, havia o risco de serem furtadas, provavelmente por isso ele se apressou. Não vimos ele entrando com as bicicletas, mas ouvimos o barulho da porta e de movimentação da sala. Não bastasse isso, o vimos vindo pelo corredor. Foi aí que percebemos, eu e meu irmão, que Papai Noel não existia. Comentamos sobre isso na manhã seguinte. Fiquei me achando muito adulto. Tinha 10 anos. As crianças de hoje não devem ser tão ingênuas.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor

Esta é a minha bicicleta atual. Tenho há uns quinze anos e não pedalo nela há muito tempo. 


Monday, December 19, 2022

Um mineiro em Copacabana

Este artigo, um híbrido de crônica e resenha, foi publicado na página 7 da edição 7901 do Jornal da Cidade (de Minas Gerais/MG) em 17 de dezembro de 2022. Trata-se de mais uma tentativa de recuperar a memória da obra de Mattioli, para que não caia num limbo. Eu mesmo revisei o texto, ou seja, o olhar já cansado pode ter deixado passar uns errinhos. 

Nestas semanas tenho escrito sobre a obra do advogado Marcos Mattioli e sua turma, pois completaram-se dois anos de seu falecimento no fim de novembro. O que me assombra é que muita gente aqui lança livros, a imprensa divulga os lançamentos, mas quem os lê depois? Mais do que isso: quem reflete sobre o que leu e registra isso? Poucos traços da existência dos autores permanecem acessíveis. Em uma busca detalhada na internet não encontrei nenhuma referência ao livro Um Mineiro em Copacabana, do Mattioli. Meu pai tinha um exemplar deste livro, com uma dedicatória datada de 29 de maio de 2016. Seria a provável data de lançamento? O prefácio, da lavra de Antônio Luiz Fontela, é de dois de julho de 2002. Depois pergunto para Fontela se o lançamento do livro demorou mais de uma década, se é uma reedição ou se Mattioli presentou meu pai com o livro muitos anos depois. Devia ter começado por esse, teria uma melhor impressão de Mattioli como escritor – embora ele dissesse que não o era. Talvez tenha sido uma defesa, consciente, para a escrita desleixada, apressada (há uma profusão de conectivos, sem pontuação) e desorganizada. Não é por isso que ele deixava de ser escritor. Já salta aos olhos a capa, belamente ilustrada por Cida Costa Laier, também já falecida. É um prenúncio de um opúsculo, como bem define Fontela, mais refinado. Este livro não é tão problemático quanto Causos e Contos, não há tantos erros de português/digitação, mas também, como sempre, falta revisão e sobra incorreção política. A narrativa é mais caprichada, portanto é uma leitura mais prazerosa. Fui injusto ao dizer que Mattioli não era um narrador habilidoso ao comentar o livro anterior. Aqui ele narra suas memórias com muito mais eficácia, até porque não divide as histórias em vários pedacinhos. Não é um primor, pois os tempos verbais causam confusão ao misturar presente e passado. De qualquer forma, é possível entender perfeitamente seu começo de vida profissional e amorosa em Poços, sua ida para o Rio de Janeiro, as aventuras na capital carioca e arredores, suas motivações e seu retorno. Especialmente pungente é o relato do falecimento de sua mãe, Ophélia, em 2001. E há muitas outras passagens nas quais ele soube contar uma boa história, como a saborosa desventura da Kombi quebrada e dos caroneiros. Em contrapartida, há também um mal que acomete muitas obras de escritores poços-caldenses: a mania de fazer listas. Não se desenvolve a história dessas pessoas, não sabemos como elas foram em carne e osso. É um mero registro histórico que se caracteriza pela incompletude, ao qual é preciso recorrer à memória alheia de quem ainda está vivo ou fazer inferências. Por exemplo, meu pai é citado numa dessas listas de nomes, então agora sei que a casa na qual se reunia a “turma do Bortolan” da qual ele fazia parte chama-se ou chamava-se Recanto das Jaboticabeiras. Como muitas obras de autores interioranos lançadas apenas localmente, há logos de patrocinadores ao fim e informações dispensáveis que parecem tiradas de guias turísticos. O diferencial é que o final conta com uma espécie de coda na qual letras de músicas puxam lembranças de encontros com amigos ou o testemunho apresentações ao vivo de músicos do quilate de Tom Jobim. E que pena que o livro que Mattioli ganhou de JK, com um autógrafo, tenha sido surrupiado.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor








Monday, December 12, 2022

A turma do Bortolan na Cascatinha

Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7896 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 10 de dezembro de 2022. O texto não passou por revisão, portanto, pode ter alguns erros. 

Na semana passada escrevi sobre um dos livros do advogado Marcos Mattioli. Chamado Causos e Contos, nele descobri que meu pai fazia parte da “turma do Bortolan”, assim denominada porque os amigos de Mattioli costumavam reunir-se para churrascos numa casa dele naquele bairro. Nunca soube disso, deve ter sido quando meu pai tinha boa saúde e ele mesmo ia nessas festas. Depois que ele adoeceu no final de 2009 era eu quem o levava e geralmente buscava, mas todas as vezes na casa do Mattioli na rua Corrêa Netto. Como expliquei na crônica anterior, sempre me recusei a participar dessas festas quando fui convidado. Não sou chegado em bebedeiras. Um dia, no entanto, fui parar em uma reunião da turma, bem mais velha do que eu. Meu pai estava ficando turrão e teimava em beber. Teve dois AVCs; o primeiro sem sequelas, o segundo prejudicando consideravelmente sua visão. Ele não podia com álcool, os médicos avisavam constantemente. Mas tudo bem, estou ficando velho e provavelmente teimoso também. Nem devo perceber. Enfim, no finzinho de setembro de 2013, num sábado à tarde, meu pai iria numa das festinhas da turma, mas na Cascatinha. Minha mãe, preocupada, pediu que o acompanhasse, para que ficasse de olho nele para que não bebesse. Eu planejava ficar em casa, tranquilo, naquele dia, lendo um romance – salvo engano, da Anaïs Nin. Fui, mas fui contrariado. Chegando lá, numa residência com uma escadaria considerável, próxima ao bairro Santa Rita, não me recordo mais de quem, fui apresentado ao pessoal. Lendo o livro de Mattioli, recordo-me de alguns nomes: Colobardini (um ex-promotor público, conhecido como Colô), o dentista Norberto Danza, o ex-prefeito Sebastião Pinheiro Chagas, Bob e Rebite. Havia muitos outros presentes, cujos nomes não guardei. Procuraram me deixar à vontade, mas eu estava preocupado. Não conseguia relaxar: não podia dar bobeira, pois meu pai daria alguma desculpa para beber. Pinheiro Chagas veio conversar comigo; disse que eu era muito sério e que eu lembrava muito o Carlos Drummond de Andrade, que ele conheceu pessoalmente. Não fisicamente, mas no jeito de ser. Achei que era elogio, tomo até hoje como se fosse, mas não era: ele me disse que eu era sério demais, como Drummond era, mas que isso não vale a pena. “O que realmente importa na vida é rir”, asseverou, sério. Perguntou se eu gostava de literatura, pois falei um pouco sobre o Drummond quando ele tocou no seu nome, e recitou para mim um de seus sonetos quando confirmei. Voltou a insistir para que eu risse da vida e foi sentar-se à mesa para falar bobagem e dar risadas. Até parece que eu ficaria de bom humor: no livro de Mattioli, Pinheiro Chagas escreveu que gostava de pagar cerveja para várias pessoas, uma delas meu pai. Eu não sabia disso, mas dava para intuir e mantive a vigília. Creio que notaram minha encanação e um dos amigos do meu pai, de quem me lembro bem, mas de cujo nome não me recordo, assegurou que não deixariam que ele bebesse. Fui chamado à cozinha para pegar um pouco de arroz, vinagrete e pão para comer a carne que estava ficando pronta. Lá conversei por alguns minutos com uma moça, creio que a anfitriã. Também não me lembro mais do nome dela, peço perdão. Ela me perguntou se eu conheci o “gordinho da Cibel”, o que sempre andava de moto. Sim, o conheci. E, também, esqueci-me do nome. Ela me contou que era a mãe dele. Ele morreu num acidente. Eu tinha medo dele na escola, parecia ser um bully. Nunca me fez nada, no entanto, e, curiosamente, conversei brevemente e amigavelmente com ele num churrasco poucos meses antes do acidente. Acho que disse isso para ela. É curioso como inimigos imaginários da infância vão deixando de sê-lo. De volta à mesa, flagrei uma cena curiosa: Norberto Danza estava dormindo sentado. Contaram uma piada ou causo que fez os presentes darem gargalhadas. Ele acordou com a risadaria e caiu na risada também, sem fazer ideia do que foi dito. De pronto, pediram pra ele fazer um truque – ele também era mágico, além de escritor. Inadvertidamente, já senil, atrapalhou-se e revelou como era feita a mágica. Foi aplaudido, riu mais ainda. Então relaxei e aproveitei a festa. Quanto ao livro da Anaïs Nin, comecei a lê-lo de novo anos depois e até hoje não o concluí. Não era pra ser.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor


Tirei esta foto em 20/05/2017, no aniversário do dentista Norberto Danza. Portanto, não foi bem um encontro da turma do Bortolan, mas sim um evento mais família. Não foi na Cascatinha e nem no Bortolan, mas sim na Fungotac, no centro de Poços de Caldas. Esta foto estava inédita até ser publicada junto com esta crônica no Jornal da Cidade. Da esquerda para direita: Daniel da Luz (meu pai), Maria José (enfermeira e cuidadora do ex-prefeito Pinheiro Chagas), Sebastião Pinheiro Chagas e, ao fundo, de vermelho, Marcos Mattioli. Não sei quem são as duas moças conversando ao fundo. 


Monday, December 05, 2022

Um causo sobre um livro de causos

Este artigo (uma mistura de resenha, memórias, crônica e causo) foi publicado na página 11 da edição 7891 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). Depois da publicação soube, por intermédio de Luiz Carmo, que Armando Mattioli, irmão de Marcos Mattioli, faleceu no dia primeiro de dezembro de 2022. Foi justo quando li Causos e Contos, pois fazia exatamente três anos que meu pai havia falecido. Luiz é primo dos Mattiolis, meus sentimentos à família. Em relação ao texto publicado no jornal, fiz quatro pequenas correções aqui para eliminar repetição de palavras. 

Nesta semana, no dia 28 de novembro, fez dois anos do falecimento do advogado Marcos Mattioli. Ele era muito amigo do meu pai, falecido pouco menos de um ano antes, em dezembro de 2019. Lembro-me de Mattioli no velório dele, bastante compungido. Meu pai tinha a liberdade de imitar o jeito peculiar como Mattioli falava na cara dele, sem constrangimentos, às risadas; eram grandes camaradas mesmo. 

Da minha parte, achava curioso ele ser chamado pelo sobrenome, o mesmo pelo qual é conhecido um de meus quadrinistas favoritos, o italiano Massimo Mattioli, autor de provocativas HQs gore que, paradoxalmente, são hilárias. O Mattioli poços-caldense também era escritor, mas as semelhanças param por aí. Meu pai me contou que o homônimo local de um dos meus heróis da adolescência era reacionário. Também era notório que o Mattioli era um boêmio, portanto dado a bebedeiras. Ou seja, alguém com quem eu não tinha absolutamente nenhuma identificação. Meu pai e o próprio Mattioli me convidaram em algumas ocasiões para ir à casa dele em reuniões de amigos, mas me recusei todas as vezes. O anfitrião era muito urbano comigo, para usar um termo caro aos meios jurídicos, então evitava conversar com ele, pois não queria entrar em conflito, algo inevitável, com um amigo de meu pai que sempre procurou ser gentil. 

Neste primeiro de dezembro, quando que se completou três anos que meu pai se foi, em homenagem a ambos, peguei para ler um livro do Mattioli chamado Causos e Contos. É encadernado como uma apostila, nitidamente feito em impressora comum de computador, com os versos das páginas em branco. O conteúdo, é preciso dizer, é tão tosco quanto a apresentação. Nunca havia lido porque havia julgado pela capa, e, bem, eu estava até que certo. 

Não há nenhum conto, na verdade. Não é uma obra com valor literário; inclusive não houve revisão e, consequentemente, há uma profusão de erros crassos. São muitos causos, mas Mattioli não era um narrador habilidoso e o conteúdo é anedótico. Aliás, há literalmente anedotas copiadas de internet, texto antipetista de corrente de e-mail, supostamente do jurista Saulo Ramos, e além do prefácio, surgem sem aviso, no meio dos textos do autor, poesias e discursos do ex-prefeito Sebastião Pinheiro Chagas. É uma bagunça tão absurda que foram inseridos textos que simplesmente não fazem sentido depois de alguns parágrafos, como o que Mattioli conta que foi presidente do diretório do PAN, o Partido dos Aposentados da Nação, em Poços de Caldas. E, a despeito de tudo isso, foi uma leitura maravilhosa. 

Explico. Primeiro, alguns causos são naturalmente engraçados, ainda que muitas vezes anticlimáticos. Segundo, há o valor histórico. É o registro, ainda que simplório, das memórias e da oralidade de uma geração – e não só do autor, que ajuda muito a tornar a leitura mais palatável por não ser pudico, lançando mão de palavrões com naturalidade. E, claro, passou a ter valor afetivo para mim, e, imagino, para alguns dos citados e seus parentes. 

Num dos textos de Pinheiro Chagas, ele conta que em 2009, “sem a presença de incômodos abstêmios” (ainda bem mesmo que não ia a esses encontros, eu era straight edge à época), cada um da turma do Bortolan, como denominava-a Mattioli, devia fazer um brinde. Em meio a saudações pomposas, “em seguida Daniel da Luz: ‘Um brinde às mulheres do mundo inteiro que não queiram nosso dinheiro’”. É machista, mas como conhecemos bem as infâmias do meu pai, isso levou a mim e ao meu irmão às risadas e a minha irmã simultaneamente às gargalhadas e ao choro. Até procurei na web para ver se era um dito popular esquecido, mas parece ser uma frase dele mesmo – e bem típica. Não sabíamos disso e, graças ao livrinho que desprezei, conheci um pouquinho mais de meu pai. Isso é uma enormidade quando eles já não estão aqui para contar essas histórias. E eu não saberia contá-las melhor.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor


O exemplar de Causos e Contos, de Marcos Mattioli, que pertenceu a meu pai e ficou de legado para minha família. Nas outras fotos registrei a dedicatória feita pelo autor a meu pai, os trechos que ele é mencionado e uma anotação a caneta que determina a autoria de uma poesia a Sebastião Pinheiro Chagas.