Friday, December 01, 2023

Subnotas 35 Homenagem para meu pai, Daniel da Luz

Réquiem

Hoje faz quatro anos que meu pai faleceu, após uma luta renhida contra um tipo raro de câncer. Daniel da Luz era um homem loquaz, que gostava de contar vantagens, mentiras e causos. Para manter a memória dele viva, essa coluna é toda em homenagem a ele. Faz sentido uma coluna de humor político falar dele, afinal ele era engraçado e foi filiado ao PDT, PMDB e MDB, partidos pelos quais foi tesoureiro e candidato a vereador. Não herdei o carisma e o humor dele; bem, não sou tão hilário quanto, mas algo disso herdei, vai. 

Politicamente incorreto

Ressalto sempre que odeio esse termo tanto quanto a expressão politicamente correto. O mundo não só tem muitos tons de cinza entre ambos como também uma infinidade de cores. Entretanto, acho que poucos termos definem tão bem como meu pai era. Era politicamente incorreto a ponto de ser constrangedor para todos a sua volta, mas geralmente ele não estava nem aí. De forma geral, as pessoas que conviveram com ele estavam acostumadas com as infâmias. Se não se acostumassem, iriam se chocar e se afastar em minutos. Muito do que ele dizia é impublicável, mas vou publicar algumas das tiradas dele abaixo. Se quiser continuar a leitura de agora em diante, problema seu. Eu avisei. De qualquer forma, são as mais levinhas.

Carnaval de verdade

O comentário dele que julgo mais engraçado a respeito da política local foi, salvo engano, em 2016. Ele era muito crítico da gestão do ex-prefeito Eloísio do Carmo Lourenço. Eu não partilhava da maioria das opiniões dele a respeito, até porque as críticas que eu tinha eram outras, mas isso não vem ao caso. Para meu pai, o ápice da ruindade foi quando ele ficou sabendo do Carnabebê. Ele julgava isso um absurdo. "É por isso que ninguém mais curte carnaval em Poços. Que Carnabebê o quê! Carnaval não é para família. Carnaval bom de verdade é quando saem dois ou três esfaqueados da festa!", exclamou, indignado. Talvez tenha sido o dia que ele mais me fez gargalhar.  

Súcia

Em 1996 eu estudava na Unesp, em Bauru, e vim passar um final de semana em casa. Fiquei chocado: estava cheia de colantes da candidatura do Paulo Tadeu à prefeitura. O choque foi porque à época meu pai havia se tornado muito conservador e de repente a casa estava com adesivos do candidato do PT na janela. O PMDB estava apoiando Paulo Tadeu e, portanto, também meu pai. Passados o susto e a eleição, ele sempre propagou que ela foi roubada pela corriola dos coronéis. Aprendi essa palavra, corriola, com ele. Melhor xingamento que conheço. E noto agora que ele evitava fulanizar a questão, afinal ele gostava do Geraldo Thadeu pessoalmente. 

Pachequice

Por influência do ex-vereador Waldemar Lemes Filho e do falecido Mané Renda, ambos amigos e correligionários, meu pai votou em Rodrigo Pacheco para deputado federal em 2014. À época o presidente do Senado, que faz jus ao personagem homônimo de Eça de Queirós, era filiado ao PMDB. Ele nunca cumpriu a promessa de visitar Poços e bandeou-se para outro partido. Meu pai lamentava muito esse voto dado a Pacheco, que ele considerava um grande (expressão limada a conselho do meu advogado). 

Daniel Souza Luz é revisor, escritor e jornalista

Foto que tirei do meu pai, na Câmara Municipal de Poços de Caldas, votando em eleições internas do PMDB em dois de dezembro de 2017. À direita dele o ex-vereador Waldemar Antônio Lemes Filho. 


VERSÃO EDITADA PARA O JORNAL

Esta versão não passou por qualquer tipo de censura ou algo assim. O problema é que o texto original estava muito extenso para o espaço da minha coluna e tive que condensá-lo. Esta versão editada foi publicada na página 9 da edição 8132 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em primeiro de dezembro de 2023.

RÉQUIEM

Hoje faz quatro anos que meu pai faleceu, após luta renhida contra um tipo raro de câncer. Daniel da Luz era um homem loquaz, que gostava de contar vantagem e mentiras. Para manter a memória dele viva, essa coluna é toda em homenagem a ele. Faz sentido uma coluna de humor político falar dele, afinal ele era hilário e foi filiado ao PDT, PMDB e MDB.

POLITICAMENTE INCORRETO

Ressalto sempre que odeio esse termo. Entretanto, acho que poucas expressões definem tão bem como meu pai era. Muito do que ele dizia é impublicável, mas vou publicar algumas das tiradas dele abaixo. Se quiser continuar a leitura de agora em diante, problema seu. Eu avisei.

CARNAVAL DE VERDADE

O comentário dele que julgo mais engraçado a respeito da política local foi, salvo engano, em 2016. Ele era muito crítico da gestão do ex-prefeito Eloísio do Carmo Lourenço. Para meu pai, o ápice da ruindade foi quando ele ficou sabendo do Carnabebê. Ele julgava isso um absurdo. "É por isso que ninguém mais curte carnaval em Poços. Que Carnabebê o quê! Carnaval não é para família. Carnaval bom de verdade é quando saem dois ou três esfaqueados da festa!", exclamou, indignado. Talvez tenha sido o dia que ele mais me fez gargalhar.  

SÚCIA

Em 1996 fiquei chocado: a casa estava cheia de colantes da candidatura do Paulo Tadeu à prefeitura. O choque foi porque à época meu pai havia se tornado muito conservador e de repente havia adesivos do candidato do PT na janela. O PMDB apoiou Paulo Tadeu e, portanto, também meu pai. Passados o susto e a eleição, ele sempre propagou que ela foi roubada pela corriola dos coronéis. Aprendi essa palavra, corriola, com ele. Melhor xingamento que conheço. E noto agora que ele evitava fulanizar a questão, afinal ele gostava do Geraldo Thadeu pessoalmente.

PACHEQUICE

Por influência do ex-vereador Waldemar Lemes Filho e do falecido Mané Renda, ambos amigos e correligionários, meu pai votou em Rodrigo Pacheco para deputado federal em 2014. À época o presidente do Senado, que faz jus ao personagem homônimo de Eça de Queirós, era filiado ao PMDB. Ele nunca cumpriu a promessa de visitar Poços e bandeou-se para outro partido. Meu pai lamentava muito esse voto dado a Pacheco, que ele considerava um grande (expressão limada a conselho do meu advogado). 

Daniel Souza Luz é revisor, escritor e jornalista

Friday, September 22, 2023

SUBNOTAS 27

Minha vigésima sétima coluna Subnotas foi publicada na página 9 da edição de hoje do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). Como havia afirmado antes neste blog, não pretendia ficar atualizando-o com ela, mas a publico aqui porque preciso fazer uma errata. Depois que a enviei para publicação a Secom da prefeitura de Poços divulgou dois releases falando sobre uma ação ecológica que não foi divulgada previamente, além de esclarecer sobre um maior apoio a um evento organizado por ONGS. Eu critiquei a inexistência da iniciativa e o apoio limitado. Depois, com as novas informações, tenho que dar o braço a torcer. No entanto, no texto abaixo, já atualizado, faço uma crítica à falta de divulgação prévia e também uma observação sobre um detalhe curioso. Portanto, as duas primeiras notas foram modificadas para contemplar a verdade; as demais seguem inalteradas. 

NADA A COMEMORAR

Ontem, 21 de setembro, foi Dia Nacional da Árvore. Um anátema nesta cidade. Até o ano passado a prefeitura sempre divulgava que faria a distribuição de mudas de árvores frutíferas na data. Nesta semana pesquisei nos jornais locais e no site do município e nada encontrei a respeito. Fizeram a distribuição ontem, é verdade, mas sem divulgação prévia. O release foi distribuído posteriormente.

JUSTIÇA SEJA FEITA

Hoje acontece o Dia Mundial Sem Carro dentro da programação do Giro Sustentável e haverá distribuição de mudas. Há o apoio da prefeitura, tudo bem, mas a ação, na verdade, é uma iniciativa da Associação Poços Sustentável e da ONG Planeta Solidário. Esta última é a responsável pelo ajuizamento da ação de obrigação que foi acatada pelo judiciário, que determinou a suspensão das árvores na Avenida João Pinheiro. Deve ter passado despercebido nos corredores do poder.

DE BOAS INTENÇÕES...

O professor Cleiton Corrêa, numa análise arguta, notou que a redução do tempo de recontratação de educadores em Poços de Caldas pode ter sido feita com boa intenção, mas acaba sendo mais um fator para a desvalorização da educação, pois é um mero paliativo que contribui para adiar a realização de concursos. Aliás, é fácil notar que a gestão “técnica” só empurra esse problema com uma avantajada barriga que se dilata por mais de seis anos, salvo engano.  

NÃO É BOA IDEIA DAR IDEIA

Corrêa ironiza o pendor que a administração direitista tem por traquitanas tecnológicas para maquiar problemas pedagógicos graves (do tipo considerar que escola cívico-militar seria algo interessante de se implantar aqui). ´”Não me surpreenderá se daqui a pouco alguém, com todas as manobras discursivas possíveis, sugerir um aplicativo para que a secretaria [municipal de Educação] possa chamar educadores tapa-buraco na medida da necessidade”, dispara. O pior é que é capaz mesmo de algum empresário amigo do rei levar a sério, desenvolver um app assim, conseguir um contrato sem licitação e ainda apresente a ideia como case de sucesso em alguma universidade particular com mensalidades proibitivas.

SUBCELEBRIDADE

Tem algo midiaticamente mais indigno do que ser uma dessas subcelebridades de internet? Sim: pagar para sair numa revista picareta.

Daniel Souza Luz é revisor, escritor e jornalista


Tirei esta foto, com um celular, na porta da minha casa em 22/09/2023.


Tuesday, August 29, 2023

Homenagem ao centenário de Millôr (Coluna Subnotas 22)

Há muito tempo, por uma série de razões insondáveis até para mim e algumas outras muito práticas, não publico minhas colunas escritas para o Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) neste blog. E nem publicarei as que vão desde a terceira edição até a vigésima primeira. E nem sei se publicarei outras aqui futuramente. Quem sabe algum dia as reúno num livro. No entanto, publico esta para fazer duas erratas: a paródia intitulado Chato foi bem chatinha e saiu errada no jornal (comi algumas palavras na digitação; corrigi a tempo, mas mandei o arquivo sem salvá-lo, então foi com o erro) e a nota ABL saiu muito cheia de vírgulas, então pus um parênteses nela para explicar melhor que é a única que não se trata de um pastiche/paródia. Este coluna foi publicada na página 8 da edição 8065 do jornal, no dia 18 de agosto de 2023, em homenagem aos cem anos de nascimento do Millôr, cujo aniversário seria comemorado dois dias antes caso ele ainda estivesse vivo.  

SUBNOTAS 22

MILLORIANA

A coluna de hoje será em homenagem a Millôr Fernandes (1923-2012), cujo centenário seria comemorado na quarta-feira desta semana. Farei alguns pastiches dele, que era um grande frasista. Ou aforista, como preferirem. Creio que se ele estivesse vivo não se incomodaria. Ou talvez sim: ele tinha fama de azedo, algo que eu percebia nas entrelinhas, mas já parafraseando-o, isso não o interessaria, pois está morto. “Todo homem nasce original e morre plágio”, afinal. Não é nada muito rigoroso. Li mais e fui mais influenciado pela geração que o teve como modelo (Angeli, Laerte e cia).

JORNALISMO

Para todos os poderosos, jornalismo é armazém de secos e molhados.

PARTICIPAÇÃO ESPECIAL MUNICIPAL

Livrai-me da justiça, que das árvores me livro eu.

LITERALMENTE

Roube ainda hoje. Amanhã pode ser ilegal. (Essa eu roubei de forma literal, para encher linguiça).

ATUALIZAÇÃO

Celebridade é qualquer idiota com milhares de seguidores.

CHATO

Indivíduo que tem mais interesse em nós do que nós mesmos.

FUSÃO DE AFORISMOS

O ser humano é um macaco inviável.

MERITOCRACIA

Se eu ganhasse o que acho que mereço não sobraria dinheiro para ninguém.

ONISCIENTE

Quem tudo sabe informou-se muito mal.

SINCERIDADE

Cochicha na orelha do livro o que achou da história.

IMORTAIS

Os escritores mortos são muito melhores do que os vivos graças a IA e continuam a não contribuir para a previdência.

ABL

Uma constatação (não é uma frase do Millôr, que não gostava da Academia Brasileira de Letras): ali os imortais estão enterrados em mausoléus malcuidados. Desídia do Merval Pereira, levando em consideração a teoria do domínio do fato.

Daniel Souza Luz é revisor, escritor e jornalista

Millôr Fernandes em 1957. Foto de domínio público, autor não creditado, acervo do Arquivo Nacional.


 

Tuesday, April 04, 2023

Subnotas 2


 AGRONEGÓCIO

Luan Santana e sua noiva (agora esposa) poços-caldense estavam certíssimos de se casar num lugar afastado e não numa igreja no centro. Provocaria muito trânsito, barulho e talvez fosse até mais tarde. Devem ter pensado na pobre cerimonialista, que acabaria recebendo uma ligação pedindo 27 convites.

QUEM PAGA O APAGADOR?

Uma pichação com os dizeres “Sérgio Motosserra” e “MotoSérgio” podia ser vista, neste final de semana, num muro próximo à rotatória entre os jardins Europa e Vitória. Na segunda-feira já havia sido apagada.

PROVOCAÇÃO

As mesmas pichações ainda podem ser vistas num muro em frente à Coopoços, na rua Rio Grande do Norte. “Geopoliticamente”, vamos dizer assim, são mais ousadas. 

NOVILÍNGUA E DUPLIPENSAR

Uma cidade onde crime ambiental é infração e censura é não merecimento de destaque. George Orwell ficaria orgulhoso. Ou não. 

LIBERDADE DE IR E VIR

Chegou aos meus ouvidos que um atleta que tem o hábito de subir a trilha do Cristo foi abordado por dois fulanos na Fonte dos Amores dizendo que ele não podia mais usufruir da trilha. Então ele disse que corressem atrás dele, pois ele sempre subiu por ali correndo. E deixou os sujeitos no vácuo. 

SPOILER

Estou lendo um livro do Marcos Bagno, Memórias de Eugênia, que conta a história de uma comunidade que se une para salvar uma pitangueira centenária, um marco da cidade. Ainda bem que não é ambientado aqui, pois já saberia o fim. 

RARARÁ

Quando comecei a ler a coluna do humorista José Simão na Folha de S. Paulo nos anos 1990 eu logo gostei, dava umas risadas, mas me incomodava com a repetição de piadas. Quando entrei na faculdade de Jornalismo um veterano argumentou que a coluna era diária e Simão não conseguiria inventar tantas piadas novas de um dia para o outro. Justo. A minha é semanal, uma vantagem. No entanto, de certa forma, repeti a piada que fiz na primeira coluna com o filme do Chico Bento na nota acima, dessa vez citando um livro. É que fatos tristes ficam se repetindo aqui. E então cabe o clichê: é rir para não chorar.


Esta coluna foi publicada na página 10 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 31 de março de 2023. 





Friday, March 24, 2023

Subnotas

Febeapoços

O grande Sérgio Porto, sob o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, escrevia o famoso Febeapá – Festival de Besteiras Que Assolam o País. Em homenagem a ele, falecido em 1968 e cujo centenário de nascimento comemora-se neste ano, fiquem aí com meu singelo Festival de Besteiras Que Assolam Poços de Caldas.

Big Brother is watching you

O prefeito escreveu candidamente em postagem que pretende “eliminar” os adversários. Será que vai ter ajuda do vereador fuzileiro que compõe sua base?

Cortando o mal pela raiz

As árvores centenárias estavam podres e podiam cair na cabeça de alguém? A ver. Mas tem uma casa amarela nas mesmas condições e ninguém fala nada.

Cidade cenográfica

Cidade de novela será inspirada no município. Imagina só Livre Para Voar, originalmente exibida nos anos 1980, sendo refilmada neste exato momento: o Tony Ramos de boa no seu vagão e tem que sair de lá correndo porque estão passando o trator em tudo.   

Uai, sô

Especula-se se o filme live-action do Chico Bento será rodado em Poços de Caldas, como foram os da Turma da Mônica. O cerne da trama: Chico Bento tenta convencer Nhô Lau a não cortar a única goiabeira da região. Algo me diz que se for mesmo filmado aqui vai dar muito ruim.

Apoio de peso

Apesar do apoio do linguista norte-americano e poços-caldense honorário Noam Chomsky, realmente não deu para os trailers de lanche da praça. Em três dias terão que sair de lá. O que me pergunto é como foi recebido a notícia entre os mandatários locais, na ocasião da divulgação da nota de apoio. Chomsky é o maior intelectual ainda vivo, ao lado de Edgar Morin, mas na cabeça das “otoridades” isso não deve significar nada. O sobrenome dele deve soar como onomatopeia de alguém comendo lanche, o que favorecia a interpretação do porquê do apoio.

Leite com pera sem imposto

Consta que foi um sucesso a rebelião do materno-infantil e as novas lideranças liberais da cidade estão sendo assediadas para compor a juventude do partido que tem nojinho de fundo partidário, mas que precisa dessa bufunfa oriunda de impostos.

Daniel Souza Luz é jornalista, escritor e revisor

Minha coluna de humor político estreou no dia 24 de março de 2023 na edição 7966 Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). O nome é um referência ao livro Notas do Subsolo, do Dostoiévski. 



Primeiro modelo de header para a coluna.

Segundo modelo de header para a coluna.

Terceiro modelo de header para coluna, já com o título definido (sugestão do editor João Gabriel, após eu ter cogitado o título Notas do Subsolo, mas tê-lo considerado muito longo).

Modelo final do header escolhido pelo editor do jornal, João Gabriel Pinheiro Chagas. 






Monday, March 20, 2023

Aquela piada não é mais engraçada

Esta crônica foi publicada na página 9 da edição 7963 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 18 de março de 2023.  

Tenho todos os gibis dos Piratas do Tietê, marcou minha infância e adolescência. Depois que a revista parou de ser publicada, continuei a ler a tirinha, de forma intermitente, na Folha de S. Paulo. No entanto, foi apenas no fim de 2022 que li um livro que compila essas tiras pós-publicação das revistas – que por sua vez também compilavam as tirinhas, além de apresentar HQs (então) inéditas. Depois de escrever, na semana passada, sobre a inadequação aos dias de hoje de uma piada contada por Paulo Caruso numa palestra que testemunhei, creio que é o momento certo para refletir um pouco mais sobre a leitura desse primeiro livrinho de bolso dos piratas, que tem um subtítulo apropriado: Escória em Quadrinhos.

O humor é algo engraçado, não só no bom sentido: parece que nunca envelhece bem. Há tiras aqui que hoje fariam Laerte ser canceladíssima. Alguém mais novo, com uma boa carga de informação sobre preconceitos, ou algum detrator facho da quadrinista que lesse esse livrinho com certeza destacariam quadrinhos que atualmente são impublicáveis. E justo da Laerte, hein? Não dava para imaginar, pois ela sempre foi mais militante, sofisticada e sutil do que seus pares.

A maioria eu nunca tinha lido, umas poucas eu me lembro de ver em outros livros/revistas/no jornal. De qualquer forma, creio que na época não me chamariam a atenção: a verdade é que preconceitos em geral eram naturalizados. E, também, eu tinha outra visão: para mim era óbvio que eram apenas piadas e que não se traduziam em ofensas no dia a dia. Tanto que, em meados da primeira década desse século, fiquei chocado com a resposta de Laerte a uma carta de uma associação de pais de autistas publicada pela Folha de S. Paulo, que o acusava (à época, ela usava o gênero masculino) de reforçar estereótipos e preconceitos contra pessoas com autismo numa história em quadrinhos: ela pediu desculpas à associação e aos ofendidos, reconhecendo que o humor trabalha, muitas vezes, com estereótipos preconceituosos. Eu pensei "que mané pedido de desculpas, que absurdo", pois havia lido a tirinha com a piada mencionando autistas (não me recordo mais dela) e não tinha achado nada de errado e que não reforçava nada preconceituoso.

Hoje, é claro, entendo melhor o poder desses discursos estigmatizantes e como eles se infiltram nas consciências e no cotidiano. Então o choque não é só com essas tiras, obviamente de meados e fins dos anos 1990 (dá para notar, pelas referências), mas também comigo mesmo, pois, mesmo se as tivesse lido quando publicadas, os preconceitos explícitos passariam batido – há até mesmo o uso do termo “pau de arara” para se referir a nordestinos, algo que, justo neste momento político, deve provocar enorme constrangimento à autora. Por essas e outras, creio que tudo isso deve ter levado à atual fase filosófica da Laerte, que talvez tenha refletido sobre aquela carta, pois notei que pouco depois, aos poucos, a tônica de seu trabalho foi mudando.

Compreendo totalmente a trajetória artística dela, que fique óbvio que não defendo cancelamentos tendo em vista comportamentos pretéritos já superados, e a mudança de postura é notável. O mundo não ficou mais chato, ao contrário do que prega o clichê preguiçoso dos reacionários, muito pelo contrário: ele força humoristas a saírem dos lugares-comuns rasteiros para serem engraçados de verdade.

Um dia espero ler o segundo volume dessa compilação, mas já ciente de que o contexto não é o mesmo do qual me recordava – de que Laerte seria diferente de Ziraldo, do Verissimo, de Millôr e dos outros gênios do humor do mesmo naipe no quesito teste do tempo. Ressalte-se também que não creio, claro, que o livro deveria deixar de ser editado como está, pois é o retrato histórico de uma época, mas, para piorar, li uma edição de 2008 e creio que é republicação de uma edição mais antiga. Olhando atentamente para a arte, os pixels são evidentes, pois são digitalizações de baixa qualidade.

Todas essas reflexões são necessárias, mas é aquilo: as piadas que envelheceram bem levaram-me, boa parte delas, às gargalhadas. E dá-lhe violência gratuita sanguinária e rum, afinal são os Piratas do Tietê.

Daniel Souza Luz é revisor, escritor e jornalista

P.S.: fiz quatro pequenas alterações no texto em relação à publicação no jornal, todas para eliminar palavras repetidos ou para acrescentar outras que deixassem mais claro o que eu queria dizer; nenhuma das alterações altera o sentido do texto original, que, por sua vez, é um refinamento das impressões que escrevi no Good Reads pouco depois da leitura do livro. 



Monday, March 13, 2023

A Anedota Perdida

Esta crônica foi publicada na página 8 da edição 7958 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 11 de março de 2023. 

Paulo Caruso faleceu, aos 73 anos, há uma semana. Uma perda inestimável para o humor e a inteligência do Brasil. Chico Caruso, seu irmão gêmeo, segue na ativa. Haverá rodízio de cartunistas no programa de entrevistas Roda Viva, da TV Cultura, para tentar substituir o insubstituível. Paulo desenhava ao vivo para o programa desde 1986. O primeiro será Jean Galvão e a entrevistada, apropriadamente, será a quadrinista Laerte já nesta segunda-feira, dia 13. Fica aí o aviso para quem ler essa crônica a tempo.

No entanto, não é sobre o presente e o futuro que quero falar. O que desejo mesmo é me lembrar de 29 de abril de 2012. De tardezinha naquele dia fui assistir a uma palestra sobre humor e quadrinhos com Paulo Caruso, o quadrinista Caco Galhardo e o humorista e desenhista Reinaldo Figueiredo – este último mais conhecido como integrante do Casseta e Planeta, no qual fazia a impagável caracterização de Itamar Franco, quando imortalizou o bordão “É pro Fantástico?”. Galhardo tem (ou tinha, não sei) familiares morando em Poços de Caldas e, pelo que sei, intermediou a vinda dos outros dois para a Flipoços.

Na palestra, em meio a muitas risadas, trataram de um tema premente e que hoje é tido como “mimimi” pelos fachos: até onde iria o limite do humor e como não incorrer em preconceitos. O modelo baseado em homofobia, misoginia e racismo já estava desgastado e, bem, jamais deveria ter sido tolerado. Fato é que todos já praticaram, antigamente havia menos consciência a respeito ou achava-se que a liberdade de expressão permitia qualquer discurso ofensivo a pessoas fragilizadas. Permitir, sempre permitiu e ainda permite, mas cada um que arque com as consequências.

Chegou-se à conclusão de que a solução era fazer piada inteligente com os preconceitos e não os reforçar. Então Paulo Caruso contou uma piada da qual nunca me esqueci, pois o público e os palestrantes caíram na gargalhada e eu também. Era assim, só me escapa um detalhe (o time mencionado, mas creio que era uma carioquice, então vou chutar): “O sujeito viu um anão negro vindo na calçada, quando chegou mais perto reparou que ele usava uma camiseta do Botafogo e que tinha trejeitos. Quando passou por ele, notou que o anão também usava um kipá. O sujeito não resistiu e correu atrás dele para comentar: ‘Desculpa falar, mas notou que você é o estereótipo de todas as piadas?’ e o anãozinho respondeu, virando o pulso: ‘Usted ainda no lo sabes el mejor’”. Gostaria de dizer que foram as piadas de argentino que meu amigo Roberto Fernandes Júnior contava na adolescência que me fizeram rir, mas o fato é que sou de uma geração bem desrespeitosa. E essa piada, no fim das contas, é muito preconceituosa. Ainda não tinha aparecido a dupla Key and Peele, que fazia piadas engraçadíssimas detonando racistas e preconceitos em geral. Não tem ninguém do meu tempo que jamais deu uma escorregada. E vamos sentir muita falta do Paulo Caruso. 

Nunca vi essa piada em lugar nenhum, nem mesmo na web. Mesmo correndo o risco de ser cancelado onze anos depois, achei melhor registrá-la. Meu compromisso é com o jornalismo e a literatura. Mal aí.  

Daniel Souza Luz é escritor, jornalista, professor e revisor


Paulo Caruso desenhando no Roda Viva em 2009. Foto de Sílvio Tanaka/TV Cultura, reproduzida aqui via Creative Commons. 

Paulo Caruso em 2009. Foto tirada por Silvio Tanaka/TV Cultura e reproduzida aqui via licença Creative Commons


Tuesday, March 07, 2023

Crônica à queima-roupa

Estuprada, assassinada com um tiro no peito e encontrada nua no matagal, foi exibida em decúbito dorsal na TV, tal como havia sido abandonada ao agonizar.

O apresentador anuncia as promoções da semana.
Foto do perfil PINGNews reproduzida aqui via licença Creative Commons


Este miniconto/minicrônica foi publicada originalmente em outro blog meu em três de março de 2006. Foi republicado sem alterações na página 8 da edição 7953 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em quatro de março de 2023. Ou seja, infelizmente nada mudou em 17 anos. 

Monday, February 27, 2023

Eu estava errado

Lembro quando comecei a achar carnaval algo idiota. A explosão do ônibus espacial Challenger foi em 1986 e no carnaval daquele ano meus pais me levaram em uma matinê no Palace Casino, no centro de Poços, junto com meus irmãos. Pode até ter sido o de 1987, mas como o acidente foi em janeiro provavelmente foi em 1986 mesmo. Lembro-me de andar na praça para chegar ao local, de estar um clima legal, de ver crianças soltando bolhas de sabão. Então entramos no salão: um monte de criancinhas chatas correndo de um lado pro outro, aquelas músicas de sempre (“Maria Sapatão, Sapatão, Sapatão...”). Não entendi por que se pagava para entrar lá. Afinal, na rua também tinha folia. Achei tedioso, mas não estava horrível. Talvez meus irmãos tenham se divertido, não me lembro mais. Não seria nada marcante, a não ser por um detalhe: uma das pinturas na parede retratava a explosão da Challenger. Mesmo aos 11 anos, achei o cúmulo da idiotice; o que tem a ver a morte de sete astronautas com uma festa teoricamente alegre? Eu fiquei muito incomodado, pois adorava ler sobre astronomia e exploração espacial. Comecei a ter antipatia por carnaval naquele instante e também por Poços de Caldas, que passei a ver como uma cidadezinha besta. Ainda não tinha palavras para isso, mas instintivamente notei uma mentalidade provinciana na cidade, que cultuava tudo que era arcaico. “Os tabaréus comemoram mesmo a explosão de qualquer um que possa significar conhecimento para a humanidade”, escrevi posteriormente. Para mim carnaval, na real, era isso: um bando de idiotas se divertindo às custas dos outros. Bem naquele estilo Jorge Perdigoto, a paródia de carnavalescos cafajestes feita pelo grupo humorístico Hermes e Renato. Mas eu era bem pretensioso para alguém tão jovem, hein? No fim da adolescência, capitulei e até enchi a cara em alguns carnavais. Foi bacana, mas, no geral, os que mais me diverti foram os que passei isolado, lendo livros, longe de quem eu considerava imbecil. Pois bem, hoje noto como eu estava errado. Só compreendi isso de vez no carnaval de 2010. Foi quando entendi a função libertadora da festa. Meio por acaso, curei-me de vários males. Eu me diverti à beça, como poucas vezes na vida. Cheguei até ver desfile das escolas de samba no sambódromo do Rio de Janeiro dois anos depois. Qualquer carnaval é bom, claro: seja caindo na folia ou isolado lendo, vendo filmes e ouvindo música; lembro de um ótimo inclusive, creio que em 1999, no qual não fiz muita coisa além de ouvir discos do Kraftwerk e do Wipers. Hoje penso que quem pintou aquele painel da explosão da Challenger no Palace Casino talvez quisesse apenas registrar fatos históricos recentes; salvo engano, puxando do fundo da memória, tinha até uma pintura do Tancredo Neves lá, falecido um ano antes. Isso poderia ser considerado, talvez, de mau gosto também, quem sabe? Ou entendido como simples homenagem. No caso do ônibus espacial, teria sido melhor pintar retratos dos astronautas do que que a explosão. Vai ver isso nem passou pela cabeça do(s) artista(s), pois daria mais trabalho. De qualquer forma, não me senti ofendido pela pintura do recém-falecido Tancredo. Se a Challenger não tivesse explodido, se a professora a bordo tivesse ido ao espaço, talvez a exploração espacial agora estivesse num patamar ainda mais avançado e eu teria aproveitado melhor mais carnavais.

Daniel Souza Luz é revisor, jornalista e escritor

Esta crônica foi publicada na página 9 da edição 7948 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 25 de fevereiro de 2023. Em relação à versão publicada no jornal corrigi apenas um erro de digitação e alterei um pequeno trecho para melhorar o entendimento. 

O ônibus espacial Challenger em 26 de janeiro de 1983, três anos antes do acidente. Foto de domínio público publicada pela NASA. 


Monday, February 20, 2023

Anarquia em qualquer lugar (versão editada)

Este artigo/crônica/memórias foi publicado originalmente no fanzine Discos que F... Muitas Vidas em meados de 2022. Escrevi-o em 2021 a pedido do editor do zine, Renato Lauris Jr. Esta é uma versão resumida daquele artigo (ainda pretendo republicá-lo na íntegra), mas aqui faço uma correção importante: no original atribuí erroneamente o vocal de C´Mon Everybody ao Steve Jones. Editei esta versão para que coubesse na paginação do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG), no qual foi publicada na página 9 da edição 7946 em 18 de fevereiro de 2023.   

Fui criança, pré-adolescente e adolescente na década de 1980. Como todo mundo àquela época, geralmente conhecia uma banda ao ler a respeito e só ouvia depois – eventualmente, décadas depois. Nunca me canso de contar esta história: pouco depois do lançamento de Sid and Nancy, li sobre o filme e fiquei fascinado. O que nunca falei a respeito, no entanto, foi a circunstância engraçada: foi numa revista Veja no consultório do pediatra e eu, num ato de delinquência juvenil, arranquei a página da revista. Tenho guardada até hoje! Sei que Sid Vicious era um junkie violento – na verdade a revista já dizia isso – mas isso não me interessava ou interessa. O que me deixou tão maravilhado foi: o cara não sabia tocar baixo e foi ser baixista do Sex Pistols. Deu errado, mas podia ter dado certo. O que me maravilha foi exatamente o “não sabia que era impossível e fez” – só que fez errado, pois dane-se, inclusive foda-se esse maldito ditado. Um exemplo de vida. E o grupo chamava Pistolas Sexuais, eu estava aprendendo inglês e consegui entender – mas também é fácil de deduzir. Cara, como que podiam existir coisas assim? Acho que por isso eu, que era tão tímido e estudioso, resolvi roubar aquela página. O Sex Pistols já começou comigo do jeito certo: como uma má influência.

Era uma das minhas bandas favoritas. Sempre falava a respeito com alguns amigos. Só que eu nunca tinha ouvido, nem esses amigos. Isso foi nos idos de 1988. Nessa época, conheci através de programas de skate, fitinhas cassetes de amigos e até mesmo rádio os Ramones, Toy Dolls, Replicantes e Garotos Podres (só Papai Noel Velho Batuta no caso desses, que ouvia em rádio FM – incrível, não?). Já estava escolado no punk rock, creio. Formado no jardim da infância e pré-escolar. Mas os Sex Pistols continuaram inacessíveis até que ouvi C’Mon Everybody no Grito da Rua, um extinto programa da TV Gazeta sobre skate. Foi maravilhoso, mas não sabia que era uma cover do Eddie Cochran, pioneiro do rock, e muito menos que era o Sid Vicious que a cantava – curiosamente, me lembrava do nome dele e do guitarrista Steve Jones, mas não me recordava do nome do Johnny Rotten, então foi apropriado para aquele momento. Mas o grande dia chegou: minha avó Arminda me deu dinheiro no meu aniversário de 15 anos para eu fazer o que quisesse. Dava para eu comprar um disco de vinil, o meu primeiro.

Fui numa loja, já extinta, no centro de Poços. Foi em dezembro, um mês depois do meu aniversário, pois meus avôs moravam numa cidade vizinha, Botelhos, e só quando fomos visitá-los que ela me deu o dinheiro em vez de um presente, o que foi uma grande sacada dela e do meu avô Eurico. Na lojinha de discos tinha um cara olhando uns vinis e me chamou a atenção o Paul’s Boutique, do Beastie Boys. Ele tinha uns dreadlocks, mas era branco. Achei que ele manjava de rap e o abordei: “Beastie Boys é bom, né?”. Eu tinha lido sobre eles, mas creio que ainda não os tinha escutado naquela altura da vida. Ele me ignorou, como se eu fosse um fedelho petulante. Fiquei com raiva daquele escroto e fucei mais um pouco. Lá estava: Never Mind The Bollocks, Here’s the Sex Pistols. Perfeito para a ocasião, hein? O título já dizia tudo.

Não tenho muito o que dizer do disco em si. Naquela seção Discoteca Básica, da revista Bizz, tem um texto de um gringo chamado Peter Price, um percussionista que tocou com as Mercenárias e o Arnaldo Antunes, que é primoroso e diz tudo. Pesquisem nos sebos da vida, se pá tem na internet. Mas, em suma, o que ele destaca é o artificialismo do som: são guitarras e guitarras gravadas uma em cima da outra, “puxando o ouvinte pelo pescoço”, nas palavras do Price, que aqui cito de memória, reduzindo tudo a pó. Inclusive o baixo, que só consegui escutar depois de fazer aulas do instrumento. E foi Jones que gravou quase todas as linhas de baixo, Vicious não conseguia. Da minha parte, a produção, inspirada no conceito de wall of sound, do Phil Spector, realmente me impressionou muito, mas não foi só isso: a música era raivosa, parecia me chamar para a briga, não era divertida como os Ramones, os Toy Dolls, os Replicantes, o Papai Noel do Garotos e os próprios Pistols com Vicious no vocal. E o que puxava isso era o vocal de Johnny Rotten, que eu não conhecia e que me deixou de queixo caído. Exalava ódio. Era algo inaudito para mim.

Foi a abertura da porta para o hardcore, o thrash metal, o grindcore e outras formas de música mais extremas para mim. Claro que os Pistols soam inofensivos perto de sons assim. Hoje John Lydon não passa de um conservador patético que nada lembra o jovem Johnny Rotten ou ele mesmo, com seu nome verdadeiro, no começo do PIL – que me fascinou tanto quanto os Sex Pistols, até porque dava para escutar o baixo. Eu já estava preparado para o pós punk também. Só que isso é outra história.

Daniel Souza Luz é revisor, jornalista, escritor e professor.


A icônica capa de James Reid consertada à mão. A foto é de Tony McNeill, reproduzo aqui via licença Creative Commons e recomendo que se clique no link para se ler a fascinante história do vinil, o conflito familiar do qual ele foi centro e o conserto à canetinha pelo qual a capa passou. 


Monday, February 13, 2023

Entropia

Bilhões de mortes depois de você

Todo o Mistério d’antanho

Mergulhou no olvido

O pranto ignora o vácuo

Podia ser ouvido a 10 parsecs

Afastei-me ainda mais

Orbito o buraco negro massivo de Andrômeda

No horizonte de eventos encaro

O último titã no firmamento

Horrorizado por ter uma testemunha

Do sofrimento indizível

Pelo qual se penitenciava

Sem a almejada paz

Do instante final

Antes de ser despedaçado

O nirvana é que é ilusório

 

Daniel Souza Luz é revisor, escritor, professor e jornalista 

Este poema foi publicado na página 9 da edição 7941 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 11 de fevereiro de 2023. Originalmente chamava-se Experiência 6 e publiquei apenas no stories do Instagram para meus melhores amigos em 7 de agosto de 2020. Era, de fato, um experimento, portanto o reescrevi para publicá-lo no jornal. 

Galáxia de Andrômeda (M-31). Foto tirada em 18/09/2010 por Adam Evans e compartilhada aqui via licença Creative Commons. 


Monday, February 06, 2023

O grande poeta e sua gloríola

Esta crônica foi publicada na página 8 da edição 7936 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 04/02/2023. Eu mesmo revisei o texto.   

Ontem vi o livro de um poeta ser vendido num sebo. Fiquei surpreso: quem será que o comprou? Alguém que o conheceu? Um pesquisador? Mais provavelmente trata-se do segundo caso. Se é alguém que o conheceu, foi quando ele já estava em idade provecta. Foi o meu caso: sim, eu conheci o elogiado poeta. Só que não foi a literatura que nos pôs em contato.

Declino de revelar a identidade do grande poeta. O leitor há de entender. Conheci-o quando eu tinha uns 17 anos, ele já era idoso. Parecia mais ser o avô do filho, que era (é) um pouco mais velho do que eu. O filho era muito inteligente, mas gostava de bancar o bully. Tenho a impressão de que fingia ser estúpido para não ser zoado pelos amigos idiotas dele. Ele gostava de humilhar um amigo meu que estudava em outra sala. Felizmente nunca presenciei esses episódios cruéis, mas contavam-me a respeito. Ensino médio era um inferno e eu procurava ficar esperto. Certa feita, deixei as chaves de casa debaixo da minha carteira. Um colega do filho do poeta, que ainda viria a ser meu amigo, pegou-as e escondeu-as na hora do intervalo. Vieram me sacanear, dizendo que eu dormiria fora de casa. Eu disse que não, pois chamaria a polícia e não apenas o diretor. No fim da aula, o fulano deu a volta na minha carteira, rindo, e pôs as chaves, separadas, sem o chaveiro, em cima do meu caderno. Ele deve ter considerado uma grande tirada com a minha cara, mas eu também considerei uma vitória sobre ele. E ficou por isso mesmo.

Voltando ao tema, mas tudo está relacionado: o filho do poeta também era babaca, mas um pouco diferente da sua turminha. Viu, por acaso, que desenhei o logo do PIL (Public Image Ltd) no meu caderno. Resolveu puxar papo e nos tornamos amigos. Isso deve ter me poupado de muitos aborrecimentos. Ele odiava grunge, então em ascensão, e ficava inconformado de eu gostar de Soundgarden, Nirvana, Hole. Só que ele decidiu ser gente boa comigo, acho que era porque eu era alguém com quem ele podia conversar sobre as bandas pós punk de que gostava. Também já éramos leitores do Orwell, outra afinidade. Graças a isso pude escutar álbuns do The Cure, Joy Division e New Order que eu ainda não conhecia. Já gostava das bandas, mas ainda não conhecia todos os discos; afinal, naqueles tempos era difícil ter acesso a tudo. Ele gravava fitinhas para mim desses vinis e um dia, enquanto as gravava, me convidou para ir a sua casa.

Foi quando conheci o grande poeta. Nem sabia que ele era escritor. Foi cortês comigo. Quando o filho terminou de gravar as fitinhas, enquanto batíamos papo e ouvíamos os discos, ele me ofereceu carona até ao centro. Naquele horário o pai costumava ir numa padaria. Aceitei e, no caminho, o grande poeta fez alguns comentários sobre as moças que passavam na rua. Basicamente, ninfetas um pouco mais velhas do que eu e o filho dele – se muito. “Olha só que gostosa, ó só essa bundinha”. E ria, ria a valer.

Muito depois que ele morreu descobri que o velho tarado era poeta. Quando saiu um livro póstumo reconheci o nome do filho – de quem já não era mais próximo. Não reconheci o do poeta em si; não sabia o nome dele até então, aliás. Comentei com meu vizinho, que havia sido vizinho deles do outro lado da cidade. O livro estava sendo muito elogiado, o velho poeta era tido como um grande erudito. Meu vizinho, um velho amigo, retorquiu – lembro bem da conversa:

- É que você não o conheceu de verdade. Que homem mais estúpido! Ele era fazendeiro, tinha jeito de coronel. Ele tratava muito mal os empregados, você precisava ver. Vivia gritando.

Aí me lembrei do episódio da carona e que meu grande amigo do passado, na verdade, era um bully. Ele, com certeza, nunca me sacaneou porque ele se identificou com (parte) do meu gosto musical e, consequentemente, comigo. Hoje percebo que herdou a arrogância paterna.

Decidi nunca ler o grande poeta. Isso já tem mais de vinte anos, não existia ainda o termo cancelamento. Acho que não estou perdendo grande coisa. Se estiver, foda-se. É por essas e outras que gosto do Bukowski. Pelo menos ele deixou claro para seus leitores quem ele realmente era.

Daniel Souza Luz é escritor, jornalista, professor e revisor

Foto de Bob que reproduzo aqui via licença Creative Commons.


Monday, January 30, 2023

Os anos grunge

Numa ocupação de secundaristas em 2016, na Escola Estadual David Campista, um moleque que gostava de tocar violão estava ensinando os acordes de Come As You Are para um colega dele. Mostrei Eighties, do Killing Joke, no celular. Ele ficou impressionado com a semelhança e lhe expliquei que era uma referência explícita mesmo que o Nirvana havia feito, pois Come As You Are é de 1991 e Eighties, bem, está no nome, é dos anos 1980. Não me lembro mais o nome dele, nunca mais tive contato e se o encontrar hoje talvez sequer o reconheça, mas após me perguntar um pouco sobre músicas dos anos 1980 e 1990, ele me disse algo importante, para o qual dou mais ouvidos agora, depois de questionar minha idade: “Então você foi adolescente mesmo nos anos noventa. Devia dar mais valor àquela época”. Ele está certíssimo, embora eu seja mais apegado às memórias de quando tinha de 13 a 15 anos, de 1987 a 1989, na pré-adolescência. Era sobre isso que estava falando antes dele me interromper e soltar essa verdade na minha fuça. Lembro com muito carinho da turma de amigos daquela época, do New Order, da descoberta do punk rock, skate, das revistas MAD e Chiclete com Banana, que foi minha introdução à HQ underground e o que há de mais interessante na literatura. Esqueço que a época do grunge também foi boa, mas com mais percalços. Minha adolescência ter sido confusa é bem o reflexo do zeitgeist daquele começo de década, que parecia saudável e não foi. Uma das melhores tiradas sobre aqueles tempos é uma entrevista de Buzz Osbourne, do Melvins, pioneiros das bandas de Seattle: um repórter da revista de skate Thrasher perguntou para ele no final daquela década quem era o maior fã do Melvins e ele respondeu: “Kurt Cobain. E veja só como ele terminou. Morto”. Recordo-me também com exatidão de um texto da jornalista Gabriela Dias no excelente fanzine Panacea, que virou uma revista que se destacava em meio às publicações sobre cultura alternativa que pipocaram à época, pois eles faziam uma cobertura mais aprofundada. Ela afirmava no texto que a ascensão do grunge era o início de uma era mais inteligente no rock, sem sexismo e racismo. Foi ingenuidade, é só ver o burríssimo e reacionário público do rock mais estereotipado de hoje, mas era o que aqueles tempos pareciam inspirar. No plano pessoal, nem falo nada da maioria das amizades daquela época – “nem falo nada” é força de expressão. Quase todos hoje são rematados fascistas. É impressionante como não liam os encartes, não viam a imagem da sede do Partido Republicano queimada no In Utero do Nirvana (aquela foto não estava lá por acaso), não se atentavam às letras, mesmo os que sabiam algo de inglês. Tudo bem, quase todas eram crípticas, mas custava ler as entrevistas e tentar entender sobre o que falavam? Só depois que mudei de Poços de Caldas me livrei do que hoje percebo que era um ambiente improfícuo e ignaro, ainda pior do que o da escola no ensino médio – felizmente, não demorou tanto para me afastar. Só fui sentir uma lufada de ar fresco, de cotidianamente descobrir boas músicas, ver bons shows e participar de discussões inteligentes, quando fui cursar a universidade de Jornalismo em Bauru. Serve The Servents dá a letra: “a angústia adolescente valeu a pena”. O instinto estava correto: idiotas devem ser escrupulosamente evitados, sempre, em qualquer época, em qualquer lugar.

Daniel Souza Luz é revisor, jornalista, escritor e professor 

Esta crônica foi publicada na página 8 da edição 7931 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). Eu mesmo revisei o texto.

Capa do CD The Grunge Years, lançado em 1991 pela Sub Pop, que à época era uma gravadora independente. É uma imagem que ironizava o interesse de gravadoras multinacionais pelo grunge, que estava se tornando popular. Acabou sendo uma imagem profética. Reproduzo aqui na base do uso justo, sem intenção comercial e sem intenção de ferir copyrights.  



Monday, January 23, 2023

100 crônicas de Mario Prata (resenha)

Este texto, misto de crônica e resenha, foi publicado na página 8 da edição 7926 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 21/01/2023. Eu mesmo revisei o texto, o que significa que a detecção de erros é dificultada.  

Na semana passada escrevi sobre um sonho que me instigou a achar um livro do Mario Prata no meio da bagunça do meu quarto. Isso foi em 2018 e a obra me deixou dividido. A coletânea, chamada 100 Crônicas, foi lançada em 1997 e compila os textos que ele escreveu para o Estadão entre 1992 e aquele ano. Há uma versão atualizada, com a adição de mais de vinte novos artigos, mas essa nunca vi por aí. Inicialmente fiquei meio com o pé atrás, pois li algumas crônicas dele justamente n’O Estado de S. Paulo, na década de 1990, e as achei horríveis. A percepção que tinha é que ele era um engraçadinho sem graça e metido a sabichão. Deixei o ranço de lado e li uma crônica por dia dessa compilação. A maioria é boa, algumas são ótimas. Deliciei-me com a leitura de várias. No entanto, eu não estava de todo errado: algumas são horrorosas mesmo, estava certo à época também. É um cronista irregular e calhou de só ler a pior produção dele no jornal. Além das características que já tinha notado, o cabotinismo dele em contar proezas sexuais num tom debochado, e, pior ainda, numa crônica em particular, “Você Já Assediou Alguém Hoje?”, é de um machismo nauseabundo. Não é questão de se falar em bobagens como politicamente correto ou politicamente incorreto, sexismo já era escroto à época, era antes, continua a ser, sempre será. No entanto, não deixa de ser curioso que esta idiotice de bradar ser politicamente incorreto seja hoje um ativo da direita: Prata, apesar de uma crônica muito dúbia sobre ideologia neste volume, é (ou era) nitidamente de esquerda. Fica horrorizado com a aproximação entre FHC e Maluf e conta uma boa história sobre Antônio Benetazzo, um dos 434 mortos e desaparecidos, reconhecidos oficialmente, vitimados pela repressão iniciada no golpe de 1964, além de relatar seu próprio envolvimento no combate à ditadura empresarial-militar. Outro fascínio que suas crônicas traz são as memórias de escritores já falecidos, como Caio Fernando Abreu e Ana Cristina César. Além disso, ele incentiva seus leitores a conhecer outros autores, como o cabo-verdiano (do país africano, não da vizinha cidade de Cabo Verde) Germano Almeida e o surrealista brasileiro Campos de Carvalho, ainda vivo naquela década e idoso. Deste último, ele conseguiu numa visita um pequeno conto inédito, o primeiro texto dele em mais de duas décadas, e o publicou. Proporcionou-me uma pontinha de orgulho notar certa semelhança com minhas crônicas oníricas. Mario Prata é um bom escritor, mas um textinho do Campos de Carvalho que ele inseriu numa crônica é melhor do que todo o livro. Fica meu agradecimento eterno ao Prata por ter me apresentado a um escritor tão magnífico.

Daniel Souza Luz é revisor, jornalista, escritor e professor







Monday, January 16, 2023

Dica errada, mas funcionou

Esta crônica foi publicada na página 9 da edição 7921 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 14/01/2023. O texto não passou por revisão e foi baseada na minha Micrônica 2328, publicada originalmente em 22/09/2018.    

Em 2018 resolvi ler um livro de crônicas do Mario Prata, uma por dia, mas o perdi em meio à bagunça do meu quarto e temi perder o pique, até porque não sou o maior fã do mundo do cara. Porém, valeu a pena dar uma chance e descobri qualidades insuspeitas. Na noite em que não o encontrei, ao adormecer, sonhei que estava no apartamento onde morei durante a infância. Eu comia bolachas cream cracker e uma delas caiu no chão. Como estava comendo enquanto andava pelos corredores sem querer a chutei para o quarto do fundo. Fui pegá-la debaixo da cama e acabei encontrando o livro. Peguei-o e vi no meu celular, por coincidência, uma mensagem inbox do Mario Prata perguntando como eu estava. Respondi que estava bem e que havia lido um livro do James Lins. Ele, o Prata, havia se mudado para Florianópolis e perguntei como estavam as coisas na cidade. O detalhe é que realmente li isso (que ele havia se mudado para Florianópolis) na orelha de um livro que compila as histórias do pseudônimo James Lins, semanas antes desse diálogo onírico. Ao acordar, imediatamente procurei o livro de crônicas no meu quarto. Encontrei-o, mas não estava embaixo da cama, o primeiro lugar que vasculhei, mas sim numa pilha de impressos, uma bagunça de jornais velhos, revistas novas e livros.

Daniel Souza Luz é revisor, jornalista, escritor e professor


Mario Prata numa roda de conversa em Votuporanga/SP, 02/05/2012. Foto tirada por André Luiz D. Takahashi e reproduzida via licença Creative Commons


Monday, January 09, 2023

O 180

Este miniconto foi publicado na página 9 da edição 7916 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). 

- Sabe o filho do Jader?

- Sei... aquele filho dele que tem uma lojinha no centro?

- Ele mesmo.

- Sei sim.

- Foi preso.

- Mas por quê?

- Estava filmando um cadáver pro canal dele de true crime e a PM o prendeu.

- Mas como assim?

- Ele descobriu o corpo, tinha um saco em cima, e descaracterizou a cena do crime.

- Uai, mas como assim?

- Pois é.

- Mas não é ele que é puxa-saco da polícia?

- Pois é, pois é.

- E agora? O Jader foi lá na delegacia para soltar ele?

-  Ah, já soltaram.

- Já?

- Já, acho que pagou fiança, sei lá.

- Entendi. Achei que a PM gostava dele.

- Cê acha? De jeito nenhum. Vive dando problema. E ainda é lambe-botas.

- É... Esse povo não tem jeito. Mas não gostam dele por quê? O que ele fez exatamente?

- Ah, receptação.

- Jura?

- Juro.

- Rapaz...

- Pois é.

- Isso não sai no canal dele. Não é um crime tão true assim. Depois fala da Globo. 

Daniel Souza Luz é escritor, jornalista, professor e revisor


Foto de Mike (https://www.flickr.com/photos/txspiked/) reproduzida aqui via licença Creative Commons.