Monday, February 20, 2023

Anarquia em qualquer lugar (versão editada)

Este artigo/crônica/memórias foi publicado originalmente no fanzine Discos que F... Muitas Vidas em meados de 2022. Escrevi-o em 2021 a pedido do editor do zine, Renato Lauris Jr. Esta é uma versão resumida daquele artigo (ainda pretendo republicá-lo na íntegra), mas aqui faço uma correção importante: no original atribuí erroneamente o vocal de C´Mon Everybody ao Steve Jones. Editei esta versão para que coubesse na paginação do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG), no qual foi publicada na página 9 da edição 7946 em 18 de fevereiro de 2023.   

Fui criança, pré-adolescente e adolescente na década de 1980. Como todo mundo àquela época, geralmente conhecia uma banda ao ler a respeito e só ouvia depois – eventualmente, décadas depois. Nunca me canso de contar esta história: pouco depois do lançamento de Sid and Nancy, li sobre o filme e fiquei fascinado. O que nunca falei a respeito, no entanto, foi a circunstância engraçada: foi numa revista Veja no consultório do pediatra e eu, num ato de delinquência juvenil, arranquei a página da revista. Tenho guardada até hoje! Sei que Sid Vicious era um junkie violento – na verdade a revista já dizia isso – mas isso não me interessava ou interessa. O que me deixou tão maravilhado foi: o cara não sabia tocar baixo e foi ser baixista do Sex Pistols. Deu errado, mas podia ter dado certo. O que me maravilha foi exatamente o “não sabia que era impossível e fez” – só que fez errado, pois dane-se, inclusive foda-se esse maldito ditado. Um exemplo de vida. E o grupo chamava Pistolas Sexuais, eu estava aprendendo inglês e consegui entender – mas também é fácil de deduzir. Cara, como que podiam existir coisas assim? Acho que por isso eu, que era tão tímido e estudioso, resolvi roubar aquela página. O Sex Pistols já começou comigo do jeito certo: como uma má influência.

Era uma das minhas bandas favoritas. Sempre falava a respeito com alguns amigos. Só que eu nunca tinha ouvido, nem esses amigos. Isso foi nos idos de 1988. Nessa época, conheci através de programas de skate, fitinhas cassetes de amigos e até mesmo rádio os Ramones, Toy Dolls, Replicantes e Garotos Podres (só Papai Noel Velho Batuta no caso desses, que ouvia em rádio FM – incrível, não?). Já estava escolado no punk rock, creio. Formado no jardim da infância e pré-escolar. Mas os Sex Pistols continuaram inacessíveis até que ouvi C’Mon Everybody no Grito da Rua, um extinto programa da TV Gazeta sobre skate. Foi maravilhoso, mas não sabia que era uma cover do Eddie Cochran, pioneiro do rock, e muito menos que era o Sid Vicious que a cantava – curiosamente, me lembrava do nome dele e do guitarrista Steve Jones, mas não me recordava do nome do Johnny Rotten, então foi apropriado para aquele momento. Mas o grande dia chegou: minha avó Arminda me deu dinheiro no meu aniversário de 15 anos para eu fazer o que quisesse. Dava para eu comprar um disco de vinil, o meu primeiro.

Fui numa loja, já extinta, no centro de Poços. Foi em dezembro, um mês depois do meu aniversário, pois meus avôs moravam numa cidade vizinha, Botelhos, e só quando fomos visitá-los que ela me deu o dinheiro em vez de um presente, o que foi uma grande sacada dela e do meu avô Eurico. Na lojinha de discos tinha um cara olhando uns vinis e me chamou a atenção o Paul’s Boutique, do Beastie Boys. Ele tinha uns dreadlocks, mas era branco. Achei que ele manjava de rap e o abordei: “Beastie Boys é bom, né?”. Eu tinha lido sobre eles, mas creio que ainda não os tinha escutado naquela altura da vida. Ele me ignorou, como se eu fosse um fedelho petulante. Fiquei com raiva daquele escroto e fucei mais um pouco. Lá estava: Never Mind The Bollocks, Here’s the Sex Pistols. Perfeito para a ocasião, hein? O título já dizia tudo.

Não tenho muito o que dizer do disco em si. Naquela seção Discoteca Básica, da revista Bizz, tem um texto de um gringo chamado Peter Price, um percussionista que tocou com as Mercenárias e o Arnaldo Antunes, que é primoroso e diz tudo. Pesquisem nos sebos da vida, se pá tem na internet. Mas, em suma, o que ele destaca é o artificialismo do som: são guitarras e guitarras gravadas uma em cima da outra, “puxando o ouvinte pelo pescoço”, nas palavras do Price, que aqui cito de memória, reduzindo tudo a pó. Inclusive o baixo, que só consegui escutar depois de fazer aulas do instrumento. E foi Jones que gravou quase todas as linhas de baixo, Vicious não conseguia. Da minha parte, a produção, inspirada no conceito de wall of sound, do Phil Spector, realmente me impressionou muito, mas não foi só isso: a música era raivosa, parecia me chamar para a briga, não era divertida como os Ramones, os Toy Dolls, os Replicantes, o Papai Noel do Garotos e os próprios Pistols com Vicious no vocal. E o que puxava isso era o vocal de Johnny Rotten, que eu não conhecia e que me deixou de queixo caído. Exalava ódio. Era algo inaudito para mim.

Foi a abertura da porta para o hardcore, o thrash metal, o grindcore e outras formas de música mais extremas para mim. Claro que os Pistols soam inofensivos perto de sons assim. Hoje John Lydon não passa de um conservador patético que nada lembra o jovem Johnny Rotten ou ele mesmo, com seu nome verdadeiro, no começo do PIL – que me fascinou tanto quanto os Sex Pistols, até porque dava para escutar o baixo. Eu já estava preparado para o pós punk também. Só que isso é outra história.

Daniel Souza Luz é revisor, jornalista, escritor e professor.


A icônica capa de James Reid consertada à mão. A foto é de Tony McNeill, reproduzo aqui via licença Creative Commons e recomendo que se clique no link para se ler a fascinante história do vinil, o conflito familiar do qual ele foi centro e o conserto à canetinha pelo qual a capa passou. 


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