Tuesday, January 30, 2007

Interesses

É estranho. Não sei para quê isso. Falar tanto dos filhos, contar que o marido realiza, é um herói, botou o vizinho folgado contra a parede, não sabe administrar o dinheiro (mas é boa pessoa), peitou o cliente inadimplente, é rígido com as filhas porque quer o bem delas, vive se metendo em novos projetos, que pretende e arrebenta. Tudo isso para carcar o chifre nele em pleno horário de trabalho, nos cantos. Pior, se eu percebi sem ninguém nunca ter me contado nada, os amigos do Caroço devem saber de tudo.
Ela chora por tudo. Quando o Mullet chama a atenção, quando alguém faz algum comentário maldoso, quando a emoção das histórias que ela mesma conta sobe-lhe aos olhos. Manteiga, por isso. Ela não me pareceu tão frágil assim quando a flagrei na sala de manutenção com o Caroço. Entretidos que estavam, não me perceberam e pude dar meia-volta, incógnito.

As voltas que a vida dá


O chefão é muito engraçado. É daqueles caras que ainda querem dar a aparência de serem joviais e liberais. É daqueles que andam com aqueles rabos-de-cavalo minúsculos, com o cabelo sempre penteado para traz, com gel. Tenho que imaginá-lo sempre como era com o cabelo solto, não tem jeito. Tenho certeza que antes ele ostentava um mullet; no entanto , pelo jeito atual, o corte não é a mais assim.
Tiro e queda. Sabia. Enquanto ele procurava um documento durante uma conversa comigo, detive o olhar em uma foto sem moldura nem nada, jogada em meio a outros papéis. Ocupado e preocupado que estava olhando em outra gaveta, creio que ele nem reparou no que realmente me interessava. A mulher do lado dele é a esposa, bem mais novinha. A foto é dos anos 80, com certeza. O cara, além do mullet, tinha um bigodão. Achava esses caras muito bundões quando era pivete, era um jeitão de ser de gente que queria se integrar totalmente à sociedade, mas manter um visu "rebelde". Na verdade, esses sujeitos tinham um jeitão cafajeste, tipo como se fossem atores pornôs, mas ao mesmo tempo ostentavam esse disfarce de bom moço. Uma parada muito "vou ganhar dinheiro", classe média domesticada e cínica. É, agora um deles é meu patrão.

Monday, January 29, 2007

Pressa

"...queria dizer que me arrependo muito do que disse, mas acho que seria a única reação que poderia ter tido naquela hora. Vc é muito difícil. Admito que ñ sou uma pessoa fácil de lidar, mas nquela hora tudo que eu poderia fazer era aqulio mesmo. Naum sou uma máquina, vc me pressionou contra a parede e talvze eu até pudesse ser mais legal se fosse em outro dia, mas, naquela hra...".
Fui corrigir apressado os erros de digitação, encostei em algumas teclas que nem tenho idéia quais são, e apaguei todo o texto, que se fosse impresso daria umas cinco páginas. O campo de texto do e-mail não salva nada, não há um comando para voltar. Desisti definitivamente de me explicar e isso foi o fim.

Wednesday, January 24, 2007

Manhã

As nuvens desvanecem-se repentinamente e o sol nasce quadrado no monitor do computador, situado em frente a uma velha janela quadriculada, que ainda não foi trocada, um aspecto do prédio que insiste em sobreviver e que evidencia sua verdadeira função.
Quando era adolescente, odiava aquela tirinha Dilbert. Por puro acaso, procurando informações sobre computadores, topo com uma em que um ex-fotógrafo diz que havia provado o “doce néctar da liberdade”, mas agora confinado no escritório, começa a surtar. É estranho ver seu currículo resumido em poucos segundos, tempo suficiente para tornar-me um fã definitivo também. Agora eu entendo.

Tuesday, January 23, 2007

Cidadãos de bem

A chefia sempre gosta deste tipo de pessoa. Carcaça, Orca, Lesma e Escarro. Os caras são repugnantes e subservientes, mas só os percebo assim porque convivo com eles. Se não fosse o caso, esqueceria completamente deles, assim como me esqueci até dos nomes de outros cuzões com quem convivi. Todo ignorante faz questão de dizer em alto e bom som sua opinião sobre tudo. Estes caras entendem de tudo, é impressionante. Eles sabem exatamente o que fazer se estivessem no lugar dos engenheiros, médicos, jogadores de futebol e políticos sobre os quais falam o tempo todo, e também entendem de física nuclear, nutrição, jornalismo, política externa, tudo, tudo, eles são a encarnação do ideal iluminista. É tanta erudição que o resto da humanidade tomaria um choque se os conhecessem, então isto os paralisa e eles passam o tempo cumprindo rotinas burocráticas, pois eles têm que ter paciência para esperar o aperfeiçoamento mental de nós, meros pós-macacos, para então guiar a próxima evolução de espécie. Temo que eles morram esquecidos.
É muito alto astral, todos eles brincam o tempo todo, mal conhecem alguém e já começam a sacanear numa boa, é tudo de boa, porque temos que ter um bom clima de trabalho, sabe? E é um clima maravilhoso, todo mundo pode dizer o que pensa, e dizem mesmo. O lugar-comum compartilhado é a fonte de toda a felicidade. Brigar para quê? Melhor ficar com fama de quietão esquisito, porque é estranho demais ter a sensação que estou ensaiando um diálogo escrito para o capítulo da novela que vai ao ar hoje à noite. Todas as tréplicas estão decoradas: E se fosse com sua família?, A gente tem que dar graças a Deus por trabalhar e ter saúde, Eu fiz a faculdade da vida. Todos muito trabalhadores e decentes. Sei supostos detalhes da vida sexual de várias meninas que encontro na rua, e com as quais nunca troquei um simples oi.

Monday, January 22, 2007

Vivaz semelhança

Sentei no meu trono do banheiro do fundo, abri o jornal e me senti um rei. Consegui ficar esquecido um bom tempo, quando voltei ao meu posto aparentemente não tinham sequer notado minha ausência e nem notaram minha presença, de qualquer forma. Foi tempo suficiente para descobrir que o "CEO" não gosta do Lerdo dedurando o tempo todo os deslizes dos outros funcionários no horário de expediente. O chefão conta para seu advogado que sempre calculou na relação custo/benefício esse tempo desperdiçado pelos funcionários, o que ele não suporta é ter o próprio tempo perdido ao saber detalhes de bobagens que não lhe interessam. Ouvindo a conversa, fecho o jornal o mais lentamente possível, para não fazer nenhum barulho, e descubro que o Lerdo só permanece na empresa por ser sobrinho de um vereador. Eles acabam de tomar um cafezinho, bem mais rapidamente que os funcionários. Enquanto escuto a discussão sobre a churrasqueira do Clube Náutico desvanecer entre passos no corredor, vou me arrumando devagar para sair do banheiro, dando tempo suficiente para ninguém imaginar que eu estava no banheiro.
Prestes a abrir a porta, escuto o Torto e o Babuíno trotando aos risos. Estavam falando mal do chefinho, se referindo jocosamente ao modo cheio de dedos como ele tratava seu "adevogado" e fazendo conjeturas a respeito de quão fracassada seria a filha dele, de tão mimada que a garota era. Justo eles, que tanto adulam o cara, buscam ela na escola quando o CEO estava ocupado, repetem suas expressões e até copiam suas roupas. Dois completos filhos da puta, ao menos pensava que eles tinham escolhido o seu lado, mas eles só miravam seus respectivos umbigos. Posteriormente ouvi detonarem-se mutuamente entre os colegas, separados apenas por uma divisória, sussurrando. Por motivos que já esqueci, porque eram decididamente irrelevantes. Eles se estenderam tanto no papo furado sobre as finanças da empresa que fiquei com saudade da minha mesa.
O Lerdo, esse sim era puro. Dedicado. Transparente. Só ligava para casa usando o celular, nunca o telefone do trampo. Sempre escancarando sua intimidade. Todos se sentiam à vontade para falar com ele. Fui hábil o suficiente para simular uma abertura ao descobrir o sobrenome dele. Era Fagundes. A princípio só eu o chamava pelo sobrenome, do qual parecia gostar muito, e satisfazia-se com as respostas genéricas com que retrucava suas perguntas. Boris era o único ali que também gostava de quadrinhos. Nunca comentou nada, mas definitivamente percebeu o que se passava. Tratou de popularizar o uso do Fagundes. Não podia mais zoar o Boris que ele apelava e dizia que sempre esquecia de trazer as Piratas do Tietê para eu relaxar um pouco no serviço. Fico imaginando o que se passava pela cabeça do povo quando eles escutavam isso. Com certeza percebiam que era piada interna, mas deviam achar que era referência a travecos, putas ou a algo com conteúdo sexual constrangedor. Um dia o Ogro criou coragem e perguntou o que diabos eram as Piratas do Tietê que um dia deveriam aparecer. Surpreendido comigo mesmo, respondi que era o modo como nos referíamos aos canhões de Sampa que tentavam nos atacar quando moramos em uma república lá, eu e Boris. Se era canhão, então associávamos a mina a pirata, e se era de São Paulo, tinha saído do esgoto do Tietê. Nunca tinha visto a fuça de Boris em Sampa. Disse tudo com tanta naturalidade que a história foi absorvida sem questionamentos. Boris, fascinado, disse que deveria tentar escrever. Até parece.

Sunday, January 21, 2007

My War

Usar uma camiseta do Minor Threat não significa mais nada. Antigamente, e quando digo antigamente nem quero dizer tanto tempo assim, avistar alguém com uma camiseta de banda com a qual você se identificasse já atraía a atenção e normalmente se entabulava uma conversa. Dois dos meus melhores amigos conheci deste modo. Não os vejo pessoalmente há uns bons anos. Pelo menos desde o fim dos anos noventa. Antes éramos muito poucos. Hoje, quem sabe o que é, não dá a mínima. Quem não sabe, deve achar que são estampas de grifes que fazem roupas caras para promovê-las em novelas. Ainda bem que nunca tive o desprazer de ver uma global vestindo um agasalho do Bad Brains, ou algo do gênero.
Rendido à tecnologia que disseminou toda essa informação e indiferença, escondo-me em um posto da PM escutando Polícia – das Mercenárias, que fique bem claro – no MP3 Player. A chuva de verão me encharcou a poucos metros do ponto de ônibus. Reconheço um dos PMs que está lá, amigo de infância. Cumprimento sem graça, nem me lembro o nome dele. Na verdade, éramos apenas colegas na escola. Uma menininha entra de repente, já bem mais molhada. É a filha de Luque. Ela sorri imediatamente para mim. Após alguns segundos em que ambos olham para as colunas de águas trazidas pelo vento para fustigar em intervalos regulares as lonas de barraquinhas e lojas, molhando quem se amontoa embaixo delas, ela se vira e fixa a atenção no meu peito. Aponta para ele e diz algo, mas não escuto porque estou com o fone. Surpreendentemente, quando libero os ouvidos, ouço-a chamar pelo nome e perguntar se eu gosto mesmo de Seven Seconds. Tinha me esquecido que a vó costurou este patch para mim no bolso da camisa. Todo mundo achava que era a marca da roupa. Descubro que o nome dela é Rê. Só isso, pelo menos é o que ela diz. Não sei se é invenção dela ou maluquice do Luque, que não a apresentou apropriadamente para mim, no entanto sei que ele era fã do Angeli. Bem, de qualquer forma, ela é bem legal, fala-me sobre novas bandas das quais nunca ouvi falar e pergunta-me sobre shows em que fui, discos que ainda tenho e sobre como era o pai dela. De relance percebo que os policiais, que estavam afastados, olham disfarçadamente para nós e dão risadinhas; pelo jeito estão fazendo comentários sacanas. Por isso que meu colega de infância não é amigo; é um deles, e eles são o que são.

Saturday, January 20, 2007

Contradição salutar

A natureza humana estraga quase toda tentativa de superá-la. É raro notar que não somos muito diferentes de quem odiamos ou apenas desprezamos. Vimos, eu e Ariel, um taxista escorregar na calçada cheia de limo. Tentamos ajudar o figura, que, de óculos escuros, levantou-se apressado tentando manter uma expressão imperturbável. Como se fosse possível que um lapso temporal houvesse bloqueado a visão daquele tombaço. Apesar de tentarmos nos ignorar, uma mera gargalhada inconveniente bastou para selar as pazes na entrada da firma. Ficamos nos justificando, criando chicanas para explicar que não fazemos o que condenamos em boçais. Conter a espontaneidade é papo furado de história de espionagem, foi mais ou menos essa a linha de argumentação. Foi tão espontânea essa desculpa que até hoje acredito que ela é convincente.

Friday, January 19, 2007

220 horas por mês

Morte em vida. Não é o tempo todo. Há uma tendência a exagerar isso. Há um ou outro momento bom. Quando chega o fim do dia, esses momentos, no entanto, não compensam o que ficou apodrecendo nas gavetas e armários que começam a ficar malcheirosos, nas caixas de mudanças que permanecem há anos fechadas na casa nova, à espera do tempo desperdiçado em frente à TV para não remoer todas as perdas materiais, morais, sentimentais e financeiras. Vontades e sonhos para um futuro senão melhor, pelo menos diferente, para contar com um mínimo de estímulo, são desperdiçados na busca do arquetípico dinheiro que não nasce em árvore e que mesmo assim não deixa de ser uma perda monetária, pois não fossem escolhas desastradas do passado, tenho certeza que ganharia mais. Pensar em tudo isso é inútil, todo mundo deve pensar nisso todo dia, mesmo que não seja algo tão elaborado em suas mentes. E principalmente não tem valia nenhuma porque quanto mais ganharia menos tempo teria para mim mesmo, embora me torture constantemente pensando em mais dinheiro e em mais tempo. Acabei em contradição, pois passei a vida dizendo para meus pais que grana não é importante e o principal era não aceitar fazer qualquer trampo sacana para ter um bom salário. Por isso dispensei trabalhos horríveis e caí em um trampo também horrível, com o qual me identifico menos ainda que os outros, mas pelo menos sou obrigado a sacanear menos gente. Morte em vida de qualquer forma, tudo isso é obviedade, ninguém agüenta mais me ouvir repetir isso.
Ninguém em casa e entre meus amigos. No trampo não abro o bico sobre esses assuntos, exceto uma ou outra menção para colegas em que tenho confiança. Curioso que quando criança, pelo menos pré-adolescente, é difícil lembrar, mas pelo menos desde quando tinha uma compreensão melhor de como seria a vida adulta, ficava me perguntando se teria um emprego que me desse seguro de vida, plano de saúde e um ambiente que pareceria daquelas firmas que via em revistas, com balcões e chão reluzentes que levavam a ambientes com cores harmônicas, mesas arrumadas e equipamentos de última geração. Tenho tudo isso. Devia me sentir um fodão. Tudo é imaculadamente limpo e mortiço. Todo mundo é engraçado, mas todos os risos são forçados. Nada a se conversar, a não ser sobre futebol, TV, que o governo é uma merda, que precisamos de mais incentivos fiscais e que a polícia devia mandar todos esses marginais para o paredão. E tem as piadas e as brincadeiras, a maioria se chama por diminutivos carinhosos pela frente e pelos apelidos de fato pelas costas. Portanto, nada digo para não arrumar mais confusão além das que travei quando entrei aqui, chamo todos pelos nomes e todos eles têm outros nomes na minha cabeça. Eles me devem chamar de outras coisas pelas costas mesmo. Carcaça, Orca, Ogro, Lesma e Escarro. Há Babuíno, Lerdo e Torto, uma panelinha de puxa-sacos. O Caroço não é tão ambicioso, ele só se ocupa em comer a Manteiga, que é casada. O Mullet é o chefe. Ariel e Boris são os únicos amigos, mais para colegas, na verdade. Toda vez que saio com eles ou me vejo naquelas malditas situações de encontro sociais com o pessoal da empresa só escuto conversas sobre o serviço e a vida de quem trabalha lá. E eles só têm uns aos outros em seus círculos sociais, pelo jeito, ou seja, não têm amigos. Prefiro ter meus amigos de sempre, ainda que raramente os veja. A faxineira é o único ser que me parece um humano, mas nunca lembro o nome dela. Ela nunca diz nada, não finge que está viva. Gente boa.

Thursday, January 18, 2007

Teorizando em cima de tretas

Se tem algo que odeio tanto quanto neguinho metido a politicamente correto é o tipo que defende o politicamente incorreto. Todos burros. O primeiro renega uma das mais preciosas qualidades inerentes do ser humano, que é o dom de ser contraditório. Veja bem, contraditório, e não hipócrita. Viver paradoxos pode ser uma experiência fascinante, desde que a situação não redunde em angústia. Embora exista angústia fascinante; aquela que tanto atrai biógrafos, roteiristas de cinema e bilheterias. O segundo é metido a espertinho e para justificar a falta de escrúpulos e seus preconceitos dá uma de rebelde - enquanto na verdade querem que tudo seja a mesma merda que sempre foi - promovendo um tipo de maniqueísmo tão cretino quanto o formulado pelos dogmatistas do politicamente correto. Se o primeiro tenta algo, o arremedo de raciocínio do segundo é "faço o contrário". Estes falsos antagonismos cujos apóstolos que gostam de enfiar-nos goela abaixo, como se tivéssemos algo com isso, como se não existissem alternativas aos manuais de etiqueta disfarçados de idéias, o que inclui direita e esquerda, ateísmo e credo, enfim, todos estas cláusulas pétreas religiosas.
Pessoas que são estes estereótipos ambulantes existem, é fato. Esses são os que acham que pensam, enquanto bombardeiam constantemente o livre pensar. No dia-a-dia mesquinho e banal, é diferente. Não tem preconceito culpado ou preconceito disfarçado de irreverência subversiva. O que existe é preconceito desbragado mesmo. Ou o disfarçado, mas nunca culpado, apenas cauteloso quanto às conseqüências da discriminação . Tanta chuva, preso no semáforo, máquina estúpida, não percebe que os carros e ônibus não podem se mexer esteja verde, vermelho, amarelo, apagado, e fico remoendo essas idéias por um simples "viado" que disse com a mesma inocência de sempre, embora não tenha justificativa para isso, apenas explicação. O que devia bastar. Quando era criança, não fazia idéia do que fosse homossexualismo (Freud diria que sim, mas ele está morto e não me importo). Quando ouvi alguém xingar alguém de viado, achei que era a mesma coisa que babaca, idiota, folgado. Na verdade, para mim está bem claro que o sentido é esse, mas isso é idiossincrasia. Só sei que hoje perdi um amigo por causa de um xingamento dito em tom de brincadeira. O engraçado é que se sempre fui amigo, então não vejo problema nenhum em ele ser viado - no sentido real da palavra, não no sentido pejorativo. Pois é, sei que é uma contradição empregar estes sentidos, mas não vou pedir desculpas.

Wednesday, January 17, 2007

Cinza

Segunda-feira fria como se fosse inverno, em pleno verão. O congelador da geladeira de São Pedro está vazando para gelar nossos rabos nas ruas. Deus deve estar querendo que realmente sejamos gratos por nossos trabalhos, tal qual pedem as correntes que irrompem aos borbotões as nossas caixas de e-mail, pois pelo menos estamos enfurnados em um escritório quente, longe da rua. Enquanto tenho esses pensamentos cretinos, que fariam meus avós sentirem-se tristes por eu ser tão desrespeitoso com que eles tanto valorizam, resolvo me rebelar e descer para tomar um café na padaria que fica uma boa chuva de molhar bobo adiante. E assim vou fingindo que me rebelo contra algo.
Rua abaixo, topo com a filha do Luck Luque, que me diz um simpático "oi!", para minha total surpresa. Quando retribuo o cumprimento, ela já passou por mim. Ela deve ter escutado, mas definitivamente devo parecer gagá. Pena que certamente não o sou de fato, pois senão estaria agora em casa recebendo papinha de colherzinha na boca. É, acho que estou merecendo levar um chute, só fico pensando essas merdas. Pelo menos está tocando Cretin Family na minha cabeça. Oi! Oi! Oi!
A dona da padaria insiste que eu não preciso pagar o café. Tudo bem para ela, eles iam acabar me voltando troco a mais, lesados do jeito que são. Este logro de que temos alguns privilégios é tão pequeno quanto eficiente para nos fazer acreditar que ganhamos o dia, ou que somos de alguma forma especiais, mas não caio nessa.

Tal qual nossos pais

Foi em 1989. Estava andando com um disco do GBH debaixo do braço e o mecânico que morava na rua de baixo me chamou e pediu para ver o disco. Um urso tatuado e mal-humorado, ele nunca tinha olhado na minha cara, mas de repente ficou mais bonzinho. Na oficina dele, na qual baixava de skate com meus primos e o pessoal da rua, ouvi pela primeira vez Exploited, Dead Kennedys, Circle Jerks, Cólera, Inocentes, Discharge. Um ano depois ele estava viciado em um disco que ele achava demais, mas no qual nunca vi nenhuma graça, do Gang Green. Era muito chato, com exceção de uma música. Naquele ano, todo mundo passou a ouvir thrash metal. Eu achava legal, mas todo mundo começou a fazer aula para ser músico e passaram a renegar as raízes. Só eu e aquele tiozão, que tinha sido punk de moicano no começo dos anos 80, continuamos nos ligando em punk rock. O cara se chamava Luck Luque, algo assim. Nunca soube o nome dele, na real, engraçado isso. Lembro que em 1993, na última vez que o vi, mostrei para ele os CDs do Seaweed e do Sunny Day Real Estate que minha prima trouxe para mim dos Estados Unidos. Lembro-me que disse para ela "Compra qualquer coisa que tenha um selinho escrito Sub Pop". O Luck Luque odiou aqueles negócios que eu estava achando que eram tesouros secretos. Sacanagem, tava crente que estava compartilhando um puta achado com o "pai" de tantos sons bons. Fora a encheção por ouvir "essas merdas aí", foi uma cervejada legal. Depois cada um foi para seu canto, o cara mudou e perdi contato. Doze anos depois reencontrei o Luck Luque por acaso no shopping. Com uma filha "emo", viciada nessas merdas aí das quais nem lembro o nome. Por incrível que pareça, ele se lembrou do dia que mostrei os CDzinhos para ele. Como a mina - esqueci o nome - que ia casar com ele tava por perto na oficina, já grávida (mas eu não sabia disso), ele me culpou pelo gosto musical da garotinha. Logo começamos a discutir como sempre fizemos, eu argumentava que nem sabia o que era emocore na época, mas que as bandas eram boas. Era outra coisa, mas ninguém mais ouve aquilo. Ele ainda repetia o discurso de tantos anos atrás: "vocal de florzinha, guitarrinha enfeitada", sei lá o quê. A menina ficou tão constrangida quanto eu ficava quando meu pai ficava falando sem parar da buceta cabeluda da Cláudia Raia perto dos meus amigos quando eu nem tinha doze anos. E era a Cláudia Ohana que tinha um tapetão.

Monday, January 15, 2007

Bom dia

Recebi dez reais de troco por uma nota de cinco reais para pagar apenas dois cafezinhos. Sempre alertei as meninas que trabalham no caixa - sempre acontece com mulheres, "Talvez seja o pendor que elas têm para gastar", pensa meu lado machista e escroto - que elas estavam me dando troco a mais desde que, ainda adolescente, descobri que a diferença no caixa era descontado do salário delas. Antes, é claro, embolsava o lucro e achava que a loja tinha mais que se fuder mesmo. Pela primeira vez, após mais de dez anos, quase não me manifestei e mantive comigo a nota de dez por alguns segundos. Ameacei sair mas algo me segurou. Foi a moça que estava na frente, abrindo o guarda-chuva. Resolvi voltar e com um sorriso amarelo expliquei que "estava achando" que tinha recebido para tomar café. "Fui bem pago para tomar cafezinho, igual funcionário público", arrisquei um gracejo. Recebi de volta o troco correto, um muxoxo e a cara de bosta da mocinha.

Domingo desperdiçado

Todos os carros estão de volta ao lugar. Os gatos espreguiçam-se e afiam as unhas para dilacerar alguns passarinhos que nos acordam, lembrando-nos que domingo, seis e meia da manhã, é a melhor hora para ficar estar sozinho nas ruas do bairro. Nessas horas só se cruza com papas-hóstia e almas penadas chegando de baladas. Desde que o sol tenha saído, tudo parece bom por uma meia hora, às vezes nem isso. Depois, tudo o que peço é algumas poucas horas para ficar jogado no sofá, lendo o jornal. Futuro do pretérito. Se Asimov dizia que seria assim há cinqüenta anos, a história se repete como farsa sem nunca ter conhecido uma nesga de autenticidade. Então tá, também estou querendo fazer algo, fazer, fazer. Ler jornal é se ocupar demais com quem não tem nada conosco. Dormir de dia é morte em vida. Só queria ter a sensação que estou vivo, olhando para as partículas de poeira que dançam na luz, tudo muito bom por muito tempo. Não deu, tem isso para fazer, aquilo, chega meia-noite e ainda está tudo atrasado, sem sono e amanhã pegamos no batente cedinho.

Saturday, January 13, 2007

Ourobouros

Aconteceu o que jurei que jamais permitiria acontecer. Quase todo sábado à noite passo dentro de casa. Sempre fiquei abismado com o que se passava com meus pais, eles sempre permaneciam em casa vendo TV e nunca havia nada de bom passando. Não pareciam felizes, ao mesmo tempo em que aparentemente estava tudo muito bem assim. Faz sentido. Em um casamento convencional, sábados à noite fora de casa são jantares em restaurantes caros, nos quais se paga para ficar um olhando para a cara do outro sem saber o que dizer. Ficar sentado no sofá fitando estranhos que não devolvem olhares é menos constrangedor e mais barato. Ou então o que se tem são compromissos sociais, jogos de ilusões tão desagradáveis quanto compromissos profissionais. Descompromisso é imaturidade. Sair para um show de punk rock tal como antigamente porém cheio de garotas de doze anos vestidas como a Siouxie Sioux com camiseta do Good Charlotte junto as suas mães "alternativas" temporãs fazendo-se de muito loucas, para o teatro com comédias vagabundas e nenhuma saudosa montagenzinha vagabunda do Shakespeare, para o barzinho em que há o barulho e o desrespeito pela assepsia que tanto faz falta nos restaurantes de bacanas, porra, tudo isso é dar de cara com um monte de gente que não te conhece e que te encara como uma relíquia que insiste em não ser posta em um ambiente com controle de temperatura e umidade. Claro, os amigos estão por aí, mas, como não ligo para eles em outras ocasiões, me sinto mal por só lembrar de contatá-los quando estou com vontade de sair, o que aprofunda e arreganha o fosso temporal e físico ao qual nos condenamos. Minha sorte é quando o filhão não dorme cedo e posso passar a noite brincando com ele. Mas quase sempre ele passa o dia correndo, andando de bicicleta e se divertindo pra caralho, portanto só me resta sentir a mesma sensação que tinha quando tinha cinco anos e só pegava a TV Tupi, a Globo e a Record em casa. Depois que acabava o Terra de Gigantes no começo da noite de sábado, não tinha nada para fazer além de brigar para ver um programa menos chato na TV. Só que antes era com minha mãe. Dá na mesma, mãe e esposa odeiam nossos amigos, por mais legais e bem-intencionados que eles sejam.

Friday, January 12, 2007

Contra-senso

Todos os carros daquele lugar estavam com os faróis arrebentados. Permaneciam estacionados lá o dia todo, mas sempre saiam à noite. Nunca via ninguém tirando-os de lá, mas o local permanecia vazio a noite toda. Todo sábado é isto. Era uma nota tão fora do tom em dias harmoniosos passados juntos à família que devia ter tentando entender aquele despropósito, mas antes que pudesse realmente pensar sobre o assunto me perderia madrugada adentro carregado por algo em que mal havia reparado em meio às minhas escapadas para o escritório de Patrícia, enquanto aproveitávamos dos horários dos cultos de nossos cônjuges e filhos para irmos aos céus. Quando estamos obcecados para "reviver" um passado idealizado deixamos até mesmo de especular sobre estas pequenas disgressões do dia-a-dia.

Thursday, January 11, 2007

Racional

Só olhei porque o repentino barulho do saquinho plástico atraiu meu olhar distraído. Justo quando passei pela esquina tinha um gordinho cheirando cola no beco sem saída. Burro, eram oito da noite, horário de verão, ainda estava claro. Sempre achei sossegado andar a pé à noite por aquelas quebradas antes de chegar no conjunto de predinhos onde mora minha mãe. Sempre topo com os manos, passo batido no meio deles, ninguém me enche o saco por eu ser branco, classe média com roupa social. O mais sensato a se fazer, portanto, é andar a pé para fazer exercício e economizar uns trocados da gasolina. Mas justo o gordo de merda se apavorou quando dei de cara com ele. Os moleques que estavam do outro lado da rua começaram a rir e ele ameaçou dar porrada neles. Deve ser o cara que escrotiza a turma. Pela cara, a montanha de banha não tinha mais do que 14 anos. Muito, muito novinho mesmo. Mesmo assim era insalubremente maior do que eu, e depois de ficar baqueado por uns cinco segundos, saiu correndo atrás de mim murmurando meias palavras desconexas. Que imbecil, mesmo sendo um bosta gigante o cara deveria era correr atrás das menininhas, metaforicamente falando é claro, como fazem os moleques mais espertos. Mas claro, puta que o pariu, são os garotos mais velhos que pegam as meninas da idade dele; se para um garoto normal de 14 anos já não rola muita coisa, imagina para um hipopótamo proto-junkie. Caralho, fiquei de cara, minhas pernas bambearam, mas me virei e como não ia correr de uma criança, ainda que fosse uma das mais perigosas, o encarei e ele parou, com uma expressão alucinada. Tinha uma caçamba do lado por sorte e eu já ia pegar uma pedra para inevitavelmente acertá-lo. Como que se pressentisse, ele abriu a porta de uma Hilux - o veículo perfeito dos abonados que não respeitam pedestres e nem ninguém que eles julguem que sejam pobres e portanto dispensáveis - que estava estacionada ao lado e entrou, ficando sentadinho que nem o covarde filho da puta e de papai que ele é. Virei e fui embora sem precaver-me, nem olhei para trás. Dois quarteirões depois deparo com dois casacões do Facção Central tomando uma batida de solícitos homens de bege, que calmamente respondem-me que os elementos apresentavam atitude suspeita.

Wednesday, January 10, 2007

A vida é boa

Devem ser as roupas. Não é possível que apenas mais hormônios na comida resulte nisso. Não acredito que não repararia nos peitos das meninas da minha idade na época do colegial. É, não sou da época do ensino médio. Sinto-me tão obsoleto quanto quem me dizia que havia cursado o ginásio sei lá onde há trocentos anos atrás. Porém, as meninas pareciam mais crianças mesmo, creio que não estou edulcorando o passado. Pelo menos as roupas eram de meninas, mesmo que elas fossem “mocinhas”. No entanto, em tudo quanto que é lugar, borbulham garotas com rosto de criança e seus decotes enormes desvelando seios que insinuam que serão melões, como eu e meus colegas dizíamos, mas isso já deve ser gíria de tiozinho. Não consigo deixar de reparar e achar legal e ficar um pouco chocado, tanto com elas mesmas quanto comigo. Sinto-me estranho, meio pedófilo, mesmo que quase todas tenham papo de adultas. Ninguém mais é ingênuo, mas elas têm modos inevitavelmente inocentes, de quem não sabe em qual esparrela está enfiando as asinhas, embora muitas vezes tenham ciência intuitiva disto. Meninas de 15 anos grávidas quase não escandalizam mais ninguém. Lolitas o caralho, este papo é passado mofando estantes ensebadas, o padrão atual é esse e quem ficar moralmente derrubado com isso nunca mais se levantará. Mas odeio ser meio cafajeste, embora esta seja minha natureza; olho mas não chego perto e então tudo bem. Quando vejo uns moleques de 18 a 16 anos observando com desejo e abordando garotas que, em média, são uns quatro anos mais novas do que eles, aí sim sinto que estou diante de um predador que envolve – com um misto de empolgação e frieza – uma vítima que demorará a se reconhecer nessa condição. Talvez porque elas achem que estão curtindo enquanto podem. Ou seja, devem ser mais espertas do que eu e nem perdem seu tempo pensando no assunto, preferindo vivê-lo. Em geral, sempre é tranqüila minha consciência a respeito do meu olhar perscrutador da feminilidade indecisa quanto a ser impúbere, com exceção de quando sou flagrado fazendo isso.

Tuesday, January 09, 2007

Estranhamento

Distraído, na verdade preocupado com a chuva que vejo cavalgando morros a toda brida uns dois quilômetros adiante, quase não a vejo passar reto. Com certeza, ela não estava interessada em mim. Júnior. Claro, não a chamava assim às claras. É que ela tem o mesmo nome da mãe, que engravidou quando tínhamos quinze anos. A minha maior decepção adolescente; fiquei tão enojado por ela não ter correspondido minha ilusão não-verbalizada de termos nossa primeira vez juntos que esperei uma década e meia para finalmente tê-la em meus braços e logo perdê-la novamente, poucas semanas depois. Nunca contou para mim nem para ninguém quem era o pai da menina. Dizia que apenas os pais dela saberiam quem era, além de, talvez, os avós paternos. Nunca entendi o porquê. Como também tinha quinze anos à época, perguntei se a menina se chamaria Patrícia Júnior. Ela se conteve e riu o mais discretamente que pôde, para não me humilhar, esperando os colegas de sala que comiam lanche ao lado saírem de perto para então me explicar que o sobrenome Júnior só servia para homens. Ter contato com Júnior treze anos depois e contar que fui o primeiro a saber a respeito da existência dela, além dos pais, provocou um efeito estranho na menina. Nestes dois anos, desde o episódio, ela evitava-me deliberadamente. Não teria nada demais, mas ser rejeitado por mãe e filha adolescente com intervalo de poucos dias doeu. Afetar intimidade com quem não conhecemos ao supor que exista uma ligação sentimental – como muitas vezes fizeram conosco parentes distantes e, pior ainda, os compadres e comadres de nossos pais – é uma cagada que só não provoca aversão em invertebrados.

Monday, January 08, 2007

Febre

Apressar a morte não tem sentido. A gente vai se fuder de acordo mais cedo ou mais tarde mesmo. Não deixei de ser obcecado pela idéia. Tomando café forte sozinho com a faxineira da firma, ainda bem, em um canto da cozinha, pois ela nunca fala nada, tenho o estalo, insight, inspiração, qualquer um destes sinônimos aí. Podia lançar um best-seller de auto-ajuda com isso, se soubesse escrever tão mal quanto eu gostaria. Ah, como deve ser bom ser picareta! Minha idéia é a seguinte: fazer que a idéia da morte seja positiva para quem está com depressão. Todo dia, desde aquele momento, eu penso, “vou morrer hoje à noite, vou morrer hoje à noite, vou morrer hoje à noite”. Às vezes penso nisso com tanto ardor que meu peito dói. No geral, entretanto, é funcional. Tenho que correr para fazer o que me interessa, o tempo todo. Tenho só até às dez da noite, incluindo o horário do serviço e o da aporrinhação fora do trabalho. Tenho que resolver o máximo dos MEUS problemas, tanto quanto o possível, antes de me deitar. Quando deito, morro. No dia seguinte, geralmente, sou outro homem. Pior, mais velho, mais cansado. Porém, com mais pressa.

Zelo

A idéia tornou-se recorrente. Tudo o que vem acontecendo vem deixando-me mais desgostoso. Nada permanece. A maioria dos meus livros, que guardei com tanto zelo durante todos estes anos, foram roídos por traças, carunchos, sei lá. Trabalhei demais, tornei-me um workaholic ao longo do ano passado. Nem me senti pressionado a fazer isso por patrões ou colegas, mas sentia-me tão angustiado ao chegar no horário certo em casa, com tantos projetos em mente e tão pouco tempo para viabilizá-los, que passei a dar uma de rapaz responsável. Não conseguia escolher um dos meus sonhos para concretizá-los, deixava tudo pela metade. Por acaso, encontro-a na rua. Irritado com o abandono e com tudo o mais, disse o que sempre dizia nas antigas. Que estava com vontade de morrer. “Não fala isso, você é tão novo, tanta gente queria ter sua saúde”, blábláblá. Conhecia a velha ladainha. Desta vez falei com sinceridade. Antes dizia isso para que ela me acalentasse depois do esbregue. Mas todos temos uma imagem a gelar agora. Sim, gelar. Seremos apenas isso, até o fim, porque nossas escolhas foram encerradas, agora temos que vivê-las e não há volta. Ao menos, ela me aquece com um café, mas, enquanto conta-me as travessuras da filha e as nóias do corno que a sustenta, não consigo deixar de pensar de que preferia quando ela se esgueirava debaixo das minhas cobertas para sumir assim que eu adormecia.

Travo amargo

Fiquei na casa dela cuidando da menina. Ela é pequena demais para lidar com uma dureza destas. Não entenderia nada, se chatearia. Foram compreensivos no serviço. Ou ao menos o fingiram ser. A mãe não pensa que seja boa idéia confrontá-la com uma idéia ainda impossível de explicar. Estava achando bom demais ficar longe da papelada naquela manhã. Jogo bola tão desajeitado quanto uma criança, vejo desenho animado na TV. Tão bom. Ela topa ver desenhos que são da minha época, para minha felicidade e para a dela, que está vendo algo diferente. Repentinamente, ela se vira para mim. “Esses bichinhos voltam quando acertam eles de jeito, mas a gente não volta quando é assim, né?”. Disse que às vezes sim, não é justo que ela seja tão desesperançada quanto os adultos, mesmo que as crianças estejam amadurecendo tão rápido. “They I´ll learn much more, than I never know...” cantorolo para ela, imitando a voz de Louis Armstrong. Não tenho certeza se a letra está certa, mas ela ri muito.

Misantropia

Recebo a notícia no meio da tarde, pelo telefone. O pai da minha cunhada havia falecido. Devia estar consternado, ao menos aparentemente, para oferecer um mínimo de solidariedade. Tudo que sinto é fastio. Talvez minha cara emburrada ajude-me nestas ocasiões nas quais todos têm aquele olhar perdido. Creio que isolo tanto minha mente, pensando no que tenho que fazer e jamais farei enquanto deixo-me vencer pelo imobilismo ritual dos velórios, que irradio a impressão de perda. Interiormente, apenas lamento a perda do meu tempo. Sair do meu canto nestas ocasiões significa dar margens para conversas paliativas que não fazem jus àquele que partiu. Ninguém conversa comigo. Ótimo. Quando deixo o local, pensando que já havia passado do horário do expediente e que estava perdendo minhas parcas horas de lazer, sinto-me mesquinho. Estraguei a minha noite, e mesmo assim culpo o defunto. No dia seguinte, acordo tão pequeno que não tenho coragem de ir ao enterro.

Thursday, January 04, 2007

Cessar

Naquela manhã, tomei uma decisão. Semanas depois, notei que esqueci de implementá-la. Foi apenas um impulso. Mesmo que me sentisse determinado, fui desarmado pelo Bom dia! habitual, dado por alguém que detesto. Síndrome de Estocolmo e Pavlov. Para onde vou, vejo-me assoberbado de tarefas inúteis, conversas fúteis e pensamentos obtusos. Gosto de pensar que é culpa do meio em que convivo, mas nunca me esforcei o suficiente para mudar a situação. A decisão era para dar um cabo nisso. Não tive coragem. Para onde quer que fosse, seria sempre o mesmo vazio entre a volatilidade alheia.

Wednesday, January 03, 2007

Será que dá tempo?

Será que dá tempo?

Nada do que ela disse me impressionou mais do que confessar que já teve um relacionamento com outra mulher. Ela sempre foi muito conservadora. E me diz algo assim, com a maior naturalidade. Tão arrogante, tão provinciana, tão preocupada em aparecer nas colunas sociais da sua cidadezinha. Adorava figurar ao lado das velhas carolas, “damas de caridade” ciosas de seu marketing pessoal. Ela expulsou a filha de casa porque a menina tinha assumido o namoro com uma menininha ainda mais nova. Tentei tomar as mãos dela entre as minhas para alentá-la, mas ela já havia levantado para atender a ligação do marido. O celular tinha um toque específico que identificava o aparelho dele. Guiada pela coleira eletrônica, desabou escada abaixo. Imediatamente vestiu sua máscara, para nunca mais tirá-la.