Monday, May 28, 2007

Trilha odorífera

Caminhando cabisbaixo, pensava na ameaça de hipoteca com o odor da bosta de cavalo invadindo-lhe as narinas e providenciando um acompanhamento ideal para o que se passava em sua cabeça.

Wednesday, May 23, 2007

Recado particular

Contra minha vontade, aprendi a atirar antes de espremer espinhas. Papai era obcecado por armas, entendia que era a única defesa confiável, ou isso ou estaríamos nas mãos de meganhas ausentes e incompetentes. Não acreditava nisso, nunca aconteceu nada, estamos nas mãos de Deus e só. Arma nenhuma pode fazer frente à surpresa, ao inconcebível. Fui obrigado a fingir entusiasmo em caçadas a pobres capivaras que nunca fizeram mal a ninguém, a atirar em troncos fingindo ódio por eles serem imaginários invasores de terra. Talvez por não gostar, talvez por querer impressionar a todos e largar logo daquilo, descobri o único dom que os céus me deram: uma mão firme nos coices e uma mira nanométrica. Uma maldição, na verdade. O que iria fazer com aquilo? Não gosto de caserna, polícia (uma boa influência paterna), de caça. Ainda entristeço-me por ter estourado a cabeça de todos aqueles bichos. Depois de, ingenuamente, na verdade ter considerada minha presença indispensável nas excursões, passei a errar de propósito. Tive minha masculinidade questionada pelos tios e compadres, mais do que minha firmeza, mas permanecia tão frio quanto na época em que acertava todas as ranhuras de madeira que afirmava que acertaria. Pedras que voavam longe, galhos partidos, folhas esburacadas, detalhes de troncos chamuscados. Sabia exatamente onde mirava e acertava, sempre.


Tuesday, May 22, 2007

Falta de gosto

Ela nada mais pode fazer que seja do seu desejo. É mimada escada acima, escada abaixo, recebe afagos, atenção e comida na boca, mas não sente nada, em nenhum sentido. Não queria nada disso. Lembra-se que pôde dormir anos e anos com um homem, o tato caloroso. O rosto e o nome dele, ela sonha que dorme abraçada com ele, não consegue chamá-lo nem virar-se para vê-lo. Às vezes uns velhos vêm visitá-la, apresentam-se como filhos. Ela fica agradecida à direção por trazer esses voluntários para fazê-la sentir-se bem. Não diz nada, para não soar mal-agradecido. Os dois filhos, cabelinhos encaracolados, eram dois anjinhos. Eles ascenderam ao céu em um monomotor. As crianças que eles trazem e dizem ser seus bisnetos (ou netos?) parecem-se um pouco com eles.

Monday, May 21, 2007

De bico

Tenho menos de cinco minutos para escrever esse bilhete, a essa altura. Espero que o encontrem no bolso do meu paletó. Te amo, te amo, te amo. As apólices do seguro estão na pasta em cima do guarda-roupa. Queria que a menina fosse médica, fala isso para ela, acho que facilita muita coisa porque ainda dá dinheiro e ainda você poderá confiar de verdade em alguém quando estiver doente, tenho certeza que você ainda vai viver muito, mas ela pode fazer o que quiser, tá? Tenho que proteger a cabeça agora. Se esse bilhete chegar na sua mão, lembrem-se que fui-me pensando o quanto amo vocês.

Friday, May 18, 2007

E eles foram felizes para sempre

Aquela assombração do capeta não merece registro. A simples menção do seu nome é um reconhecimento indevido. Esqueça, não falarei a respeito e seu recado não será passado. Sim, atualmente é inofensivo, sua mobilidade foi reduzida com o passar dos anos, ainda que a perversidade inata esteja apenas mascarada pelas pelancas e rugas de velhinho simpático. Trata-se de algo latente.

O que interessa é o seguinte: acertar uma história meia-boca para despistá-lo. Ignorar é uma benção. Não tem essa, é como se fosse uma perna de cobra: não existe e não interessa conjeturar sobre sua existência. Conte você, não dei moral para espectro nenhum. Não precisa ser nada bem tramado. Que ele perceba, quanto mais evidente que é uma evasiva, melhor.

Ninguém se deu conta que ele morreu, meses depois, a não ser os funcionários que trataram do trâmite para que seu corpo fosse doado a estudos de anatomia em uma faculdade de medicina.

Wednesday, May 16, 2007

Caçada na selva

Não se pode subestimar a capacidade de escrotização dessa fulanada medíocre, versada na ignorância do lugar-comum. Fica esperto, caralho, fica esperto. Eu fico velhaco o máximo que posso, e ainda é pouco, muito pouco. Penso antes, não falo nada, não importa, converso com quem vale a pena conversar, mesmo que você não me convença do que me dizem, ao menos posso refletir sobre o quê foi dito. Aqui não rola, é igual na prisão, aliás, isso aqui se parece muito com uma prisão, com o horário para tomar sol, para ginástica coletiva, bandejão, café com cigarro, câmeras de vigilância e muito ódio dissimulado que eventualmente transborda em pancadaria.
No presídio é assim: não fale. Escolha as palavras. Depois diga o mínimo possível. Revele muito pouco sobre você. Tudo que você diz pode e será usado contra você. Espere um pouco, aja depois. A menos que seja para arrumar um pretexto para fugir. Igual aqui. Pressa para tropeçar não servirá apenas para gargalharem da sua cara, mas para te fincarem no chão e botarem no seu rabo. Igual aqui.
Então o macaco velho de guerra trouxe uma pitaia para comer aqui. O quê? Pitaia. Um cacto comestível. Hidratante, fonte de vitaminas A e C, gostoso. Parece bom. Não interessa. Eu seria mais liso. Ou teria mais "bom humor", ou seja, absorveria as pancadas psicológicas revestidas de brincadeiras para descontá-las com o dobro da violência no momento oportuno. Mas na categoria.
"Trouxe uma frutinha cor-de-rosa para comer", bastou o primeiro carniceiro rosnar para as hienas cercarem a vítima com gargalhadas vorazes. Tentou defender-se entrando na "brincadeira", mas não entendeu nada, aquele era o momento de extravasar todas as frustrações recentes, azar. Eles de fato encarnaram as hienas encurralando o veado indefeso no recanto da cozinha. Portanto, não pode fazer nada além de exaltar-se e distribuir coices. "Exigo respeito, olhem minha idade, estou muito velho para este tipo de falta de respeito". Os sorrisos derreteram-se em carrancas, apelou perdeu, como se ele estivesse errado, tornou-se a "Bicha Ressentida", até sair do escritório, abatido.

Tuesday, May 15, 2007

Sacrifício estilhaçado.

A fila do sopão me aguarda. Esqueci tudo o que me interessava e só me lembro do que é ruim. As humilhações parecem um CD riscado tocando em um aparelho com bateria infinita. Isso é tudo que consigo formular. No mais, só repito o que me disseram. As pessoas na rua acham que estou xingando elas, tenho consciência disso, mas não posso evitar, não posso evitar, não posso evitar e sei que não posso gritar com a assistente social, que minhas roupas estão cada vez piores, o bafo está insuportável, não bebo, mas não adianta nada, não adiantou nada, tudo que fiz não adianta porque a polícia bateu no menino até ele morrer, vendi quase tudo por causa dele e o que restou a enchente levou e todo mundo me odeia, me odeia, porque não estava lá na hora que os agentes funerários apareceram com as pistolas para espalhar o sangue dele ainda mais pela grama vermelha e o que tinha que ter feito era estar lá, temos que evitar tudo de ruim que acontece com ele e eu não procedi assim, estranho que eu ainda saiba usar as palavras, porque elas não servem para nada. Não se diz dinheiro e ele aparece, não se diz filho e ele aparece, nem me lembro mais do nome dele.

Friday, May 11, 2007

Estaremos juntos quando formos velhinhos?

Assoprando no meu ouvido, de brincadeira, tal como ela gostava de fazer há anos, tenho impressão que ela sussurra algo. “O quê?”, pergunto, quase sussurrando também. Nada, nada, não disse nada. Não acho que tenha ouvido o que desejava, como se fosse uma deixa para eu me desprender. Parece real demais, o eco ainda se faz ouvir. Não te agüento mais. Ato falho de confissão involuntária, ato premeditado para me atormentar, ou auto-ilusão conveniente, daquele dia em diante ficou claro para mim que aquele sussurro ressoante encerra uma verdade que começou a se tornar cada vez mais evidente. Por aquela velha história dos filhos e tal, fiquei, mas a fidelidade se foi.

Raciocínio abandonado pelo cafezinho.

“Ódio é apenas uma curta mensagem de perigo”. Nunca imaginei deparar-me com uma frase tão boa em uma dessas correntes de motivação que caem na minha caixa eletrônica. Gostaria que fosse verdadeira. Soa plausível, ao contrário da boniteza irrealizável do mundinho pragmático e solidário dessas mensagens. Não é assim, tampouco. Se fosse, seria muito bom, algo como um imperativo biológico da espécie que reduz outras funções do corpo durante uma situação ameaçadora. Não se trata de nada disso. É um efeito colateral, eventualmente imorredouro, quase sempre com gênese neste tipo de situação. Fica latente e pode acabar com a morte, se não ocorrer nenhuma situação propícia para seu ressurgimento. Suficientemente propalado, quando em estado agudo, sobrevive a nós e perpetua-se por gerações.

Não sei se vale falar algo.

Não posso falar nada. É hipocrisia. Muitas vezes, antigamente, quando era mais honesto, brincava de flertar, só por uma questão de auto-estima. Não acho que isso afetasse minha integridade. Logo cortava a brincadeira. O Marcos Fita é merda. Não preocupa. Para fazer valer a pena um ínfimo da vida do Nathanael, resolvi brincar com ela. Ela tava precisando mesmo, devido ao clima lúgubre do serviço. Até brincadeira escrota servia. Fiquei falando para ela se consolar no ombro do Marcos, se o nariz dele deixasse-a chegar perto. Ela caiu na risada, mas não era uma gargalhada nervosa, era um riso de alívio. Tô fora, aquele cara é um nojento, acha que pode fazer graça com umas cantadas cafonas, ela disse. O que só fez aumentar a minha culpa. Ao menos o próprio Nat deu a chave para consolar uma colega de serviço

Thursday, May 10, 2007

Nathanael foi além.

Foi foda. Nem fui trabalhar segunda. Nathanel morreu sábado à noite, em um acidente estúpido – parece clichê dizer isso, mas uns acidentes são mais estúpidos do que os outros. No velório, domingo, nem parecia que tinha sido algo tão violento. Ele estava inteiro, bonito e mais frio que de costume. No dia seguinte, depois do enterro, decidi não voltar para o escritório para ruminar o quanto a vida é curta e tal. Se quiserem descontar, fodam-se. Terça também não trabalhei, apesar de ter batido cartão. Assombrado, fiquei olhando para o monitor o dia inteiro, sem fazer nada. De certa forma, conversei com um morto, mesmo não sendo kardecista. Assim que liguei o MSN, pulou uma tela de mensagem offline escrita no fim da tarde de sexta:
“Nat escreveu:
preciso te falar uma coisa
Nat escreveu:
bem quando te escrevi isso, você desconectou
Nat escreveu:
Tão tentando furar teus zóio mermão
Nat escreveu:
É aquele Marcos fita, tá muito saidinho aqui com a tua patroa
Nat escreveu:
cresce o olho e intima ela
Nat escreveu:
não que ela tenha feito algo
Nat escreveu:
mas ele tá de zoio
Nat escreveu:
desculpa falar assim, mas perdi seu celular
Nat escreveu:
acho que tenho intimidade o suficiente contigo para falar isso por aqui
Nat escreveu:
pelo menos, quando vc ver isso, terá passado pelo menos mais um findi sussa
Nat escreveu:
a ignorancia geralmente é uma benção
Nat escreveu:
mas eu precisava te falar e não dá para tel ligar em lugar nenhum, dadas as circusntancias
Nat escreveu:
cara vou viajar blz
Nat escreveu:
desculpa o susto mas tenta me ligar quando vc chegar
Nat escreveu: []s”.

Respondi offline “Obrigado, logo nos veremos”.

Wednesday, May 09, 2007

Ma huang

Você tem que usar isso, estou falando de coração. Eu e sua tia usamos como energizante, e ainda ajuda a perder peso. A gente fica mais ativo, pode confiar. Foi um mórmon que ensinou isso para sua prima. É duro ter que agüentar essa chantagem emocional. Como se estivesse destruindo uma centenária tradição familiar. Na verdade, devo estar questionando a tradição de todos pensarem que são médicos diplomados pela vida. Toma, não faz mal. Então vamos lá tomar um troço bizarro da China. Ah sim, mas que é usado pelos mórmons. Faz sentido pra caralho. Sua avó também usa. Minha mãe também está contra mim. Ela não usa, mas está ofendida por eu não querer usar, ao contrário do meu tio, que está apenas mostrando alguma contrariedade que no máximo vai virar uma magoazinha. Para ela, é uma desfeita cruel. Não diz com palavras nem os olhos, mas o gesto de apertar as mãos com força entrega tudo. É modo como ela se contém por não poder mais dar beliscões nos filhos. Tomo na frente deles, ali na hora. Para que essa pressa, filho? Ué, não é para usar? Usa de uma vez. Assim que se fala, gosto de quem tem atitude. Quando eu participava de ações do Greenpeace e organizava shows beneficentes, ninguém gostava de quem tinha atitude. Perda de tempo. Não é a primeira vez que tomo algo que não quero para agradar eles. Antes não sabia de nada. Hoje tem internet para explicar o ataque de ansiedade: essa porcaria tem efedrina. Pensava que aquela semi-síncope era por causa da pressão familiar; pensando bem, é mesmo.

Tuesday, May 08, 2007

Prelúdio

Está tudo tranqüilo, todos estão sorridentes. Isso é quase que mau agouro. O pressentimento de quem conhece a falta repentina de brincadeiras das chefias raramente falha. Será que não percebem que não há planejamento? Quem não reconhece o sinal e crê que tem moral dentro da empresa enfiou o tímpano na roleta russa e não se dá conta. O primeiro que reivindicou um pouco mais de respeito a nossos direitos pro chefão foi degolado no dia seguinte. O novato também tinha certeza que tinha desenvolvido certa intimidade. Opinou e caiu. Sem direitos, vigia o contrato de experiência. Foi tarde, contudo. Já Ariel é um aliado a menos. Avisei antes que as demissões são de veneta, mas ele queria desabafar. Se desse rolo, deu. Deu. Estava farto. Cantei a bola, não adiantou. Ele está feliz, aliviado. A duração do alívio é que me preocupa. Se não fosse apenas hedonismo de duas semanas seguido por meses de angústia com o fim das parcelas do seguro-desemprego até encontrar a próxima senzala, seria bom afetar despreocupação.

Thursday, May 03, 2007

Segunda-feira de cinzas

Os telefones tocam em vão.

Todos com quem preciso conversar não foram trabalhar. Estão metendo, cochilando, bebendo e dando baixaria, queimando as carnes brancas no mormaço, jogando frescobol, cheirando, vendo mulher pelada na televisão, vendo revista de homem pelado no banheiro, alugando filmes pornôs, brochando em suítes caras de motéis vagabundos para ganhar uma chupada, discutindo com os pais velhinhos para depois jantar com eles, ralhando com os filhos e levando-os para tomar sorvete, nadando em piscinas com 37% de mijo, pulando ondas de coliformes fecais enquanto tomam água de coco, andando de bicicleta na chuva, sendo presas por desacato à autoridade, dançando nus em frente ao espelho, lendo Stephen King, ouvindo jazz na praça, comendo pipoca na fila do cinema, socando a fuça do adversário no xadrez, jogando RPG com os primos bestas, passeando com três vira-latas em forma de Cérbero, jogando confete nos travecos, enrolando as putas com serpentina e chacoalhando-se atrás do trio elétrico. Tem quem esteja trancado no quarto, ouvindo Bauhaus. Só alegria, o bordão surgido sabe-se lá onde me incomoda pra caralho.

Não é tristeza. Estou exasperado, pensando, impotente, cumprindo tabela, esperando que amanhã não perca o dia inteiro dormindo pra compensar a insônia que não posso descontar agora. O picareta do chefão veio dar exemplo. Trabalhou duas horas e foi embora rangar e fazer a sesta.