O cheiro do feijão cozido
impregnava o apartamento. Era uma leseira depois do almoço e da escola. Mas
ninguém usava esse termo “leseira”, acho. Falávamos que estávamos morgados.
Acho que ficávamos morgados o dia todo, por nossos relógios biológicos não
estarem adaptados a acordar cedo. Só melhorávamos quando saímos pra rua para
zoar, do meio da tarde em diante.
O rádio estava sempre ligado.
Legião Urbana, Ira! e Titãs tocavam o tempo todo, eram tão populares quanto
Roberto Carlos era para os nossos pais. Tinha banda chata e convencional como o
Barão Vermelho também, isso lá tinha. O doido, no entanto, é que no meio da
programação, às vezes, tocava Garotos Podres, Replicantes e Toy Dolls. A
primeira vez que ouvi “Eu quero matá-lo/aquele porco capitalista” foi numa
rádio FM normal, dessas que tocam, sei lá, Chris Brown. Tá, naquela época tocava
Chris de Burgh, não era tão diferente assim também.
O interessante é que não consigo
imaginar uma rádio convencional tocando O Satânico Doutor Mao e os Espiões Secretos
em 2016. Até porque não é um clima otimista de redemocratização, mas sim uma
vaibe sinistra em que a extrema-direita volta a pedir golpe militar na cara
dura. Pior ainda, no fim dos anos oitenta não havia essa praga neopentecostal
fundamentalista. À época, havia toda uma grita contra censura; hoje, se alguém
tocar algo com o nome “satânico” no rádio, correrá o risco de perder o emprego.
Bem, provavelmente naquela época também e talvez eu esteja edulcorando o
passado, afinal a Igreja Católica conseguiu censurar o Je Vous Salue Marie já
na época da besta do Sarney. Isso fez com que eu assistisse ao filme com uns
quinze anos. Levou outros quinze anos para ter coragem de assistir um filme do
Goddard de novo, pois assisti ao filme apenas porque ele foi proibido – e achei
chato pra caralho.
Enfim, só quem viveu antes do
advento da internet e não tinha grana pra comprar discos para saber como é
emocionante quando se tocava uma banda da qual você gostava muito no rádio. Era
a oportunidade de gravar a música, você tinha que ficar atento. E o mais
importante: não ligar na rádio para pedir a música. Senão eles soltavam alguma
maldita vinheta em cima da música. O importante era ligar a rádio e se ligar
como um caçador de tesouros no fundo abissal. Eu não gravei Papai Noel, Velho
Batuta. Tive que esperar anos para ouvir a música depois, após o começo dos
anos noventa. Vocês acham que tocava só Nirvana no rádio? Mal tocava. As rádios
preferiam 4 Non Blondes e outras bandas mais palatáveis, nem Pearl Jam rolava
tanto assim. O poperô já tinha dominado tudo antes. Mas já sabia que seria assim,
não confiava nos DJs. Eu ouvia Smiths desde os anos oitenta e lia algumas das
letras.
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