Friday, September 28, 2018

Mortos Podem Dançar

Os cabelos bem penteados, os óculos escuros e a camisa social contrastam com as mangas puídas dobradas, a bermuda, as meias esgarçadas e as sandálias com as tiras de trás estouradas. Aquele homem pouco envelhecera na última década – já estava alquebrado e com as linhas de expressão acentuadas há pouco mais de dez anos. À época, concedia entrevistas, um pouco mais bem vestido, à frente de um projeto social, já naufragado. Agora, nitidamente, depende de assistência social.
O repórter aposentado sempre o via caminhando desalentado pela rua. Naquela manhã, o extenuado jornalista acordara desanimado com o tempo chuvoso; a depressão lhe invadia e, por mais esforços que envidasse, era difícil superá-la. O súbito aparecimento do sol e o céu azulando-se incutiram-lhe ânimo e resolveu abordar aquele homem, a quem já entrevistara para um jornal hoje tão extinto quanto ambos.
- Bom dia!                            
- Bom dia... – respondeu desconfiado o homem que já não parecia ter como envelhecer mais ainda.
- Eu já entrevistei o senhor algumas vezes, lembra-se? Desculpe-me, não lembro seu nome.
Não houve resposta. O homem desgastado e agastado permaneceu com o olhar receoso. O velho jornalista, por força do hábito, insistiu:
 - Você tinha um projeto social, como que se chamava mesmo...?
- Ora, vá se meter com a sua vida! – retorquiu aquele sujeito que algum dia foi midiático, mas agora parecia querer evanescer. A frase escapuliu com desespero, sem muita agressividade, como que também quisesse pedir desculpas, impressão reforçada pelo olhar implorando piedade.
Seguiram em sentidos opostos, sem olhar para trás, assim como a vida fez com eles.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Este conto (ou crônica, conforme definido pelo jornal, já nem sei mais em qual gênero qualificar) foi publicado no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 22 de setembro de 2018. É uma versão levemente reescrita do meu conto A Tristeza Insinua-se no Dia Ensolarado, publicado aqui no blog em cinco de abril de 2015. Alterei o título para homenagear a banda gótica/pós punk/folk quase inqualificável Dead Can Dance, achei que era cabível e mais adequado. 

A crônica (ou conto, depende de como você quiser indexar) na versão impressa do jornal.
 

Tuesday, September 18, 2018

Tempo Perdido

É das primeiras músicas das quais me lembro de gostar. Ouvi pela primeira vez numa propaganda de TV; será que era para anunciar a participação em algum programa de auditório? Pela frequência com que era exibida, mais possivelmente era para promover alguma das compilações de novos grupos, àquela época chamadas de pau de sebo, ou uma trilha de novela. Era o vídeo de Tempo Perdido, tenho certeza.
Para mim o disco perfeito da Legião Urbana seria o primeiro acrescido de Tempo Perdido ao final. Tirei esta foto no antigo aparelho de som de casa, agora estragado e sem uso, em 2015.


Depois ouvi no rádio. Fiquei encantado. Foi a primeira vez na vida que prestei atenção espontaneamente à letra de uma música. Isso foi por volta de 1986/1987, tinha uns doze anos. Quer dizer, eu sabia a letra de algumas músicas, principalmente porque meus colegas de escola falavam das do RPM, mas o clássico da Legião Urbana foi a primeira que me interessou mesmo, só que não havia com quem a conversar a respeito. Ninguém se importava muito e acho que nem eu.
À época respondi um daqueles cadernos de perguntas que as meninas faziam e davam para você levar para casa – sim, já se stalkeava naquela época, mas era mais explícito – e respondi que minha música favorita era Tempo Perdido, sem titubear. Ela perguntou depois o porquê e eu disse que a letra refletia a vida; não sei por que disse isso. Hoje ela é atriz, às vezes a vejo no teatro. Eu devia estar afetando profundidade, ela deve ter percebido, pois pareceu incrédula. Para mim, no entanto, a resposta foi sincera. Tempo perdido.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor 

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 15 de setembro de 2018. É uma versão ampliada de "Legião Urbana, uma crônica", originalmente publicada aqui no blog em cinco de setembro de 2016. Em relação ao texto que foi publicado no jornal, fiz apenas uma pequena alteração no segundo parágrafo.