Este artigo saiu na página 8 do Jornal da Cidade
(de Poços de Caldas/MG) em 29 de janeiro de 2022. Passou por uma leve revisão
do editor do jornal, João Gabriel Pinheiro Chagas.
A primeira vez que o Jornal da Cidade publicou um
texto meu sobre um livro foi em 2012 e foi sobre o 1984, a clássica distopia de
George Orwell. Dez anos depois, volto ao tema e, também, a parte daquele texto,
pois recentemente passei por uma livraria no centro e fiquei impressionado com
a quantidade de reedições do livro. Sabia que em 2021 a obra caiu em domínio
público, então várias editoras fizeram a festa. O que me chamou a atenção para
isso no ano passado foi quando uma delas enviou uma reedição de luxo deste
clássico para uma influencer digital, na esperança dela ler ou falar a
respeito, e a pessoa usou o livro de embalagem para dar um telefone para uma parente:
ela fez um vídeo em que dá o livro para a criança, que fica decepcionada, mas ao
abrir o luxuoso livro a garota descobre que foi feito um buraco no meio das
páginas e nele se escondeu um celular novo. Isso é tão representativo dos
instrumentos de controle social que Orwell criticava que é uma boa alegoria: essa
editora só publica livros de autoajuda e porcarias semelhantes. Recuso-me até a
escrever o nome dessa casa editorial: má publicidade é boa publicidade para
esses abutres. A questão é: para o neófito ou para quem quer reler, qual dessas
edições que vale a pena? Quase todas procuram se destacar através de conteúdo
extra, como ilustrações e acabamento refinado. Lembro que o que interessa é o
conteúdo. Para quem não conhece, uma breve contextualização: distopia é um
subgênero da ficção científica com viés sombrio, no qual um estado totalitário,
ou uma megacorporação capitalista, controla todos os aspectos da vida humana e
elimina toda individualidade – o oposto da Utopia idealizada por Thomas Morus. O
gênero tem como obras-primas 1984 e Admirável Mundo Novo, cujos autores são
respectivamente Orwell e Aldous Huxley. Por muito tempo foi entendido como um
estilo marcadamente anticomunista, no qual até a ultra-individualista Ayn Rand,
uma filósofa de direita, se aventurou. O livro Nós, lançado pelo russo Eugene
Zamiatin no calor da Revolução Russa, é tido como o marco inaugural do gênero.
Zamiatin, comunista no início do século, exilado na Inglaterra devido ao regime
czarista, voltou ao seu país para ajudar a revolução, mas já com uma visão mais
libertária, ficou desconfiado com o autoritarismo que se insinuava e lançou o
inovador Nós – no qual a palavra “eu” já não fazia sentido no mundo do ditador
Benfeitor. Orwell foi influenciado por esse viés anárquico e assumidamente reelaborou
a história de Nós para criar uma obra, por incrível que pareça, original e
superior à intensa trama literária de Zamiatin. Inglês e, também, anarquista,
Orwell lançou 1984 em 1948, justamente “brincando” com as datas. O protagonista
de 1984, Winston Smith, tenta registrar em suas memórias a verdade histórica
num canto onde supõe que não é filmado, pois tudo era vigiado pelas câmeras do
ditador Grande Irmão – sim, o Big Brother que dá nome ao cínico reality show.
Designado para reescrever a história de acordo com os caprichos momentâneos do
Estado, algo bem parecido com o uso do Telegram pela atual administração
federal brasileira para que as fake news se disseminem em outros meios através
da infodemia, Smith rebela-se discretamente, mas atrai a atenção de Julia, que
também tenta resistir à eliminação do livre arbítrio. Não é uma história de
amor, embora a afeição entre os personagens seja tocante, mas sim um profundo
tratado sobre a liberdade e a desconstrução do espírito humano pelo arbítrio
ditatorial. É extremamente atual. Portanto, recomendo a leitura de qualquer uma
dessas novas edições. Estão caras? Para dirimir esse mal, há os sebos. E-book
legítimo e pirataria online eu ignoro, mas o leitor é que sabe que caminho vai
tomar.
Daniel Souza
Luz é jornalista, escritor, professor e revisor