Monday, January 31, 2022

1984 em 2022

Este artigo saiu na página 8 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 29 de janeiro de 2022. Passou por uma leve revisão do editor do jornal, João Gabriel Pinheiro Chagas. 

A primeira vez que o Jornal da Cidade publicou um texto meu sobre um livro foi em 2012 e foi sobre o 1984, a clássica distopia de George Orwell. Dez anos depois, volto ao tema e, também, a parte daquele texto, pois recentemente passei por uma livraria no centro e fiquei impressionado com a quantidade de reedições do livro. Sabia que em 2021 a obra caiu em domínio público, então várias editoras fizeram a festa. O que me chamou a atenção para isso no ano passado foi quando uma delas enviou uma reedição de luxo deste clássico para uma influencer digital, na esperança dela ler ou falar a respeito, e a pessoa usou o livro de embalagem para dar um telefone para uma parente: ela fez um vídeo em que dá o livro para a criança, que fica decepcionada, mas ao abrir o luxuoso livro a garota descobre que foi feito um buraco no meio das páginas e nele se escondeu um celular novo. Isso é tão representativo dos instrumentos de controle social que Orwell criticava que é uma boa alegoria: essa editora só publica livros de autoajuda e porcarias semelhantes. Recuso-me até a escrever o nome dessa casa editorial: má publicidade é boa publicidade para esses abutres. A questão é: para o neófito ou para quem quer reler, qual dessas edições que vale a pena? Quase todas procuram se destacar através de conteúdo extra, como ilustrações e acabamento refinado. Lembro que o que interessa é o conteúdo. Para quem não conhece, uma breve contextualização: distopia é um subgênero da ficção científica com viés sombrio, no qual um estado totalitário, ou uma megacorporação capitalista, controla todos os aspectos da vida humana e elimina toda individualidade – o oposto da Utopia idealizada por Thomas Morus. O gênero tem como obras-primas 1984 e Admirável Mundo Novo, cujos autores são respectivamente Orwell e Aldous Huxley. Por muito tempo foi entendido como um estilo marcadamente anticomunista, no qual até a ultra-individualista Ayn Rand, uma filósofa de direita, se aventurou. O livro Nós, lançado pelo russo Eugene Zamiatin no calor da Revolução Russa, é tido como o marco inaugural do gênero. Zamiatin, comunista no início do século, exilado na Inglaterra devido ao regime czarista, voltou ao seu país para ajudar a revolução, mas já com uma visão mais libertária, ficou desconfiado com o autoritarismo que se insinuava e lançou o inovador Nós – no qual a palavra “eu” já não fazia sentido no mundo do ditador Benfeitor. Orwell foi influenciado por esse viés anárquico e assumidamente reelaborou a história de Nós para criar uma obra, por incrível que pareça, original e superior à intensa trama literária de Zamiatin. Inglês e, também, anarquista, Orwell lançou 1984 em 1948, justamente “brincando” com as datas. O protagonista de 1984, Winston Smith, tenta registrar em suas memórias a verdade histórica num canto onde supõe que não é filmado, pois tudo era vigiado pelas câmeras do ditador Grande Irmão – sim, o Big Brother que dá nome ao cínico reality show. Designado para reescrever a história de acordo com os caprichos momentâneos do Estado, algo bem parecido com o uso do Telegram pela atual administração federal brasileira para que as fake news se disseminem em outros meios através da infodemia, Smith rebela-se discretamente, mas atrai a atenção de Julia, que também tenta resistir à eliminação do livre arbítrio. Não é uma história de amor, embora a afeição entre os personagens seja tocante, mas sim um profundo tratado sobre a liberdade e a desconstrução do espírito humano pelo arbítrio ditatorial. É extremamente atual. Portanto, recomendo a leitura de qualquer uma dessas novas edições. Estão caras? Para dirimir esse mal, há os sebos. E-book legítimo e pirataria online eu ignoro, mas o leitor é que sabe que caminho vai tomar.

Daniel Souza Luz é jornalista, escritor, professor e revisor


George Orwell.. Foto de domínio público. 


No comments: