Senta-se à mesa. Olha o
relógio de pulso – sim, ainda usa, com pulseira de couro –, abre o notebook. Liga-o.
A inspiração foge pela janela. Contempla seu carro encerado, reluzente ao sol.
Precisa trocá-lo por um modelo 2023. Fica para a semana que vem. É o momento de
se concentrar para escrever. Abre um Red Label. Serve-se sem gelo. Agora sim.
Arregaça as mangas. Literalmente. Ainda não está confortável. Tira os suspensórios. Pronto. Senta os dedos
no teclado. Não consegue pensar em nenhum trocadilho. Pena. Gosta deles, dão
sabor à leitura. O texto está pronto. Não consegue encaixar nenhum no contexto.
Bem, de qualquer forma, a gravidade do momento não permitiria. Apesar de
desprezar a adjetivação, tão condenada nos manuais de redação, o fato é que a
conjuntura a exige. É necessário conclamar outros trabalhadores a dar mais uma
nota de confiança ao presidente. Sabia que assim que o postasse, o texto seria
compartilhado pelos amigos. Um dos jornais locais sempre publica suas postagens
como artigos de opinião. Esse, no entanto, tem que atingir mais gente. A
eleição é amanhã. É fundamental ser claro. Frases curtas. Só que falta algo. Lembrou-se
da história sobre igrejas que o melhor amigo, entre tragadas de cigarro sem
filtro e talagadas de café, contou-lhe na padaria da praça. Tascou no fim. Belo
arremate. A dúvida sobre a clareza ainda o aflige. Grita a empregada. Esbaforida,
ela chega num átimo, ainda que a cozinha fosse longe. Achou que levaria mais
uma descompostura imotivada. Ele pede que ela leia o texto. Ela lê, curvada
sobre a tela, sentindo-se julgada e sabendo-se subjugada. “E então, entendeu?”.
Ela assente. “Gostou?”. Ela perde o ar. Como quando a mãe faleceu de Covid-19.
Lembrou-se do presidente tirando sarro de quem morreu assim, imitando quem
puxava o ar em vão. Respira fundo. Esbofeteia o patrão. “Agora você tem algo
emocionante para escrever a respeito”. Ambos estão atônitos. Ela retira-se, sem
saber o amanhã, mas quem sabe?
Daniel Souza Luz é professor,
jornalista, escritor e revisor
Este é conto que enviei para o Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) ontem. Desta vez posto na data da publicação, por motivos óbvios.
Não sei de quem é esta ilustração, tão compartilhada na internet, mas é fantástica. |