Monday, October 10, 2022

O encontro marcado com o grande mentecapto

Esta crônica foi publicada na página 8 da edição 7855 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 08/10/2022. Eu mesmo revisei o texto antes da publicação.

Jamais contabilizei, mas creio que o escritor cujo mais livros li foi o Fernando Sabino. Mesmo assim, como ele era prolífico, não li nem a metade. Semana que vem ele faria 99 anos, se não tivesse morrido um dia antes do seu aniversário de 81 anos. Eu já gostava dele desde que, na escola, uma professora teve a feliz ideia de levar vários volumes da série Para Gostar de Ler para nós. O bom humor dele me conquistou de vez no fim dos anos 1980, quando meu irmão Eurico leu O Grande Mentecapto – era leitura obrigatória para a turma dele, mas ele gostou tanto que me indicou e foi um dos poucos livros de autores brasileiros que eu li na transição da infância para a adolescência porque quis e não devido às obrigações escolares. Engraçadíssimo e escatológico, foi uma leitura tão marcante que fiquei chocado quando fui comprando em sebos a série Para Gostar de Ler para relembrar aquelas crônicas e aqueles contos que tanto me deliciaram e, mais de três décadas depois, descobri que o texto mais hilário era do Carlos Drummond de Andrade, a quem associo à melancolia de sua obra poética. Eu jurava que o rocambolesco conto humorístico O Assalto era do Fernando Sabino. Felizmente, ele era tão versátil quanto o Drummond. Ou infelizmente. Parei de lê-lo no começo dos anos 1990. Meu pai comprou aquela biografia prematura Zélia, uma Paixão, um best-seller de Sabino. Este livro se perdeu em mudanças e não faz a menor falta. É muito ruim; foi uma grande decepção e a antipática biografada, a malfadada ministra da Fazenda durante o confisco das poupanças do governo Collor, não ajudava nem um pouco. Ainda bem que no final daquela década uma amiga de infância, a Juliana Mariano, apareceu em casa com O Homem Nu, uma coletânea, e o engraçado conto que dá título ao livro reconectou-me com Sabino. Descobri como ele pode ser um autor lírico, caso do belíssimo O Menino no Espelho. Fiquei enlevado ao terminar a leitura; o mesmo aconteceu em 2018, quando concluí a leitura de O Encontro Marcado. Só que este é um romance duro, com muitos assuntos que provavelmente foram tidos como tabu quando do seu lançamento, em 1956: abuso sexual, adultério, homossexualidade, aborto. Ainda assim, é terno na medida do possível; nenhum dos temas que citei têm abordagens que sugiram qualquer propensão à polêmica gratuita, mas sim um tratamento literário que os incorpora com sensibilidade à tessitura da densa narrativa. Apesar das incongruências e torpezas do protagonista Eduardo Marciano, cuja formação, danação e redenção acompanha-se desde a infância, é possível ter empatia pelo personagem e sua busca por uma quimera indefinível que o aflige. Muito pouco do Sabino que cresci lendo está presente neste primeiro romance dele, ou seja, o humor mordaz e leve. Ainda assim, é possível notar características que aparecerão depois, como o encontro entre personagem e escritor, algo presente n’O Menino no Espelho, lançado 26 anos depois. É um recurso narrativo que me maravilhou quando pela primeira vez me deparei com tal engenho na HQ Homem-Animal, escrita pelo escocês Grant Morrison, que lançou mão de metalinguagem para criticar o pretenso realismo dos quadrinhos de super-heróis. Só que isso é outra história, para outro momento. Possivelmente O Encontro Marcado é o melhor livro do Sabino, mas meu favorito sempre será O Grande Mentecapto – que eu viva o bastante para relê-lo.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor




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