Esta crônica foi publicada na página 8 da edição 7855 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 08/10/2022. Eu mesmo revisei o texto antes da publicação.
Jamais contabilizei, mas creio
que o escritor cujo mais livros li foi o Fernando Sabino. Mesmo assim, como ele
era prolífico, não li nem a metade. Semana que vem ele faria 99 anos, se não
tivesse morrido um dia antes do seu aniversário de 81 anos. Eu já gostava dele
desde que, na escola, uma professora teve a feliz ideia de levar vários volumes
da série Para Gostar de Ler para nós. O bom humor dele me conquistou de vez no
fim dos anos 1980, quando meu irmão Eurico leu O Grande Mentecapto – era
leitura obrigatória para a turma dele, mas ele gostou tanto que me indicou e
foi um dos poucos livros de autores brasileiros que eu li na transição da
infância para a adolescência porque quis e não devido às obrigações escolares.
Engraçadíssimo e escatológico, foi uma leitura tão marcante que fiquei chocado
quando fui comprando em sebos a série Para Gostar de Ler para relembrar aquelas
crônicas e aqueles contos que tanto me deliciaram e, mais de três décadas
depois, descobri que o texto mais hilário era do Carlos Drummond de Andrade, a
quem associo à melancolia de sua obra poética. Eu jurava que o rocambolesco
conto humorístico O Assalto era do Fernando Sabino. Felizmente, ele era tão
versátil quanto o Drummond. Ou infelizmente. Parei de lê-lo no começo dos anos
1990. Meu pai comprou aquela biografia prematura Zélia, uma Paixão, um
best-seller de Sabino. Este livro se perdeu em mudanças e não faz a menor
falta. É muito ruim; foi uma grande decepção e a antipática biografada, a
malfadada ministra da Fazenda durante o confisco das poupanças do governo
Collor, não ajudava nem um pouco. Ainda bem que no final daquela década uma
amiga de infância, a Juliana Mariano, apareceu em casa com O Homem Nu, uma
coletânea, e o engraçado conto que dá título ao livro reconectou-me com Sabino.
Descobri como ele pode ser um autor lírico, caso do belíssimo O Menino no
Espelho. Fiquei enlevado ao terminar a leitura; o mesmo aconteceu em 2018,
quando concluí a leitura de O Encontro Marcado. Só que este é um romance duro,
com muitos assuntos que provavelmente foram tidos como tabu quando do seu
lançamento, em 1956: abuso sexual, adultério, homossexualidade, aborto. Ainda
assim, é terno na medida do possível; nenhum dos temas que citei têm abordagens
que sugiram qualquer propensão à polêmica gratuita, mas sim um tratamento literário
que os incorpora com sensibilidade à tessitura da densa narrativa. Apesar das
incongruências e torpezas do protagonista Eduardo Marciano, cuja formação,
danação e redenção acompanha-se desde a infância, é possível ter empatia pelo
personagem e sua busca por uma quimera indefinível que o aflige. Muito pouco do
Sabino que cresci lendo está presente neste primeiro romance dele, ou seja, o
humor mordaz e leve. Ainda assim, é possível notar características que
aparecerão depois, como o encontro entre personagem e escritor, algo presente
n’O Menino no Espelho, lançado 26 anos depois. É um recurso narrativo que me maravilhou
quando pela primeira vez me deparei com tal engenho na HQ Homem-Animal, escrita
pelo escocês Grant Morrison, que lançou mão de metalinguagem para criticar o
pretenso realismo dos quadrinhos de super-heróis. Só que isso é outra história,
para outro momento. Possivelmente O Encontro Marcado é o melhor livro do Sabino,
mas meu favorito sempre será O Grande Mentecapto – que eu viva o bastante para
relê-lo.
Daniel Souza Luz é jornalista,
professor, escritor e revisor
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