Esta crônica foi publicada na página 8 da edição 7936 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 04/02/2023. Eu mesmo revisei o texto.
Ontem vi o livro de um poeta
ser vendido num sebo. Fiquei surpreso: quem será que o comprou? Alguém que o
conheceu? Um pesquisador? Mais provavelmente trata-se do segundo caso. Se é
alguém que o conheceu, foi quando ele já estava em idade provecta. Foi o meu
caso: sim, eu conheci o elogiado poeta. Só que não foi a literatura que nos pôs
em contato.
Declino de revelar a identidade
do grande poeta. O leitor há de entender. Conheci-o quando eu tinha uns 17 anos,
ele já era idoso. Parecia mais ser o avô do filho, que era (é) um pouco mais
velho do que eu. O filho era muito inteligente, mas gostava de bancar o bully.
Tenho a impressão de que fingia ser estúpido para não ser zoado pelos amigos
idiotas dele. Ele gostava de humilhar um amigo meu que estudava em outra sala. Felizmente
nunca presenciei esses episódios cruéis, mas contavam-me a respeito. Ensino
médio era um inferno e eu procurava ficar esperto. Certa feita, deixei as
chaves de casa debaixo da minha carteira. Um colega do filho do poeta, que
ainda viria a ser meu amigo, pegou-as e escondeu-as na hora do intervalo.
Vieram me sacanear, dizendo que eu dormiria fora de casa. Eu disse que não,
pois chamaria a polícia e não apenas o diretor. No fim da aula, o fulano deu a
volta na minha carteira, rindo, e pôs as chaves, separadas, sem o chaveiro, em
cima do meu caderno. Ele deve ter considerado uma grande tirada com a minha
cara, mas eu também considerei uma vitória sobre ele. E ficou por isso mesmo.
Voltando ao tema, mas tudo
está relacionado: o filho do poeta também era babaca, mas um pouco diferente da
sua turminha. Viu, por acaso, que desenhei o logo do PIL (Public Image Ltd) no
meu caderno. Resolveu puxar papo e nos tornamos amigos. Isso deve ter me
poupado de muitos aborrecimentos. Ele odiava grunge, então em ascensão, e
ficava inconformado de eu gostar de Soundgarden, Nirvana, Hole. Só que ele
decidiu ser gente boa comigo, acho que era porque eu era alguém com quem ele
podia conversar sobre as bandas pós punk de que gostava. Também já éramos
leitores do Orwell, outra afinidade. Graças a isso pude escutar álbuns do The
Cure, Joy Division e New Order que eu ainda não conhecia. Já gostava das
bandas, mas ainda não conhecia todos os discos; afinal, naqueles tempos era
difícil ter acesso a tudo. Ele gravava fitinhas para mim desses vinis e um dia,
enquanto as gravava, me convidou para ir a sua casa.
Foi quando conheci o grande
poeta. Nem sabia que ele era escritor. Foi cortês comigo. Quando o filho
terminou de gravar as fitinhas, enquanto batíamos papo e ouvíamos os discos,
ele me ofereceu carona até ao centro. Naquele horário o pai costumava ir numa
padaria. Aceitei e, no caminho, o grande poeta fez alguns comentários sobre as
moças que passavam na rua. Basicamente, ninfetas um pouco mais velhas do que eu
e o filho dele – se muito. “Olha só que gostosa, ó só essa bundinha”. E ria,
ria a valer.
Muito depois que ele morreu
descobri que o velho tarado era poeta. Quando saiu um livro póstumo reconheci o
nome do filho – de quem já não era mais próximo. Não reconheci o do poeta em si;
não sabia o nome dele até então, aliás. Comentei com meu vizinho, que havia
sido vizinho deles do outro lado da cidade. O livro estava sendo muito elogiado,
o velho poeta era tido como um grande erudito. Meu vizinho, um velho amigo,
retorquiu – lembro bem da conversa:
- É que você não o conheceu de
verdade. Que homem mais estúpido! Ele era fazendeiro, tinha jeito de coronel.
Ele tratava muito mal os empregados, você precisava ver. Vivia gritando.
Aí me lembrei do episódio da
carona e que meu grande amigo do passado, na verdade, era um bully. Ele, com
certeza, nunca me sacaneou porque ele se identificou com (parte) do meu gosto
musical e, consequentemente, comigo. Hoje percebo que herdou a arrogância
paterna.
Decidi nunca ler o grande
poeta. Isso já tem mais de vinte anos, não existia ainda o termo cancelamento.
Acho que não estou perdendo grande coisa. Se estiver, foda-se. É por essas e
outras que gosto do Bukowski. Pelo menos ele deixou claro para seus leitores
quem ele realmente era.
Daniel Souza Luz é escritor,
jornalista, professor e revisor
Foto de Bob que reproduzo aqui via licença Creative Commons.
2 comments:
Fiquei suuupercuriosa!!Mas quem será esse poeta?!Adorei a crônica, Dani!
É a Dani aí, né?
Ah, um fazendeiro aí. Te garanto que não é o Manoel de Barros, hehehe.
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