Saturday, December 05, 2020

Fotos de você

Nesta semana, no dia primeiro de dezembro, fez um ano que meu pai faleceu. Não parece, sonho com ele quase todo dia. São sonhos alegres, ele está sempre bem, geralmente dirigindo ou querendo dar uma volta, não é nada que me deixe melancólico. Como é relativamente comum que eu tenha sonhos lúcidos, às vezes me toco da irrealidade e ele logo se vira para mim e diz que não, não morreu. É como se ele sempre estivesse presente. Ele está, portanto.

Por obra do destino (este chavão quase inevitável), dois amigos dele morreram nestes dias. Publiquei fotos de ambos, acompanhados do meu pai. Primeiro o advogado e escritor Marcos Mattioli, há exatamente uma semana, no sábado passado. Mattioli, como era conhecido, gostava da boêmia e, portanto, tinha a saúde frágil. Ou quem o conheceu melhor pode dizer que, pelo contrário, tinha saúde de touro e que aguentou o tranco. O fato é que, como disse para minha família, sempre achei que levaria meu pai, que já não enxergava mais direito, no velório do “Matti”, outro modo como ele era chamado. Jamais imaginaria o contrário. Como já evidenciei acima, não o conheci bem, só o encontrava quando meu pai ia na casa dele ou de algum amigo em comum, troquei poucas palavras com ele. Há alguns livros dele, autografados, em casa; nunca me interessei, creio que passou da hora de me interessar. Preciso achar onde meu pai os guardou. Pelo o que me recordo, são livros de memórias. Suponho que engraçados, o Mattioli parecia ser um sujeito divertido. O motivo que não conversava com ele é que era muito conservador, reacionário mesmo, segundo o que meu pai me contava. Eu evitava, para não haver conflitos. Claro que me arrependo um pouco, nunca contei para ele que um dos meus quadrinistas favoritos é o italiano Massimo Mattioli, por exemplo. Já meu pai era íntimo dele a ponto de imitar o jeito como ele falava na cara dele, tirando um sarro; minha irmã ri demais quando se lembra disso.

Um dia depois que o falecimento do meu pai completou um ano, outro grande amigo dele se foi: Manoel Renda Salcidos Filho, o Mané Renda. Ele eu conheci melhor, visitava meu pai em casa e frequentava seu escritório, além de ser filiado ao mesmo partido, o PMDB, hoje apenas MDB. Viajaram juntos muitas vezes, tanto para o exterior, quanto para vários locais do Brasil. De uma viagem jamais me esquecerei, pois também estava presente: a primeira vez que fui ao Rio, em fevereiro de 2012, encontramos com o Mané; ele já estava lá. Ele levou a mim e a minha mãe – não me lembro agora se meu pai foi também – para um tour pela cidade no carro dele. Não conhecemos só lugares óbvios para turistas, como São Conrado e o Botafogo: foi um rolê aventureiro, no qual fomos para o Vidigal e demos um grande passeio na favela da Rocinha, que tinha uma quantidade absurda de PMs com escopetas e armas desse naipe, além de ter a melhor vista da cidade, fora o Pão de Açúcar. Sem guia, sem nada, só metendo as caras (claro que o Mané já conhecia bem o Rio, estava acostumado a dirigir lá). Foi maneiro demais, fiquei fascinado pela cidade e achava que jamais gostaria de lá.

Fui puxando o fio da memória e falei foi dos amigos do meu pai e não dele. Aliás, tem muito “meu pai” nesta crônica e tem que ter mesmo. Lembro que no ano passado, ao fazer um texto sobre a passagem dele, usei o sinônimo papai, mas não tenho este hábito. O que me recorda um artigo recente do Mario Sérgio Conti no qual ele menciona que os gringos não têm essa preocupação de ficar procurando sinônimos para que palavras e expressões não se repitam ao longo do texto; estão certos eles. Aproveito o ensejo para mandar um antigo chefe meu numa assessoria de imprensa ir se lascar, pois ele deu um chilique no telefone quando usei muito o termo “biblioteca” num release sobre... bibliotecas. Ora, que grande imbecil ele era. Eu era jovem demais para reagir à descompostura, hoje eu falaria grosso na hora. Bem, vingança tardia à parte, meu pai gostava disso, de um assunto ir puxando o outro. Nesta semana publiquei em todas as redes sociais possíveis uma foto dele e no fundo havia um quadro que um amigo dele, Hiroshi Murakami, pintou a partir de uma foto minha de quando eu era bebê, ainda nos anos 1970. Disse que ele havia falecido naquela década, mas guardei errado a informação que meu pai me passou: o Murakami feneceu (deste sinônimo eu gosto) nos anos 1990, esclareceu-me num comentário na foto meu amigo Clisthenis Betti, ator bem conhecido, e que precisa ser mais reconhecido, na cidade. O Clisthenis conheceu bem os filhos do Murakami, foram criados juntos. Ele, inclusive, gravou e me mandou um vídeo com a caixa com os pincéis e materiais de pintura dele, dada de presente para o irmão dele por uma das duas filhas do Murakami, que infelizmente não conheci. No acanhado apartamento onde passei a infância tinha um quadro dele mais autoral, na verdade um esboço que meu pai enquadrou. Um dos motivos do qual tanto gosto dele é que estava inacabado. Está guardado em algum lugar. Há fotos do meu pai e da minha família em que este quadro aparece, guardadas em álbuns. São essas as memórias que acalento. As crônicas no sentido norte-americano, das histórias dos poderosos da cidade, não me interessam. Acho que só interessam a quem gosta mais de preservar estátuas do que pessoas. É, pouco falei mesmo do meu pai. Só que Daniel da Luz era generoso. Tenho certeza de que ele gostaria de compartilhar essas histórias dos amigos dele, todos companheiros agora no bardo, no céu, na farra, em alguma viagem por aí, vocês que sabem. 

Daniel Souza Luz é professor, escritor, jornalista e revisor

Esta crônica deveria ter saído hoje no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG), mas estava muito extensa. Em seu lugar saiu um miniconto. O título provisório era Um Ano Sem Meu Pai, mas minha namorada, Juliana Gandra, sugeriu o título Pictures of You, citando a música do The Cure. Eu optei por traduzi-lo. Ela também revisou o texto.


Foto que tirei do meu pai no dia 30 de agosto de 2006, no escritório dele.
Meu pai (Daniel da Luz), a enfermeira Maria José, Sebastião Pinheiro Chagas, Sérgio Alvisi e Marcos Mattioli. Foto que tirei no aniversário de Norberto Danza, 02/05/2017.



Mané Renda e meu pai em frente à Ópera Nacional de Paris, especificamente à Ópera da Bastilha (obrigado pela informação, Pádua Fernandes). Foto que tirei de uma fotografia que provavelmente foi tirada por Waldemar Lemes Filho em 05/11/2005 (ou no dia 4 daquele mês, a anotação do meu pai está meio confusa).


Friday, March 20, 2020

Para Gostar de Ler 12: Histórias de Detetive - resenha que escrevi para o Good Reads

Historias De DetetiveHistorias De Detetive by Arthur Conan Doyle
My rating: 3 of 5 stars

De todos os volumes da série Para Gostar de Ler este é o mais fraco. Entendo perfeitamente o sentido da seleção de José Paulo Paes, que teve o intuito de apresentar textos importantes para a história do gênero. O problema é que são muito ingênuos, muito esquemáticos. Isto se perdoa no conto de Conan Doyle, afinal Sherlock Holmes tem seu charme, e no de Edgar Allan Poe, pioneiro da literatura policial que ainda teve o toque de gênio de inserir um pouco de terror, gênero pelo o qual é mais conhecido, na sua trama. O texto de Jerônimo Monteiro é uma coleção de estereótipos e infelizmente nem o grande Marcos Rey se sai tão bem assim. Mas não é nada que me faça desanimar pelo gênero policial, ao qual não sou muito afeito, só me fez ter mais curiosidade em ler histórias mais contemporâneas que não tenham tantos chavões. Nisto se destaca Medeiros e Albuquerque, cujo conto é uma fina ironia e ao mesmo tempo uma homenagem a Sherlock Holmes. O conto de Edgar Wallace que fecha o volume também é ótimo, mas se aproxima mais das histórias de espionagem.


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Friday, March 13, 2020

Antologia Estância Cultural volume 1: resenha que escrevi para o Good Reads

Antologia Estância Cultural Nº 1Antologia Estância Cultural Nº 1 by Regina Alves
My rating: 2 of 5 stars

Esta coletânea reúne autores de Poços de Caldas e região que fazem parte da Academia Poços-Caldense de Letras. Há de tudo, de poesia a dramaturgia, de contos a memórias, de relatos históricos formais a tentativas de ensaios. É uma antologia mal-ajambrada, na verdade; faltou edição: não há índice e aparentemente cada autor fez sua revisão - em muitos casos, é nítido que não se fez, há erros clamorosos. Isto me chama muito a atenção, afinal fui revisor do livro A Utilidade do Rascunho, de Tadeu Rodrigues, cujo poema Mapas consta nesta antologia. Há outra bela poesia chamada Legado, de Guiomar Paiva. Além disto, há dois ótimos contos, Cabaré do Bambu, de Antônio Manoel Júdice, e O Homem que Sabia de Menos, de João Gabriel Pinheiro Chagas. Há muito textos homenageando genitores; se houver um segundo volume gostaria fazer um sobre meu pai, pois faço parte da Academia.


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Monday, February 24, 2020

Segunda-feira de Cinzas

Os telefones tocam em vão.
Todos com quem preciso conversar não foram trabalhar. Estão metendo, cochilando, bebendo e dando baixaria, queimando as carnes brancas no mormaço, jogando frescobol, cheirando, vendo mulher pelada na televisão, vendo revista de homem pelado no banheiro, baixando filmes pornôs, brochando em suítes caras de motéis vagabundos para no máximo ganhar uma chupada, discutindo com os pais velhinhos para depois jantar com eles, ralhando com os filhos e levando-os para tomar sorvete, nadando em piscinas com 37% de mijo, pulando ondas de coliformes fecais enquanto tomam água de coco, andando de bicicleta na chuva, sendo presas por desacato à autoridade, dançando nus em frente ao espelho, lendo Stephen King, ouvindo jazz na praça, comendo pipoca na fila do cinema, socando a fuça do adversário no xadrez, jogando RPG com os primos bestas, passeando com três vira-latas em forma de Cérbero, jogando confete nas novinhas, beijando as travestis, tomando facada no bar, enrolando prostitutas com serpentina e chacoalhando-se atrás do trio elétrico. Tem quem esteja trancado no quarto, ouvindo Bauhaus, sendo tão feliz quanto os outros. Só alegria, o bordão surgido sabe-se lá onde me incomoda pra caralho.
Não é tristeza. Estou exasperado, pensando, impotente, cumprindo tabela, esperando que amanhã não perca o dia inteiro dormindo pra compensar a insônia que não posso descontar agora. O picareta do chefão veio dar exemplo. Trabalhou duas horas e foi embora rangar e fazer a sesta. Enquanto mofamos na firma, inúteis, por mero capricho e pão-durismo.
Daniel Souza Luz é professor, escritor, jornalista e revisor

Este conto foi publicado em 22 de fevereiro de 2020 na página oito da edição 7222 do Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). É uma versão levemente ampliada e reescrita, evitando um termo preconceituoso que usei outrora, de um conto de mesmo nome, que publiquei aqui no blog em três de maio de 2007.


Carnaval em Mérida, no México, 08/03/2011. Foto de Theodor Hensolt, via Creative Commons. A original pode ser encontrada aqui e a página dele no Flickr é Theodor Hensolt, Street Fotographer (Fotógrafo de Rua).


Thursday, February 13, 2020

Garfield e seus Amigos 2 (resenha que fiz para o Good Reads)

Garfield e Seus Amigos 2Garfield e Seus Amigos 2 by Jim Davis
My rating: 2 of 5 stars

Lembro-me que no filme Vamos Nessa um personagem reclama de uma tirinha (não é o Garfield) que fica por último na ordem de leitura do jornal e estraga todas as outras. Achei bem sacado, pois este é o meu caso com o Garfield: eu até lia, mas, apesar de ser a última tira (ou ao menos era) na página de quadrinhos da FSP, era a primeira que eu lia, pois achava fraquinha em comparação às demais, daí era um crescendo de prazer. Às vezes nem a lia. Eu pulava tanto a leitura das HQs dele que só agora descobri que tinha outro gato, o Nermal, que também aparecia nas tirinhas às vezes. Esta compilação é de tiras dos anos noventa, justamente quando eu fazia isto todos os dias. Mostra que não perdi muita coisa, mas também está longe de ser ruim. Li numa sala de espera. Dei uma ou duas risadas, valeu a leitura.


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Friday, February 07, 2020

Esconde-esconde

No começo de janeiro li uma ótima crônica (ou ótimo conto, não sei) da escritora Letícia Novaes, que é mais conhecida no mundo da música e no qual atende pelo pseudônimo Letrux. Chamado Férias Forever, o texto logo no início menciona que ela é de uma geração que tirava férias por três meses na virada do ano. Fiquei pensando mesmo nisso na última vez em que escrevi uma crônica sobre meus tempos de férias na infância; parece que não eram só dois meses de descanso... Eu me lembro de uma vez ou outra voltar a ter aulas no finalzinho de fevereiro, mas é aquilo mesmo que ela diz: apesar de ser um pouco mais velho do que a Letícia, também sou do tempo em que as aulas voltavam em março. Hoje vejo crianças voltando às aulas no final de janeiro e acho muito estranho. É outro mundo, ainda mais competitivo.
Antes as férias eram tão estendidas e prazerosas que quando se machucava feio ainda dava tempo de aproveitá-las. Lembro bem, porque uma das brincadeiras favoritas da criançada era (e suponho que ainda seja) esconde-esconde. Numa dessas, me estrepei. Mas não foi culpa minha. É que eu tinha um colega muito atrapalhado. Já já chego lá.
O bacana do bairro da minha infância, o Marçal Santos, era que as ruas eram relativamente pouco movimentadas. Geralmente o pique era na rua Platina, onde eu morava, e valiam as adjacências das ruas de baixo e de cima, respectivamente Berilo e também Marçal Santos. Havia árvores, carros, pequenas moitas, reentrâncias nos muros e vários pequenos esconderijos. Naquela época havia, e talvez ainda haja, a “regra” de que o último a ser descoberto salvava todos os que haviam sido pegos, bastava chegar antes no pique e bater três vezes nele. Quem estava procurando não podia mais escolher quem foi pego para substituí-lo e voltava a desempenhar seu papel de, digamos assim, rastreador. Este hábito levava a desabaladas carreiras, às vezes na frente de carros em movimento, para salvar a galera. E não tinha tira-teima quando perseguidor e perseguido batiam quase ao mesmo tempo. Lembro que uma vez meu amigo Daniel loirinho dançou nessas quatro vezes seguidas. Ele ficou desanimado e foi embora para casa, choroso.
Pique esconde, diga-se de passagem, era uma brincadeira bem democrática. Participava gente de todas as idades, dos seis aos quatorze anos. Por isso todos os esconderijos foram ficando manjados. E às vezes vacilávamos também. Não me esqueço do dia em que achei que estava muito bem escondido atrás de uma árvore na rua Berilo. Meu amigo Márcio, o Baiano, gritou de longe, gargalhando: “Estou vendo seus Kicks, tá pego Daniel!”. Kick era uma marca de tênis para andar de skate que nos anos oitenta fazia uns tênis de cano alto, fechados com velcro, numas cores vermelho e verde berrantes – que aliás soltavam tanta tinta que manchavam as meias, desculpa mãe. Virei alvo fácil, camuflagem não rolava assim.
Enfim, como a brincadeira era frequente e literalmente todo mundo conhecia os esconderijos, passando a ser o atletismo e não a habilidade de se mimetizar a melhor arma, o pessoal foi ficando mais ousado. Valiam até os limites das casas das esquinas nas ruas adjacentes. Alguém teve a ideia, então, de pular o muro da casa do Coruja, um amigo nosso que morava (e ainda mora) em Santos e não vinha sempre passar férias em Poços, portanto muitas vezes sua casa na Marçal Santos ficava vazia. E nos considerávamos de casa. Então ficávamos lá, morrendo de rir, abafadamente, da cara de quem passava na rua nos procurando e não fazia ideia do novo esconderijo. E quando quem nos procurava descia para a rua Berilo, descíamos em massa para o pique e salvávamos todo mundo.
Minha desdita aconteceu por isso. Uma bela tarde, pulei lá primeiro, junto com meu amigo Evandro, o Bugu. Ah, pra quê? Meu irmão e meus amigos Paulo Augusto e Baiano acharam por bem esconder-se lá também. Não estando cientes da nossa presença, o Márcio pulou o muro e caiu com os dois pés em cima da minha cabeça. Não vi, claro. Só senti a porrada repentina; contaram-me que foi assim. Como estava me virando para o lado para falar com o Evandro, mordi a língua. É um músculo bem vascularizado, sangra abundantemente. O que acho engraçado, hoje em dia, é que não fiz uma tomografia nem nada disso, que me lembre. Nem sei se era um exame acessível à época. Meus pais levaram-me para médico e ele só cuidou da minha língua mesmo. Não passei mal e nem nada assim, apesar do banho de sangue; acho que isso colaborou.
Bem, só sei que não tomei ponto, ainda bem. Do jeito que estava dilacerada já doía demais – a maior dor que havia sentido na vida, até então. A solução foi ficar de repouso e só poder tomar sopa e líquidos por umas semanas. Foi um martírio. Tudo bem, acho que umas duas semanas depois eu já estava na rua de novo. Brincando de esconde-esconde. Sem traumas.


Daniel Souza Luz é escritor, jornalista e revisor

Este conto foi publicado originalmente no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em primeiro de fevereiro de 2020. Saiu na página nove da edição 7207. 

Kindred: Laços de Sangue, de Octavia E. Butler, é um livro fascinante (resenha que fiz para o Good Reads)

Kindred: Laços de sangueKindred: Laços de sangue by Octavia E. Butler
My rating: 5 of 5 stars

Minha primeira leitura de 2020 foi desta escritora de ficção científica da qual nunca tinha ouvido falar até o ano passado. Fiquei fascinado e comprei o livro em abril de 2019, assim que descobri a existência dela. Só li em janeiro de 2020 pois é uma obra de fôlego, bastante extensa, que exige dias menos atribulados para ser devidamente apreciada, ao menos no meu entender. Agora estou muito curioso para ler outras obras da autora, pois a questão da indexação é muito interessante para mim. A única relação com FC neste livro é a viagem no tempo, no meu entender. No entanto, ela não tem uma explicação científica ou racional, o que aproxima a obra muito mais da fantasia. Creio que é categorizado como ficção científica porque a Octavia Butler assim o quis - e se for o caso, acho que ela está mais do que certa. Suas outras obras, pelo pouco que li, parecem ser mais de FC propriamente dita. De qualquer forma, é um livro fascinante. Quando comentei com amigos que estava lendo-o e perguntaram sobre o que era, um deles, o Tiago Barreiro, me contou que o Chris Rock já tinha feito uma piada sobre isso: viagem no tempo é coisa de branco, quem é negro jamais vai querer construir uma máquina que faça isso, pois é arriscado demais voltar ao passado. Kindred: Laços de Sangue é exatamente sobre isso. E com certeza é por isso que a protagonista, Dana, não tem controle sobre suas idas ao passado. Elas simplesmente acontecem, contra sua vontade. Sendo uma mulher negra, Butler escolheu escrever sobre uma mulher negra contemporânea (no caso, dos anos setenta: Dana e o marido Kevin Franklin vivem em 1976; o livro foi lançado originalmente em 1979) que é lançada aos tempos da escravidão num estado sulista, Maryland, antes da Guerra da Secessão. A tensão da trama se estabelece justamente porque Dana, ao guardar uma bíblia que está com a família há gerações, sabe que pouco ou nada pode fazer para impedir as situações de abuso que presencia, pois é jogada a um passado no qual reconhece os nomes de seus antepassados. Ao contrário, precisa protegê-los, mesmo quando agem de forma vil. E eles são justamente o filho de um senhor de escravos e uma escrava. Daí o título do livro. Os pequenos defeitos da trama e da escrita - respectivamente o fato de que são situações de violência que a fazem a voltar para presente e no entanto ela passa a literalmente senti-las na pele sem retornar e o uso frequente da expressão "franzir a testa" (seria isso um maneirismo da tradução?) - são totalmente recompensados pela força avassaladora da narração. E esta força está justamente no fato de que Dana, apesar de tudo, tenta impedir os abusos escravocratas. Por isso, sofrerá castigos inimagináveis para ela, uma mulher livre vivendo na Califórnia do século vinte e que perde progressivamente o direito ao próprio corpo. As descrições das torturas físicas e psicológicas que ela e os demais escravos sofriam transportam o leitor para o passado tanto quanto a protagonista; são muito vívidas. E revoltantes. É envolvente ao ponto de se ficar indignado, mesmo que hoje saibamos sobre todas as infâmias da escravidão. Particularmente, tive que que interromper a leitura diversas vezes, pois era intenso demais e me causava profunda consternação. Não bastasse isto, a autora também adianta, já àquela época, questões hoje prementes, como a tensão de relações inter-raciais na contemporaneidade e não só num passado distante em que elas resumiam-se, basicamente, a estupro e posse.


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Thursday, January 09, 2020

A Fronteira da Chuva

Foi espetacular.
Férias. Cada dia, ao acordarmos, ao tomar café - sem café na verdade, mas sim com leite com achocolatado e muita bolachinha de chocolate – tínhamos uma folha em branco pela frente, como uma crônica ansiando para ser escrita. O que faríamos, libertos da rotina escolar? Geralmente alguém saia para rua de manhã já com uma bola, jogávamos um pouco de futebol quando aparecia mais gente, íamos conversando como seria a tarde. Cada dia, uma aventura diferente, na base do consenso. Às vezes havia algum dissenso e um pessoal ia fazer alguma outra coisa, sem ressentimentos; quase sempre, no entanto, permanecíamos juntos. Esconde-esconde, videogame, skate, fliperama, mais futebol (mas em outro lugar, em geral no Parque Municipal), assistir filme na casa de alguém, peteca. Muitas vezes, tudo isso junto e misturado. Uma rodinha jogava truco, uma dupla era derrotada, entrava no lugar da dupla perdedora da peteca. E assim íamos.
Minha rua, a Platina, no bairro Marçal Santos, era lotada de crianças e adolescentes brincando e zoando. Vinha gente de longe até, de bairros como o São Geraldo; não sei por que se concentravam ali, mas assim foi nos anos oitenta, ao menos dos meados daquela década até o início da seguinte. No começo deste século passava por lá e ainda via muitas crianças por perto se divertindo. Agora não vejo mais. O prédio onde morava, o Beta, tem atualmente um portão, não entra mais qualquer um. Há aquelas placas de casas de rede de vigilância de vizinhos em conjunto com a PM. A rua ainda é muito parecida, as fachadas são mais ou menos as mesmas, mas está vazia e quando passo olhando, devagar, saudoso, rostos desconfiados me olham de dentro dos apartamentos. Houve uma única vez que, ao subir a trilha do Cristo e descer pela estrada da Vila Cruz, há cinco anos, passei na Platina e reencontrei minhas ex-vizinhas Dalva e Terezinha em frente ao prédio. Conversamos longamente. Não há mais ninguém por lá que eu conheça, a não ser a ex-vereadora e professora Tita, que mora em frente, na casa que pertencia à família da minha amiga de infância Juliana Mariano Iwamoto, que me considera um irmão. De qualquer forma, a Tita não é do meu tempo ali.
Eu disse que foi espetacular. O verbo está no passado porque foi há mais de três décadas, vou voltar para o “meu tempo”, portanto. Como a rua de baixo, a Berilo, era mais plana, apesar de mais movimentada, costumávamos jogar futebol e esportes afins por ali – sei lá por que insistíamos em jogar eventualmente na minha rua, com aquele declive. Já não me recordo quem estava comigo naquela tarde, então vocês vão ter que acreditar na minha palavra. Talvez meu irmão, o Evandro Godói, o Paulo Augusto Rodrigues, o Márcio de Melo, todos amigões e vizinhos, parece que me lembro que eles estavam juntos, mas o cenário onírico me fez esquecer exatamente quem era a companhia. Nem sei se eles lembrariam disso também, não é porque me marcou que os impressionaria também. Enfim, ali vi algo no qual sempre pensava, quando, em viagens de carro, via tempestades cair nas paisagens distantes: será que a chuva sempre vem caindo aos poucos, geralmente com vento e obliquamente, ou às vezes uma nuvem ficava parada e ao lado dela haveria pessoas vendo o dilúvio logo adiante, protegidas pelo sol? Naquele dia, e só naquela tarde, testemunhei isto: perto da minha rua, estava o tempo firme. Na esquina seguinte, na das ruas Berilo e Ouro, chovia a cântaros. Chegávamos pertinho e voltávamos secos, admirados; aquela barragem de pingos não se mexia e assim permaneceu por uns quinze, vinte minutos, até cessar completamente. Aquela foi a única vez em que cheguei à beira da fronteira da chuva.
Daniel Souza Luz é escritor, jornalista e revisor

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 04/01/2020, na página oito da edição 7188 do jornal. Escrevi-a no dia anterior, com saudades das férias de quando eu era garoto.

Foto que tirei com celular no dia 09/01/2020



Thursday, January 02, 2020

A Flor e a Feiticeira (resenha)

A Flor e a FeiticeiraA Flor e a Feiticeira by Katia Pinno
My rating: 5 of 5 stars

Conheci a Kátia Pinno, escritora carioca para lá de simpática, há um par de anos, durante uma edição da Flipoços. Na deste ano fizemos um escambo de nossos livros: meu primeiro pelo mais recente dela. Só agora, no finzinho de 2019, é que o li. É um livro infanto-juvenil que tem como propósito ser um conto de fadas redivivo. Atenção: é um conto de fadas no sentido em que o conhecemos na infância, mais encantador do que assustador, que seria o sentido original destas histórias na antiguidade e que vem sendo destacado em filmes desta década. É um livro indicado para crianças na mais tenra idade mesmo, começa inclusive o tradicionalíssimo “Era uma vez...”; assim elas podem desde já fascinar-se com a estrutura arquetípica e tomar contato em livro com a tradição narrativa ocidental. A obra é excelente no que se propõe. É a história de uma família modesta e trabalhadora que vivia na floresta, com pai, mãe e três filhos, todos homens. Eles desejam uma menina para ser caçula e o pai, um lenhador, faz um pacto com uma feiticeira para que nasça a garota. É claro que há um preço a pagar: a menina, quando completar quinze anos, deverá ser entregue para a Feiticeira, que teria uma serviçal. Os familiares unem-se para burlar o trato amaldiçoado e proteger a filha mais nova, que se chama Flor – daí o título. Tem início então as peripécias, com passagens por cabanas isoladas na floresta, nevoeiro mágico sobre uma pequena vila e alguns simbolismos significativos. Há também, é claro, um grande amor e o proverbial final feliz – façam-me o favor de não reclamar de spoiler quanto a isto, afinal de contas é um conto de fadas. As ilustrações de Wagner Matias de Andrade lembram o estilo clássico de linha clara dos quadrinhos europeus de meados do século passado, mas com uma pegada mais contemporânea, e devem fazer os olhos das crianças brilharem. Quem reavivar sua criança interior também deve gostar do livro.
Daniel Souza Luz é escritor, jornalista e revisor
Resenha publicada no Jornal da Cidade (Ano XXX, nº 7.186, Poços de Caldas, MG, de 28 e 29 de dezembro de 2019).


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Wednesday, January 01, 2020

Daniel da Luz, Contador de História (versão resumida para o Mantiqueira)

Daniel da Luz foi um homem trabalhador, bom pai e alegre. Gostava de ajudar as pessoas, de rir, de contar histórias e piadas. Pediu para pôr como epígrafe no seu túmulo a inscrição “Aqui jaz o homem mais feliz do mundo”. Não chorem ao se lembrarem dele, mas sim sorriam e riam; se possível, caiam na gargalhada, ele preferiria assim. Mas lembrem-se dele, sempre.
Bem, até aqui está o que escrevi, com a ajuda da minha mãe, para constar no cartão de lembranças que será distribuído neste final de semana, na missa de sétimo dia do meu pai. Minha amiga Renata Chan revisou o texto para mim, assim como esta crônica, e disse-me que se lembrou d’Os Excêntricos Tenenbaums devido à frase a constar no epitáfio. Não assisti ao filme, mas meu papai me faz recordar outro: Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas, do Tim Burton, baseado num livro de Daniel Wallace, o qual ainda não li.
Meu pai gostava de contar história de pescador, mas nenhuma delas envolvia pesca. Como em Peixe Grande, também eu, filho mais velho, formei-me em jornalismo e não aturava as mentiras dele. O Daniel pai era um cara inteligente. Quando eu era criança, ele lia o Pasquim para nós, nos falava de política; sei quem é Adam Smith e Karl Marx, o que é capitalismo e comunismo, desde a mais tenra idade. Ainda estávamos na ditadura quando ele nos falava de Marighella e Lamarca, assuntos tabus na época. O livro do qual meu pai mais falava era História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman, que era um historiador marxista; só descobri isso agora, para minha total surpresa, ao escrever estas memórias. Isso porque meu pai ainda nos falava muito dele quando entrou para o PMDB, no início dos anos noventa, e passou a ter uma postura cada vez mais pragmática, fazendo-me supor que Huberman era um autor de direita liberal, até pelo título do livro. Antes, papai era brizolista roxo, filiado ao PDT, e gostava de afirmar que era ex-comunista.
A questão é que meu pai contava tanta mentira cabeluda, muitas delas envolvendo conquistas amorosas, que caiu em descrédito comigo. Passei a ser completamente cético com relação às histórias de seu passado de esquerdista radical, por exemplo. Até que dois fatos me mostraram que, como em Peixe Grande, muitas vezes ele só dava umas exageradas na verdade. Ao voltar para Poços de Caldas em 2001, depois de formado, encontrei na casa do meu amigo Raphael Xavier um velho volume amarelado de Marx que meu pai havia emprestado para ele. Estava datado e assinado por ele: era de 1968, poucos meses antes do AI-5. Isso explica porque nunca tinha visto esse livro em casa; ele o manteve bem escondido.
Naquele ano ou no seguinte, morreu o ator Fernando Frizzo. Meu pai viu a notícia e disse-me que ficou triste com isso, que havia feito teatro e que simpatizava muito com ele. Ah, peraí, teatro? Não tem nada, mas nada a ver com ele. Pois bem, e não é que meu pai fez teatro estudantil? Foi no fim dos anos sessenta. Quem me contou foi Teresa Mesquita, educadora e prima do jornalista Luis Nassif. Um dia, nos idos de 2003, fui entrevistá-la, ela viu meu nome e me contou que faziam reuniões secretas, pois eram vistos como subversivos e viviam sob uma ditadura. E faziam peças de teatro, das quais meu pai participava. Fiquei de cara, então era tudo verdade.
Há tantos causos dele que gostaria de retransmitir, mas o espaço reservado para este texto está acabando. Fica aqui meu favorito: diz meu pai que ele teve uma boate em Beagá e que um dia um sujeito estava lá aprontando uma confusão. Isso teria sido nos anos sessenta. Ao abordar o cara e pedir para que ele parasse a baixaria, ele teria dito “Eu sou Agnaldo Timóteo!” e meu pai teria respondido “E daí? Eu sou Daniel da Luz!”. Isso feito, saíram pela rua trocando tiros. É inverossímil, mas e se for real? Como dizia o cineasta John Ford: “Quando a lenda é mais interessante que a verdade, imprima-se a lenda”.
Daniel Souza Luz é escritor, jornalista e revisor

Hoje meu pai faria 79 anos, mas ele faleceu um mês antes. A saudade é muita. Este texto em homenagem a ele foi publicado no Mantiqueira, jornal de Poços de Caldas/MG, em 07/12/2019.