Monday, October 18, 2021

O Nobel

Este conto foi publicado no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 16/10/2021. Era inédito, foi escrito no dia anterior. 

Um espasmo de ódio sacode Spaticano, sempre cioso de sua organização. Os livros expostos na vitrine não estão de acordo com a lista dos mais vendidos desta semana e as exigências das editoras. É um trabalho artístico essa arrumação. Ele jamais deveria ter delegado a um empregado. Até porque alguns pedidos jamais devem ser atendidos. Os livros comemorando o centenário de Paulo Freire nunca deveriam estar em destaque. Algo assim ele só aceitaria, muito a contragosto, se ele entrasse na lista dos dez mais vendidos. É verdade que a revista na qual sempre se fiou não é mais sua favorita. Spaticano se revolta ao ler alguns dos artigos hoje. O novato, ainda no contrato de experiência, não entende. “É que eles cederam na guerra cultural. Você não compreenderia, é novo demais. Precisa fazer os cursos que fiz para entender”, explica Spaticano, suspirando. “O senhor leu muitos livros nesses cursos?”, pergunta, ingenuamente, o novato. “Vi os vídeos. Não tenho tempo de ler, tenho tarefas demais”, justifica Spaticano. Agora ele está à procura do empregado mais antigo. Está sedento por justiça. Dá aquele esporro e arremata: “Na minha livraria não!”. Depois procura nos catálogos das editoras se o novo laureado pelo Nobel de Literatura já foi editado no Brasil. Não foi. “Quem deveria ganhar um Nobel de Literatura era eu”, resmunga. O novato, querendo entender a dinâmica da livraria, pergunta o que ele disse, pois não escutou bem. Irritadiço, Spaticano repete a frase com certa brutalidade: “Quem deveria ganhar um Nobel de Literatura era eu”. Diante da cara de incredulidade do pobre-diabo, ele complementa: “Quem faz de verdade os livros somos nós que os vendemos. E eu sou o melhor vendedor. Não é justo isso. Vou escrever um livro sobre vendas de livros, especificamente”. Agora quem está incrédulo e largou seus afazeres é o empregado das antigas, leitor voraz que bem sabe como o patrão é iletrado. Notando que já conquistou sua audiência, afinal duas pessoas prestando atenção é o começo da trajetória do vencedor, Spaticano discursa triunfante. “Livro é igual salsicha, eu fui gerente de vendas uma fábrica de salsichas, é tudo a mesma coisa. É só uma mistura de papel e umas merdas. Vou escrever o meu! É só saber chegar nas pessoas certas da sociedade para ser um sucesso”. Um cliente entra na loja, alheio ao espetáculo. O novato vai atendê-lo. O velho empregado não resiste: “Você esqueceu do sangue”. Spaticano está tão fascinado por seu próprio rompante que sequer escutou.       

Daniel Souza Luz é professor, revisor, jornalista e escritor




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