Esta resenha foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 23 de outubro de 2021.
O lançamento deste livro pela
TAG, em parceria com a Companhia das Letras, foi muito oportuno: em março,
salvo engano, quando a pandemia estava acelerando no Brasil a níveis absurdos. Com
UTIs com 100% de ocupação e pessoas morrendo na fila de espera, não tive
coragem de seguir na leitura. Quem foi mais racional e prosseguiu, com certeza pôde
refletir profundamente e compreender melhor o ponto em que chegaríamos agora
neste segundo semestre. Roth é dos raros autores a incorporar a Filosofia à
Literatura de forma orgânica, sem pedantismo, numa narrativa fluída na qual
questões contemporâneas são esmiuçadas sob o ponto de vista de discussões de
pensadores do século XX. Este livro, no entanto, é de 2009 e é seu canto do
cisne. É ambientado, mais uma vez, na sua cidade natal, Newark. No entanto, a
trama passa-se em 1944 e a doença sem cura, também provocada por um vírus, é a
poliomielite. Há muitos pontos de contato com o que o mundo vem passando desde o
fim de 2019. Mas também há diferenças marcantes: a doença não atacava tanto pessoas
na terceira idade ou mesmo adultas, mas sim crianças. E, principalmente, não
havia uma política genocida de um governo de extrema-direita para que ela fosse
irresponsavelmente espalhada para que se alcançasse imunidade de rebanho. É
justamente esse o ponto de tensão que permeia a história: as pessoas não
queriam que a doença se espalhasse. No entanto, no fraturado caldeirão étnico
dos EUA, um grupo de arruaceiros italianos decide ir ao bairro judeu para dar
cusparadas em direção a crianças judias, dizendo abertamente que queriam
contaminar judeus. O romance não se foca no antissemitismo, no entanto. Roth
conta a tragédia de um professor de Educação Física, Eugene “Bucky” Cantor,
jovem judeu muito forte e míope, frustrado por não poder lutar na Segunda
Guerra Mundial, através do seu ponto de vista filtrado por um narrador que é na
verdade um personagem secundário, numa manobra narrativa muito interessante –
por vezes, esquece-se disso e pensa-se estar diante de um narrador onisciente,
mas isso é esclarecido no capítulo final, no qual se compreende que as poucas
lacunas da história são justo as que Cantor estava relutante em contar. Não é à
toa: admirado na comunidade, especialmente após enfrentar absolutamente sozinho
os filhos de imigrantes italianos que ameaçavam seus amados alunos, ele passa
também a ser malvisto conforme as crianças que ele treina vão adoecendo e
morrendo. Desacorçoado e impotente, ele entra num processo de fuga perene e
degradação impensável para alguém tão autoconfiante. O reencontro com o
narrador, Arnie Meniskoff, também vítima da pólio, é o que proporciona reflexões
mais aprofundadas, pois Cantor não consegue elaborá-las. São especialmente fortes
as sobre culpa e sobre sequelas que talvez podem até se agravar anos depois,
arruinando planejamentos para a vida – aí sim temos outro ponto de contato com
a atualidade. O ateísmo de Roth não é tão pronunciado nesta obra, mas ele não
deixa de apontar como processos aleatórios e fora de controle são determinantes
para os indivíduos tentados a racionalizá-los ou espiritualizá-los, sempre em
vão. Por fim, sempre me perguntei por que Roth se aposentou dos romances, embora
ainda tenha vivido quase mais uma década, depois de uma carreira tão profícua.
Sempre pode haver mais algo a ser escrito. Mas talvez ele tenha contemplado as
quatro últimas páginas deste livro, assim que as escreveu, e pensado: é isso. É
compreensível, são um primor.
Daniel Souza Luz é professor, revisor,
jornalista e escritor
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