Wednesday, November 03, 2021

Jello Biafra já tinha avisado

Esta crônica foi publicada em 30 de outubro de 2021 na página nove da edição 7626 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). É uma versão retrabalhada da minha Micrônica 2009, que tinha o mesmo título e publicada originalmente em sete de novembro de 2017. 

No final de 2008 fui chamado para um concurso que prestara anos antes e do qual havia até me esquecido, pois abandonei a faculdade de Direito. Era para trabalhar no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, como oficial judicial, num cargo que chamam de precário – sem estabilidade, mas com possibilidade de efetivação. Uma prévia perversa da precarização do trabalho que grassaria a partir do nefando governo de Michel Temer. Mas, enfim, àquela época trabalhava numa assessoria de imprensa em Campinas, justamente atendendo associações de magistrados de São Paulo, e estava de volta à Unicamp, como aluno especial na pós de multimeios, estudando Cinema Brasileiro. Estava bem feliz lá, mas topei voltar, afinal era uma carga de trabalho de apenas seis horas e para ganhar um pouco mais, pois voltaria a morar com meu pai por ao menos algum tempo e economizaria com aluguel. Comecei no início de 2009. Fui nomeado para uma secretaria criminal – ou vara criminal, pouco me importa o juridiquês, pois é o mais patético dos jargões. Pensei: “Tudo bem, estamos no século 21, deve ser um trabalho civilizado”. Ledo engano. Não, não estávamos – eu podia estar, mas o não arcaico judiciário brasileiro, que mal disfarça seu pendor escravocrata. As letras de punk rock/hardcore e rap sempre me avisaram, sempre soube, mas imaginei que os poderes haviam se civilizado minimamente tantos anos após a redemocratização. Foi ingenuidade demais para quem sempre ouviu punks e rappers. Caí em depressão, é deprimente demais fazer parte da aplicação do direito penal, uma máquina tão racista que chega a ser caricata. Sem falar ser obrigado a conviver com os privilégios nababescos da magistratura, uma casta inimputável; na genial mudança que fez na letra de I Fought The Law, do The Crickets (originalmente é “Eu lutei contra a lei e a lei venceu”), para os Dead Kennedys, Jello Biafra já havia flagrado o maior dos crimes: “Eu sou a lei, então eu venci”.

Daniel Souza Luz é professor, jornalista, revisor e escritor


Jello Biafra em Nova Iorque, 13 de julho de 2002. Foto tirada por Scott Beale/Laughing Squid (laughingsquid.com) e reproduzida aqui via licença não comercial Creative Commons.


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