Esta resenha foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 20 de novembro de 2021.
O clube literário TAG acerta
mais uma vez numa coletânea. Desta feita, essa foi lançada para comemorar o Dia
Nacional da Consciência Negra, comemorado hoje, dia 20 de novembro. É um
acompanhamento para o romance deste mês, e que bônus! São textos que refletem
sobre a presença de autores negros não apenas na literatura, como também nas
relações sociopolíticas em todo o mundo, muitas vezes de um ponto de vista que
expressa o pensamento decolonial, que rejeita o supremacismo cultural
eurocêntrico. A introdução, escrita pela professora Zélia Amador de Deus, é
ótima e estabelece um eixo comum a muitos dos textos de coletânea: a obra
literária de Toni Morrison, autora de Sula, que foi lançado pela TAG neste ano
e o qual já resenhei. Zélia me deu a ideia de que seriam ensaios acadêmicos,
mas ledo engano o meu. O primeiro é do incensado Itamar Vieira Júnior, escritor
baiano que venceu inúmeros prêmios com o romance Torto Arado no ano passado,
incluindo o Jabuti. Ele tangencia o ensaio pessoal, ao falar de sua relação com
bibliotecas, uma das quais no bairro onde viveu Jorge Amado, e, também,
demonstra que, antes de chegar em Morrison e outros autores negros, passou por
clássicos da literatura juvenil brasileira e clássicos como Thomas Mann, Fiódor
Dostoiévski, José Saramago e Jorge Luis Borges. Ou seja, não há uma repulsa à
literatura de autores brancos europeus ou que dialogam com a tradição
ocidental, mas sim um rompimento com o viés elitista que rejeita outras
vivências e/ou produções fora dos centros culturais usuais. No entanto, após
certa digressão, ele opta por produzir um ensaio mais convencional mesmo, ainda
que sem viés academicista, a respeito do prazer da leitura e sua potencialidade
educacional. Quem faz um ensaio pessoal a respeito do contato com os livros e o
posterior mergulho na literatura produzida por negros, em especial por mulheres
negras, é Djamila Ribeiro. Ainda eu que tenha reservas com relação a sua
arrogância midiática (vide os ataques que ela fez à militante Letícia Parks,
também negra, mas desprezada por Djamila por não ter a pele retinta), não tem
como não admirar sua postura editorial, cujas razões são esmiuçadas no seu belo
ensaio. O texto seguinte é o melhor da coletânea e é da lavra da haitiana
Edwige Danticat. Publicado originalmente na prestigiada revista New Yorker, a
bíblia do jornalismo literário, é uma mistura vigorosa de texto de memórias e
ensaio pessoal. Tem a grande qualidade do texto literário, mencionada no ensaio
de Itamar Vieira Júnior e perseguida obsessivamente pelo jornalismo literário
(que é o jornalismo aprofundado que despreza as convenções jornalísticas do
texto com lide e pirâmide invertida, não sendo necessariamente o jornalismo que
cobre literatura): a capacidade de nos transportar a locais onde nunca
estaremos, eventualmente num passado distante, e a experimentar vividamente histórias
e sensações de outrem. Segue-se ao brilhante relato dela, um doloroso epitáfio
para uma haitiana cuja existência evola junto ao seu país, um riquíssimo
bate-papo entre o quadrinista Marcelo D’Salete e o dramaturgo e historiador
Allan da Rosa. Mesmo quem já tem algum conhecimento das referências que eles
evocam tem muito a aprender com o diálogo registrado, que relembra personagens
e autores quase apagados pelo racismo estrutural. Por fim, há um complexo
ensaio, ainda que curto, do congolês Alain Mabanckou. Depois de sair da África
e imigrar para a França, residindo atualmente nos EUA, ele investiga as
contradições que os imigrantes vivem e como as identidades transfiguram-se. Da
sua vivência ele arranca conclusões instigantes sobre a condição humana. Leiam
com atenção redobrada.
Daniel Souza Luz é professor, revisor,
jornalista e escritor
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