Monday, July 25, 2022

Contracultura em desintegração

Este ensaio foi publicado originalmente na página sete da edição 7801 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 23 de julho de 2022. Revisei o texto no dia 26 de julho, um dia após a publicação aqui neste blog, para corrigir um erro de digitação e eliminar uma palavra repetida.  

Na segunda-feira desta semana, dia 18, Hunter S. Thompson teria completado 85 anos se não tivesse se matado em 2005. Gosto dessas efemérides, embora, geralmente, passem batido. Podem me pôr em movimento; neste caso, serviu para lembrar-me que havia abandonado a leitura de Medo e Delírio em Las Vegas no começo. Tentei lê-lo antes de assistir ao filme, lançado em 1998, mas não houve tempo hábil e acabei assistindo-o antes. Desanimei, deixei para lá e, com atraso de décadas, finalmente recomecei do zero e concluí a leitura, pois há uma edição recente da L± agora já é considerado um clássico moderno pela editora. Na verdade, já era nos anos 1990, pois é uma obra lançada em 1971, publicada originalmente em capítulos pela revista Rolling Stone. A reputação de Thompson precedia sua obra. Criador do jornalismo gonzo, li várias reportagens e artigos sobre ele antes de ler sequer uma linha do que escreveu. O “gonzo journalism” é uma variante do jornalismo literário (que não cobre necessariamente literatura, mas é sim uma forma aprofundada de se fazer jornalismo) com uma metodologia mais simples: ainda que faça descrições pormenorizadas de ambientes e analise as atitudes das pessoas que são alvos de suas reportagens, em vez de simplesmente reproduzir suas declarações, Thompson fazia isso completamente chapado de drogas psicodélicas. Era consenso nas matérias a respeito dele que não se sabia como ele ainda estava vivo. Quando finalmente li um de seus textos, na revista Trip, foi o famoso artigo sobre o Kentucky Derby, tido como a peça inicial do jornalismo gonzo. Ao contar como foi a famosa corrida de cavalos, Thompson não estava nem um pouco interessado no aspecto esportivo, mas sim em narrar o que ela realmente é: uma exibição de poder. Logo no início, ele diz que os verdadeiros animais chegaram ao recinto, ou seja, os políticos locais. Ainda se tratava de jornalismo. Medo e Delírio em Las Vegas está mais para literatura mesmo. Tudo bem, Thompson conta o que ele e seu advogado aprontaram em Las Vegas. Acontece que ele é um narrador não confiável. Não é que ele seja intelectualmente desonesto; a questão é que o livro é, de certa forma, um equivalente (sur)realista de Um Estranho no Ninho, do escritor beat Ken Kesey, cuja militância pró-drogas, aliás, é citada constantemente por Thompson. Sãos dois livros geniais e o paralelo é inevitável para mim: enquanto Kesey escreveu uma obra ficcional com um narrador fascinantemente não confiável, o indígena Chefe Vassoura, que está trancafiado num hospício e que não consegue diferenciar suas alucinações da realidade, Thompson descreveu o que realmente aconteceu sem também saber o que é alucinação ou é real. A corrida off road e o encontro de policiais e promotores sobre a “cultura das drogas” que foi cobrir em Las Vegas foram apenas desculpas para ele e seu infiel escudeiro, o advogado samoano cujo nome jamais é mencionado, drogarem-se em níveis inumanos com todos os entorpecentes conhecidos à época. A prosa alucinada é fluída, cristalina; os acontecimentos, obscuros. Há uma passagem que seu advogado foge do hotel com malas novas, levado de carro por Thompson, e nenhum funcionário percebe. Não é crível, mas ele não está preocupado com os fatos: o livro é um longo relato de como não consegue fazer a cobertura da corrida por estar muito drogado ou desinteressado e de como não quer cobrir a convenção porque odeia autoridades. Talvez por isso mesmo, é o trecho mais jornalístico, no sentido convencional, do livro: enquanto ao longo de toda a trama nomes são omitidos, o médico e o promotor que falam na abertura da convenção são citados nominalmente e têm seus discursos implacavelmente ridicularizados – não havia ainda o conceito, mas Thompson tinha lugar de fala e era realmente o especialista em drogas. Conferi numa rápida busca na internet: o médico e seu livro caricato sobre maconha são reais. E esse nem é o trecho mais hilariante, há vários que me fizeram dar gargalhadas. Conforme a história progride, no entanto, a trama fica cada vez mais sombria e desconexa. Afinal, os anos do flower power já haviam passado e Thompson ressente-se disso. Sua geração perdera para o conservadorismo de Nixon e Raoul Duke (seu pseudônimo) não se poupa: na verdade, ele e seu advogado são junkies ameaçadores e violentos. A misoginia de ambos não fica nada a dever para a de Charles Bukowski e a de Jack Kerouac, outros dois ícones literários do período; talvez seja até pior. Reflexo de uma utopia que degenerou, Thompson registra com nostalgia os ideais libertários da geração hippie dele e de Kesey, Allen Ginsberg e Timothy Leary, mas, mais lúcido do que seu histórico sugere, aponta claramente o que “uma jornada selvagem ao coração do Sonho Americano” (o subtítulo do livro) lhe revelou: a obsessão por dinheiro fácil nos EUA solapou os sonhos utópicos de seus pares e a necessidade de “iluminação” de então não era diferente das velhas religiões, levando ao surgimento de “gurus” oportunistas e, embora ele não mencione nesta passagem, ao culto homicida de Charles Manson que ele frequentemente relembra. O sonho acabou, mas redundou num livro acachapante.  

Daniel Souza Luz é escritor, jornalista, revisor e professor


Hunter S. Thompson em Las Vegas, 1971. Foto de domínio público. 


2 comments:

Chico Lopes said...

Boa resenha sobre um livro e um escritor esquecidos. Não cheguei a conhecer o livro nem o filme (com Johnny Depp, se não me engano) que dele se originou, mas gostei das informações e, infelizmente, da Contracultura nada sobrou, pois o Sistema se apoderou de tudo, até dos discursos radicalmente anti-Sistema que ela plantou. A rebeldia hoje em dia tem outra cara.

Daniel Souza Luz said...

Muito obrigado pela leitura atenta, Chico! O filme é realmente com o Depp, que também atuou em outro filme adaptado de um livro do Thompson: Diário de um Jornalista Bêbado.