Tuesday, October 16, 2007

Microconto em inglês

The snake in the grass

A snake charmer fell in love with her. Now he’s trapped in a box.

Monday, September 10, 2007

Gatinha

Paula lambia-se como se fosse um gato. Sabia que não tinha lógica, mas é um hábito de criança do qual não consegue se livrar. Finalmente em casa, depois de um banho e do almoço, morrendo de sono em frente à TV, sol a pino e sabendo-se privilegiada por estar naquele quarto fresco, todo bege e bem-ventilado, Paula lambe-se e arrepia-se consigo mesma, sua melhor companhia, ainda que não considere dispensáveis as demais. Contorce-se na medida do possível, estendo a língua onde aprendeu que era bom pô-la, até que se aconchega no edredon e, antes de apagar, pensa brevemente como em ser contorcionista de verdade. Quando acorda, ao fim da tarde, o sol já amigável, ela espreguiça-se pacientemente e sai para caçar.

Tuesday, August 14, 2007

Judas, Caim e Abel

Um dia, percebeu que um plano simples bastava: não precisava brigar para ser o macho alfa ou se contentar em ser subalterno. Fez concurso para oficial de justiça sem contar para ninguém e ficou contente por ter conseguido uma colocação ruim. Justamente por isso, devia ser chamado para trabalhar em uma cidade distante, em alguma comarca para onde ninguém queria ir. Teve sangue frio, agüentou as provocações dos irmãos e dos pais sem anunciar para ninguém que havia garantido uma vaga e esperou o momento de ser chamado enquanto trabalhava no supermercado, em meio à remarcação de mercadorias vencidas, clamores para que fosse menos lerdo e clientes mal-educados. Chamado ao fórum, confirmou seu interesse na vaga e quietamente embalou seus poucos pertences, sacou dinheiro da poupança para passar o primeiro mês e esperou a noite da véspera chegar para comunicar a mudança a todos. Antes, ao fim da tarde, seus pais notaram que seus livros, apostilas, roupas e carrinhos de brinquedo tinham sumido. Quando chegou, foi chamado de mal-agradecido e teve sua mala jogada no regato ao lado. Sorte que foi amparada pelo bambuzal. Ambos, mala e mala, foram diretamente para rodoviária. Anos depois, em meio a muita falação antes de fazer uma citação, viu a foto de seus irmãos no jornal em cima do balcão da lanchonete. O mais velho matou o caçula em meio a uma discussão sobre quem deveria administrar o negócio. Um templo evangélico funciona no prédio onde ficava o supermercado. Poucos na vizinhança ainda se lembram do estabelecimento e daquela família ao passar com pressa pelas mulheres do bairro que fica do outro lado do córrego, com suas grandes saias e proles.

Friday, June 22, 2007

Cromo

Ela esqueceu de tomar o remédio, mas na verdade esqueceu que havia tomado-o. Dormiu dois dias seguidos, com a porta aberta. Os cachorros que sempre vagabundeavam pela redondeza entraram, comeram toda a comida sobre a mesa, rasgaram o saco com as fotos talvez por achar que também fosse comida, talvez por diversão, e destruíram recordações que iam de 1977 a 1991. A sorte que foi que o gatinho, Mimado era o nome, chegou e pôs os curiosos para fora com patadas nas fuças dos pobres bichos, todos com costelas à mostra. Muitas fotos ainda foram salvas assim, mas não foram mais vistas. Quando suas sobrinhas apareceram para visitá-la, vendo-a estendida no sofá, o gato a seus pés e toda aquela confusão na cozinha e sala, imaginaram o pior, mas não conseguiam se decidir: ou ladrões entraram lá, ou ela estava morta há dias e o gato detonou tudo. Finalmente perceberam que ela apenas dormia, e acordaram-na para o pesadelo de levá-la para o asilo, onde ela não podia cuidar de suas coisinhas. Bem de saúde até então, rapidamente adoeceu e se foi. Todos estavam contentes por ter tomado a decisão certa, não a abandonando para morrer sozinha em casa.

Monday, June 11, 2007

O que cair na mão

Lia de tudo, compulsivamente. Lima Barreto, Oscar Wilde, Dan Brown, Paulo Coelho ou auto-ajuda, tanto faz. Não fazia quase nada e quase ninguém passava por ali. Pressionada a ser funcionária pública pela família e pela falta de perspectivas, fez concurso, passou raspando e fica só quase o tempo todo. Disso ela gostava, podia ler sussa. Os turnos de 12 horas, nos quais ela passa madrugadas adentro vigiando escolas periféricas, bagunçaram seu relógio biológico. Ela quase não dorme em casa, nunca dorme em serviço porque morre de medo de ser demitida e ser ainda mais achincalhada em casa. Seus cabelos estão caindo, seu rosto de menina, apesar dos 20 anos nas costas, está se enchendo de manchas senis. Ela não sabe fazer nada a não ser atirar, porém o porte de armas foi cassado à guarda metropolitana. Em dois anos, a única ocorrência que lhe emocionou fora das leituras foi quando dois ladrões entraram em uma creche para roubar a TV e o DVD da brinquedoteca. Ao flagrá-los, surrou-os com a tranca da porta e encerrou-os no banheiro, para que não danificassem nenhum brinquedo. Esse cuidado, a valentia e a presteza garantiram-lhe respeito na corporação e na PM. O processo por cárcere privado foi rapidamente arquivado e a alegação de legítima defesa aceita de antemão na sindicância. Depois disso, a falta de adrenalina tirou graça da leitura. Disseram-lhe tanto que a TV aliena e que ler faz diferença, mas tantos livros depois, ela não se sentia uma pessoa melhor. Estava tão alheia a tudo como sempre foi. Aqueles dois ladrõezinhos fizeram mais pela auto-estima dela do que qualquer Augusto Cury da vida. Ela, que fora sempre tão travada, passou a assistir desenhos e a divertir-se na brinquedoteca toda noite, vivendo finalmente a infância que lhe foi negada na lida doméstica.

Friday, June 08, 2007

Gêmeas

Um ato muito específico para quem a conheceu. Sua mãe fazia exatamente igual. Cruzava os braços e alisava ambos simultaneamente, como estivesse desejando alguém que a acalentasse, mas mantinha-se fechada e afastava a todos. A garota faz exatamente o mesmo. Mais carrancuda, menos amigável. É como se fosse a mãe há quinze anos, mas com um piercing.

Wednesday, June 06, 2007

Bloqueio

Era um grupo de 15 donas-de-casa ajoelhadas, rezando, na escada de mármore branco. Em meio a elas, apenas um homem, desempregado e suando em bicas no sol da uma e meia da tarde. Há duas horas estavam murmurando ininterruptamente cânticos e rezas. No começo dos anos 90 não era moda aparições de imagens de Virgem Maria em vidros embaçados. Matando aula, as duas alças da mochila pesando no ombro esquerdo, o garoto segue indiferente, até que se vê interditado por uma senhora com cara bondosa, implorando para que ele fosse rezar junto. Diante da negativa, ela diz que tem muita pena dele, pois o fim está próximo e o julgamento será minucioso. O garoto observa a cena e pensa por uns dois minutos se tanta reza mudaria algo. Ele se dirige à bilheteria, tapando o ouvido para não ouvir as beatas, e compra o ingresso para o filme pornô cuja sessão está para começar. Dentro, não consegue o que queria, pensando no mau agouro lançado sobre seu desejo. Nunca mais teve uma ereção.

Monday, May 28, 2007

Trilha odorífera

Caminhando cabisbaixo, pensava na ameaça de hipoteca com o odor da bosta de cavalo invadindo-lhe as narinas e providenciando um acompanhamento ideal para o que se passava em sua cabeça.

Wednesday, May 23, 2007

Recado particular

Contra minha vontade, aprendi a atirar antes de espremer espinhas. Papai era obcecado por armas, entendia que era a única defesa confiável, ou isso ou estaríamos nas mãos de meganhas ausentes e incompetentes. Não acreditava nisso, nunca aconteceu nada, estamos nas mãos de Deus e só. Arma nenhuma pode fazer frente à surpresa, ao inconcebível. Fui obrigado a fingir entusiasmo em caçadas a pobres capivaras que nunca fizeram mal a ninguém, a atirar em troncos fingindo ódio por eles serem imaginários invasores de terra. Talvez por não gostar, talvez por querer impressionar a todos e largar logo daquilo, descobri o único dom que os céus me deram: uma mão firme nos coices e uma mira nanométrica. Uma maldição, na verdade. O que iria fazer com aquilo? Não gosto de caserna, polícia (uma boa influência paterna), de caça. Ainda entristeço-me por ter estourado a cabeça de todos aqueles bichos. Depois de, ingenuamente, na verdade ter considerada minha presença indispensável nas excursões, passei a errar de propósito. Tive minha masculinidade questionada pelos tios e compadres, mais do que minha firmeza, mas permanecia tão frio quanto na época em que acertava todas as ranhuras de madeira que afirmava que acertaria. Pedras que voavam longe, galhos partidos, folhas esburacadas, detalhes de troncos chamuscados. Sabia exatamente onde mirava e acertava, sempre.


Tuesday, May 22, 2007

Falta de gosto

Ela nada mais pode fazer que seja do seu desejo. É mimada escada acima, escada abaixo, recebe afagos, atenção e comida na boca, mas não sente nada, em nenhum sentido. Não queria nada disso. Lembra-se que pôde dormir anos e anos com um homem, o tato caloroso. O rosto e o nome dele, ela sonha que dorme abraçada com ele, não consegue chamá-lo nem virar-se para vê-lo. Às vezes uns velhos vêm visitá-la, apresentam-se como filhos. Ela fica agradecida à direção por trazer esses voluntários para fazê-la sentir-se bem. Não diz nada, para não soar mal-agradecido. Os dois filhos, cabelinhos encaracolados, eram dois anjinhos. Eles ascenderam ao céu em um monomotor. As crianças que eles trazem e dizem ser seus bisnetos (ou netos?) parecem-se um pouco com eles.

Monday, May 21, 2007

De bico

Tenho menos de cinco minutos para escrever esse bilhete, a essa altura. Espero que o encontrem no bolso do meu paletó. Te amo, te amo, te amo. As apólices do seguro estão na pasta em cima do guarda-roupa. Queria que a menina fosse médica, fala isso para ela, acho que facilita muita coisa porque ainda dá dinheiro e ainda você poderá confiar de verdade em alguém quando estiver doente, tenho certeza que você ainda vai viver muito, mas ela pode fazer o que quiser, tá? Tenho que proteger a cabeça agora. Se esse bilhete chegar na sua mão, lembrem-se que fui-me pensando o quanto amo vocês.

Friday, May 18, 2007

E eles foram felizes para sempre

Aquela assombração do capeta não merece registro. A simples menção do seu nome é um reconhecimento indevido. Esqueça, não falarei a respeito e seu recado não será passado. Sim, atualmente é inofensivo, sua mobilidade foi reduzida com o passar dos anos, ainda que a perversidade inata esteja apenas mascarada pelas pelancas e rugas de velhinho simpático. Trata-se de algo latente.

O que interessa é o seguinte: acertar uma história meia-boca para despistá-lo. Ignorar é uma benção. Não tem essa, é como se fosse uma perna de cobra: não existe e não interessa conjeturar sobre sua existência. Conte você, não dei moral para espectro nenhum. Não precisa ser nada bem tramado. Que ele perceba, quanto mais evidente que é uma evasiva, melhor.

Ninguém se deu conta que ele morreu, meses depois, a não ser os funcionários que trataram do trâmite para que seu corpo fosse doado a estudos de anatomia em uma faculdade de medicina.

Wednesday, May 16, 2007

Caçada na selva

Não se pode subestimar a capacidade de escrotização dessa fulanada medíocre, versada na ignorância do lugar-comum. Fica esperto, caralho, fica esperto. Eu fico velhaco o máximo que posso, e ainda é pouco, muito pouco. Penso antes, não falo nada, não importa, converso com quem vale a pena conversar, mesmo que você não me convença do que me dizem, ao menos posso refletir sobre o quê foi dito. Aqui não rola, é igual na prisão, aliás, isso aqui se parece muito com uma prisão, com o horário para tomar sol, para ginástica coletiva, bandejão, café com cigarro, câmeras de vigilância e muito ódio dissimulado que eventualmente transborda em pancadaria.
No presídio é assim: não fale. Escolha as palavras. Depois diga o mínimo possível. Revele muito pouco sobre você. Tudo que você diz pode e será usado contra você. Espere um pouco, aja depois. A menos que seja para arrumar um pretexto para fugir. Igual aqui. Pressa para tropeçar não servirá apenas para gargalharem da sua cara, mas para te fincarem no chão e botarem no seu rabo. Igual aqui.
Então o macaco velho de guerra trouxe uma pitaia para comer aqui. O quê? Pitaia. Um cacto comestível. Hidratante, fonte de vitaminas A e C, gostoso. Parece bom. Não interessa. Eu seria mais liso. Ou teria mais "bom humor", ou seja, absorveria as pancadas psicológicas revestidas de brincadeiras para descontá-las com o dobro da violência no momento oportuno. Mas na categoria.
"Trouxe uma frutinha cor-de-rosa para comer", bastou o primeiro carniceiro rosnar para as hienas cercarem a vítima com gargalhadas vorazes. Tentou defender-se entrando na "brincadeira", mas não entendeu nada, aquele era o momento de extravasar todas as frustrações recentes, azar. Eles de fato encarnaram as hienas encurralando o veado indefeso no recanto da cozinha. Portanto, não pode fazer nada além de exaltar-se e distribuir coices. "Exigo respeito, olhem minha idade, estou muito velho para este tipo de falta de respeito". Os sorrisos derreteram-se em carrancas, apelou perdeu, como se ele estivesse errado, tornou-se a "Bicha Ressentida", até sair do escritório, abatido.

Tuesday, May 15, 2007

Sacrifício estilhaçado.

A fila do sopão me aguarda. Esqueci tudo o que me interessava e só me lembro do que é ruim. As humilhações parecem um CD riscado tocando em um aparelho com bateria infinita. Isso é tudo que consigo formular. No mais, só repito o que me disseram. As pessoas na rua acham que estou xingando elas, tenho consciência disso, mas não posso evitar, não posso evitar, não posso evitar e sei que não posso gritar com a assistente social, que minhas roupas estão cada vez piores, o bafo está insuportável, não bebo, mas não adianta nada, não adiantou nada, tudo que fiz não adianta porque a polícia bateu no menino até ele morrer, vendi quase tudo por causa dele e o que restou a enchente levou e todo mundo me odeia, me odeia, porque não estava lá na hora que os agentes funerários apareceram com as pistolas para espalhar o sangue dele ainda mais pela grama vermelha e o que tinha que ter feito era estar lá, temos que evitar tudo de ruim que acontece com ele e eu não procedi assim, estranho que eu ainda saiba usar as palavras, porque elas não servem para nada. Não se diz dinheiro e ele aparece, não se diz filho e ele aparece, nem me lembro mais do nome dele.

Friday, May 11, 2007

Estaremos juntos quando formos velhinhos?

Assoprando no meu ouvido, de brincadeira, tal como ela gostava de fazer há anos, tenho impressão que ela sussurra algo. “O quê?”, pergunto, quase sussurrando também. Nada, nada, não disse nada. Não acho que tenha ouvido o que desejava, como se fosse uma deixa para eu me desprender. Parece real demais, o eco ainda se faz ouvir. Não te agüento mais. Ato falho de confissão involuntária, ato premeditado para me atormentar, ou auto-ilusão conveniente, daquele dia em diante ficou claro para mim que aquele sussurro ressoante encerra uma verdade que começou a se tornar cada vez mais evidente. Por aquela velha história dos filhos e tal, fiquei, mas a fidelidade se foi.

Raciocínio abandonado pelo cafezinho.

“Ódio é apenas uma curta mensagem de perigo”. Nunca imaginei deparar-me com uma frase tão boa em uma dessas correntes de motivação que caem na minha caixa eletrônica. Gostaria que fosse verdadeira. Soa plausível, ao contrário da boniteza irrealizável do mundinho pragmático e solidário dessas mensagens. Não é assim, tampouco. Se fosse, seria muito bom, algo como um imperativo biológico da espécie que reduz outras funções do corpo durante uma situação ameaçadora. Não se trata de nada disso. É um efeito colateral, eventualmente imorredouro, quase sempre com gênese neste tipo de situação. Fica latente e pode acabar com a morte, se não ocorrer nenhuma situação propícia para seu ressurgimento. Suficientemente propalado, quando em estado agudo, sobrevive a nós e perpetua-se por gerações.

Não sei se vale falar algo.

Não posso falar nada. É hipocrisia. Muitas vezes, antigamente, quando era mais honesto, brincava de flertar, só por uma questão de auto-estima. Não acho que isso afetasse minha integridade. Logo cortava a brincadeira. O Marcos Fita é merda. Não preocupa. Para fazer valer a pena um ínfimo da vida do Nathanael, resolvi brincar com ela. Ela tava precisando mesmo, devido ao clima lúgubre do serviço. Até brincadeira escrota servia. Fiquei falando para ela se consolar no ombro do Marcos, se o nariz dele deixasse-a chegar perto. Ela caiu na risada, mas não era uma gargalhada nervosa, era um riso de alívio. Tô fora, aquele cara é um nojento, acha que pode fazer graça com umas cantadas cafonas, ela disse. O que só fez aumentar a minha culpa. Ao menos o próprio Nat deu a chave para consolar uma colega de serviço

Thursday, May 10, 2007

Nathanael foi além.

Foi foda. Nem fui trabalhar segunda. Nathanel morreu sábado à noite, em um acidente estúpido – parece clichê dizer isso, mas uns acidentes são mais estúpidos do que os outros. No velório, domingo, nem parecia que tinha sido algo tão violento. Ele estava inteiro, bonito e mais frio que de costume. No dia seguinte, depois do enterro, decidi não voltar para o escritório para ruminar o quanto a vida é curta e tal. Se quiserem descontar, fodam-se. Terça também não trabalhei, apesar de ter batido cartão. Assombrado, fiquei olhando para o monitor o dia inteiro, sem fazer nada. De certa forma, conversei com um morto, mesmo não sendo kardecista. Assim que liguei o MSN, pulou uma tela de mensagem offline escrita no fim da tarde de sexta:
“Nat escreveu:
preciso te falar uma coisa
Nat escreveu:
bem quando te escrevi isso, você desconectou
Nat escreveu:
Tão tentando furar teus zóio mermão
Nat escreveu:
É aquele Marcos fita, tá muito saidinho aqui com a tua patroa
Nat escreveu:
cresce o olho e intima ela
Nat escreveu:
não que ela tenha feito algo
Nat escreveu:
mas ele tá de zoio
Nat escreveu:
desculpa falar assim, mas perdi seu celular
Nat escreveu:
acho que tenho intimidade o suficiente contigo para falar isso por aqui
Nat escreveu:
pelo menos, quando vc ver isso, terá passado pelo menos mais um findi sussa
Nat escreveu:
a ignorancia geralmente é uma benção
Nat escreveu:
mas eu precisava te falar e não dá para tel ligar em lugar nenhum, dadas as circusntancias
Nat escreveu:
cara vou viajar blz
Nat escreveu:
desculpa o susto mas tenta me ligar quando vc chegar
Nat escreveu: []s”.

Respondi offline “Obrigado, logo nos veremos”.

Wednesday, May 09, 2007

Ma huang

Você tem que usar isso, estou falando de coração. Eu e sua tia usamos como energizante, e ainda ajuda a perder peso. A gente fica mais ativo, pode confiar. Foi um mórmon que ensinou isso para sua prima. É duro ter que agüentar essa chantagem emocional. Como se estivesse destruindo uma centenária tradição familiar. Na verdade, devo estar questionando a tradição de todos pensarem que são médicos diplomados pela vida. Toma, não faz mal. Então vamos lá tomar um troço bizarro da China. Ah sim, mas que é usado pelos mórmons. Faz sentido pra caralho. Sua avó também usa. Minha mãe também está contra mim. Ela não usa, mas está ofendida por eu não querer usar, ao contrário do meu tio, que está apenas mostrando alguma contrariedade que no máximo vai virar uma magoazinha. Para ela, é uma desfeita cruel. Não diz com palavras nem os olhos, mas o gesto de apertar as mãos com força entrega tudo. É modo como ela se contém por não poder mais dar beliscões nos filhos. Tomo na frente deles, ali na hora. Para que essa pressa, filho? Ué, não é para usar? Usa de uma vez. Assim que se fala, gosto de quem tem atitude. Quando eu participava de ações do Greenpeace e organizava shows beneficentes, ninguém gostava de quem tinha atitude. Perda de tempo. Não é a primeira vez que tomo algo que não quero para agradar eles. Antes não sabia de nada. Hoje tem internet para explicar o ataque de ansiedade: essa porcaria tem efedrina. Pensava que aquela semi-síncope era por causa da pressão familiar; pensando bem, é mesmo.

Tuesday, May 08, 2007

Prelúdio

Está tudo tranqüilo, todos estão sorridentes. Isso é quase que mau agouro. O pressentimento de quem conhece a falta repentina de brincadeiras das chefias raramente falha. Será que não percebem que não há planejamento? Quem não reconhece o sinal e crê que tem moral dentro da empresa enfiou o tímpano na roleta russa e não se dá conta. O primeiro que reivindicou um pouco mais de respeito a nossos direitos pro chefão foi degolado no dia seguinte. O novato também tinha certeza que tinha desenvolvido certa intimidade. Opinou e caiu. Sem direitos, vigia o contrato de experiência. Foi tarde, contudo. Já Ariel é um aliado a menos. Avisei antes que as demissões são de veneta, mas ele queria desabafar. Se desse rolo, deu. Deu. Estava farto. Cantei a bola, não adiantou. Ele está feliz, aliviado. A duração do alívio é que me preocupa. Se não fosse apenas hedonismo de duas semanas seguido por meses de angústia com o fim das parcelas do seguro-desemprego até encontrar a próxima senzala, seria bom afetar despreocupação.

Thursday, May 03, 2007

Segunda-feira de cinzas

Os telefones tocam em vão.

Todos com quem preciso conversar não foram trabalhar. Estão metendo, cochilando, bebendo e dando baixaria, queimando as carnes brancas no mormaço, jogando frescobol, cheirando, vendo mulher pelada na televisão, vendo revista de homem pelado no banheiro, alugando filmes pornôs, brochando em suítes caras de motéis vagabundos para ganhar uma chupada, discutindo com os pais velhinhos para depois jantar com eles, ralhando com os filhos e levando-os para tomar sorvete, nadando em piscinas com 37% de mijo, pulando ondas de coliformes fecais enquanto tomam água de coco, andando de bicicleta na chuva, sendo presas por desacato à autoridade, dançando nus em frente ao espelho, lendo Stephen King, ouvindo jazz na praça, comendo pipoca na fila do cinema, socando a fuça do adversário no xadrez, jogando RPG com os primos bestas, passeando com três vira-latas em forma de Cérbero, jogando confete nos travecos, enrolando as putas com serpentina e chacoalhando-se atrás do trio elétrico. Tem quem esteja trancado no quarto, ouvindo Bauhaus. Só alegria, o bordão surgido sabe-se lá onde me incomoda pra caralho.

Não é tristeza. Estou exasperado, pensando, impotente, cumprindo tabela, esperando que amanhã não perca o dia inteiro dormindo pra compensar a insônia que não posso descontar agora. O picareta do chefão veio dar exemplo. Trabalhou duas horas e foi embora rangar e fazer a sesta.

Friday, April 27, 2007

Puxando o tapete

Imprecações à parte, ainda se pode conviver numa boa com o novato folgado. Acha que caiu, ou caiu de fato, nas graças do Mullet. Faz sentido, pois é fácil impressioná-lo com português castiço ou jogando com conceitos recém-inventados/deturpados. O garoto é um alpinista social que tenta se impor pelo volume da voz e pela inconveniência, mas já tomou tantas invertidas dos cobras véias que deu uma murchada. O meu saco ele não encheu nem alisou. Ser praticamente ignorado por um playboy ignorante em um ambiente com dezenas de pessoas é uma bênção.

Everything´s ok.

Now I´m really pissed off. “The enemy works in the corner of my eye”, the song plays again and again in my head. But I have a advantage: he doesn´t know what I´m writing. He barely read portuguese. He´s looking at me, at my monitor, right now, but he can´t do no harm anymore. So I can practice my english while I pretend to translate commercial letters. Instead, I write big e’s to friends who lives in other countries, and that´s it.

O pior inimigo

O sono, a desmotivação, o cansaço, o colega, a indisposição, o cachorro do vizinho, o chefe, a comida gordurosa, a perda de tempo, a gostosa que não dá bola, a auto-estima, a visão do dia lindo lá fora, a falta de sentido nas tarefas, a música ruim no rádio, a TV, a manutenção do carro, a tela do computador desejosa de ser preenchida com merda, a conversa fiada, o lugar-comum, o babaca do qual não seu pode fugir? Eu?

Queria falar a verdade o tempo todo

Depois de muito envelhecimento precoce devido à inércia somada ao sedentarismo que mesmo a mais frenética atividade na frente do maldito computador provocaria, é só pensar friamente para começar a melhorar. Basta mentir. Preencher o controle de horas com informações falsas. Ninguém nota que não se está fazendo nada. Impressionante. Quando não dá para ficar conversando em qualquer um dos cinco comunicadores instantâneos instalados, por ter alguém olhando, é só escrever longos e-mails no meio dos relatórios mais enfadonhos. Pode-se retomar contato com quem não se conversa há anos e fica por isso mesmo.

Punição

Imagens de culpa que nunca fizeram parte do meu imaginário, mesmo tendo uma criação cristã, andam me perseguindo. O que fiz para ativar isso? Parecem hologramas, muito tênues, é fato, se materializam de repente e evaporam mais rapidamente ainda. Deve ser sugestão subliminar da gritaria evangélica próxima de casa.

Tuesday, April 17, 2007

Banana de dinamite

O pessoal do escritório vai viajar junto. Queria tanto ir à praia, mas ela está cheia de bosta e de gente que me odeia. As velhas de classe média alta estão assistindo TV agora de manhã, reclamando da vida e anotando receitas. Depois elas vão à academia, após tomar uma vitamina reforçada, e buzinarão no ouvido dos pobres funcionários que elas não têm tempo para nada.

Friday, April 13, 2007

Introdução

Não é nada que faça sentido. Ainda que qualquer um possa compreender. Dolorosamente. Portanto, sua lógica desvanece ao romper a barreira do Id. Resta um pensamento disforme. Descarga elétrica etérea, ainda cognoscível, porém massivamente escorraçada, soterrada e finalmente obliterada. Raros são os que fazem submergir tal incômodo. Há quem tente faturar com isso, e não se pode acusá-los de deturparem a idéia, porque não se trata de algo palpável o suficiente para ser tomado como um conceito bem definido. Corrói o mais insensível dos trogloditas todos os dias, contudo. Quem faz desenhos animados diverte-se tanto quanto as crianças que os assistem e ainda sente-se realizado? Um loop dos momentos felizes, drone incidental de tudo que queremos ouvir em moto perpétuo para preencher toda morte diária fora dos instantes que valem à pena, os quais deveriam ser acrescentados à programação seletiva do autismo consciente a que aspiramos.

Thursday, April 12, 2007

Massa de Manobra

Calor na cozinha e pouca compreensão. Basta. Repentinamente contorceu-se violentamente. Tacou a panela no chão. O molho espalhado pelas paredes, chão e em tudo quanto que é eletrodoméstico evocava uma cena de assassinato em massa.

Ela pôs veneno no tempero do macarrão, para dar cabo dos seus tormentos, ou seja, marido e filhos. Contrita, flagelou-se com queimaduras de primeiro e segundo graus. Não podendo explicar-se, parentes e vizinhos enxergaram possessão no ato; possessa, ela antes se convenceu disso. Serena, do hospital seguiu direto ao culto, dando a mão aos filhos e o dízimo para reconfortar-se.

Thursday, April 05, 2007

Saquei tudo

Filhos justificam tudo. É por causa deles que fulano deixou de fazer algo, que o sujeito esqueceu do seu sonho, que a garota justifica sua submissão, que o tiozinho acomodado critica quem quer mudar qualquer mínima condição que seja alegando que o jovemzinho não tem preocupações de fato. Por que pôr uma criança neste mundo cruel? Esta velha pergunta clichê é geralmente respondida por quem a faz (seja a questão, seja a criança), mas apenas nos recônditos da inconsciência. É para não tentar nada. Para justificar toda covardia e as agressões psicológicas a quem tentar sustentar um princípio ou arriscar ficar sem o prato de comida por contrariar o chefe, anunciante, assessor, cão de guarda moral, titular do departamento financeiro/comercial, pretenso superior ou qualquer tiranete contemporâneo. E quanto aos pirralhos, pelos quais se urdiram tantos sacrifícios, que aturem as cobranças (inclusive as em espécie) depois.

Wednesday, April 04, 2007

Típico

As idéias de presunção da felicidade que sugerem a mentira de improviso e os condicionamentos que forçam uma hospitalidade constrita digladiam-se odiosamente. Um hipotético meteorologista cerebral estaria encolhido no refúgio mais fétido para não encarar o colosso de tempestades elétricas que calcina a fronteira entre os hemisférios nestas ocasiões. Uma carona e um convite feito apenas por educação resultaram na súbita aparição. É como se houvesse convidado um vampiro para entrar em casa, e com ele assim instalado não poderia reclamar, pois dei anuência ao mal. Simpático, sorridente, cobra a cerveja que prometi. O paco de garrafas escorregadias desce sobre a pequena mesa no meio da sala milagrosamente sem nenhum pouso forçado. Justo quando a bonança havia começado. Quer dar argumento para uma mulher adora sustentar que o casamento está desgastado? Esqueça a data do dito cujo. E não interessa, nem fodendo, sua defesa de que está trabalhando demais justamente para dar base ao casamento. Quase ao fim do impossível processo de reversão deste tipo de acusação que qualquer homem consegue efetuar quase todo dia, o Ogro me aparece. Fico sem reação. A mulher, um minuto antes de recuperar o pleno bom humor, já quer escorraçá-lo com o olhar, mas esse tipo de sutileza não funciona com alguém plano. O pior: ele se senta, não sei o que dizer, ele não diz nada após elogiar a arrumação da casa. Convido para conhecer o quintal, como se isso fosse interessante, mas ele está totalmente a fim. Mostro o quarto das crianças, ele se detém ainda mais por lá, perguntando detalhes, contando que gostaria de ter filhos, como se estivesse interessado. Ao voltar para a sala, pergunta sobre o sistema democrático da Grécia Clássica, geopolítica, aviões e outros assuntos sobre os quais havíamos conversado no serviço. Demora para sumir com uns livros emprestados debaixo do braço, feliz. No desespero de tentar escapar daquela situação, cheguei a convidá-lo para passear conosco no parque. Ele declinou do convite, disse que logo ia embora, mas ainda ficou uma hora lá, fazendo perguntas. Tava até legal dar uma de professor, porém sentia cada punhalada que os olhos dela desferiam nas minhas costas. Depois da hostilidade inicial, ela foi bacana com o Ogro. Esperava que ela fosse comigo depois, mas sabia que era auto-engano. Bastou ela certificar que ele já ia longe para estressar ao máximo. Até explicar que sim, tinha convidado ele para aparecer, mas não, não naquele dia especial, todo o tempo de comemorações se foi. A noite ascendeu com uma aura de mal-estar.

Tuesday, April 03, 2007

Olvido

Esquecemos. A galáxia de pensamentos que não se concretizarão a respeito de assuntos mesquinhos que não merecem nenhuma reflexão ou tempo despendido exige isso. E as lembranças que realmente importam, parte delas se esvai sem reclamar o seu devido lugar. Basta uma hora de rotina para a extinção completa de uma inspiração genial, ou sobre a qual se tem a vaga intuição de que era algo brilhante. Se a idéia não é imediatamente registrada em um suporte qualquer, um pedaço de papel higiênico que seja, a sensação que fica do mote perdido deve assemelhar-se a de um amputado que sofre coceiras intoleráveis no membro inexistente. Restrinjo-me, no entanto, ao campo das idéias. Há paralelos piores. Como, por exemplo, após meses de desgaste profissional, esquecer do aniversário de casamento.

Reminiscência materializada

De repente ele aparece na porta de casa. Um pesadelo que remete a adolescência, quando odiava que “amigos” aparecessem lá só para encher o saco. Não tinha a manha de expulsá-los de casa, ninguém faria isso, eu não sabia fazer, depois eu soube como dar um jeito nisso, sempre soube, mas esqueci. Não consigo mais. Fudeu e o tempo livre acabou.

Conversa circunstancial

Apesar de ser tosco, o Ogro é outro fita que, com a passagem do tempo, torna-se mais palatável. Apesar dos gestos e troças estúpidas, ele parece legitimamente interessado em se aproximar das suas vítimas para que elas não fiquem tão intimidadas. Foda é o tamanho, a voz de death metal mesmo ao sussurrar e a cara de poucos amigos. É como se ele quisesse dizer “Podem revidar!”, mas quase ninguém fala nada, pois o vozeirão é o avesso dessa mensagem. Como nunca dei moral e já apelei no que me pareceu a primeira ínfima tentativa de forçar um poder psicológico do tipo “cheguei antes aqui e você que é novo baixa a bola”, ele nem brinca comigo. Ficou me tratando friamente perto dos outros, mas paradoxalmente como deve ter sacado que eu não dava a mínima pra qualquer tipo de c, passou a querer puxar conversa sobre assuntos sérios. Mesmo fazendo cara que não estava entendendo, sempre prestava atenção em tudo que falava e ficava fazendo perguntas, aparentemente fascinado com assuntos batidos para qualquer estudante de ensino médio, mas que eram novidades assombrosas para ele. Depois de um tempo, apesar de não ser umas prosas excelentes, porque na verdade eram questionários, a curiosidade dele foi se aguçando e as conversas com ele permitiam falar de assuntos filosóficos e religiosos sobre os quais provavelmente nunca falaria no trampo. E tinha um bom ouvinte para isso.

Friday, March 30, 2007

Circunstâncias

Com o tempo, notei que há quem resvale na canastrice para não ser, apesar disso, um mau caráter. O Caroço é assim. Não tem muita personalidade, mas tem. Com o tempo você percebe que não é um cara que você convidaria para dar um chego em casa, por não ter tanto assim o que conversar e também não ser a pessoa mais confiável do mundo, mas ao menos possui um mínimo de decência. É o tipo de pessoa que poderia ter sido um grande sujeito, se tivesse se feito em uma atmosfera menos devassa. Quando está todo mundo rindo da cara de alguém, ele até dá aquelas risadas de mofa, exageradas, mas é o primeiro, se não é o único, a estender a mão para quem se estatela no chão ou algo assim. Depois que ri de uma piada dele, a primeira de uma longa série de tiradas infames que não era uma estultice, parece que ele passou a ser mais legal. Depois, as piadas dele ficaram ainda piores, mas é aquele lance, qualquer um é menos intolerante se vai com a cara de alguém.

Monday, March 26, 2007

Juiz e executor

Relaxei um pouco. Não no sentido que almejava. O de realmente descansar. Apenas relaxei repentinamente no sentido de ser um pouco mais tolerante com a estupidez alheia, ou com o quê parece estúpido apenas para mim. O que talvez ajude a relaxar de fato. O fato mesmo é que sou muito influenciado por uma atmosfera de negativismo. Além de ver que algumas pessoas não são os monstros idiotas que pensava que eram, notei que tinha desdém até por quem é gente boa. Sem razão. Tratava como mero colega de trabalho quem me considerava amigo, apesar de sermos companheiros sob a chibata e de termos afinidades de fato. Boris e Ariel são 100%, pequenas rusgas e mau gosto musical à parte. Basta iniciar uma conversa de saída, algo que sugira um escape do horror cotidiano, que eles se animam e conversa fica boa como era na andar na rua, dentro de fliperamas nos quais somente via pó daquele normal, que nada no ar para assentar-se no sobre o vidro malcuidado das máquinas de pinball.

Friday, March 23, 2007

Rubro-negro

Ele sempre quis ser negão. Corava por qualquer coisa. Agradecia quando alguém não lhe dizia nada. Quando era criança, nunca sabia quando estava vermelho de vergonha, a menos que lhe dissessem. Talvez, justamente por ser pirralho, não se sentisse tão constrangido por qualquer coisa. São outros tempos agora. Ele sabe quando acontece, pois sente o rosto e as orelhas queimarem. Quando alguém abre a boca para aquele típico “Até ficou vermelho!” a brasão aumentava tanto que ele suava. Não há tortura psicológica pior para um branquelo. Temos certeza que muita gente aqui já percebeu.

Dor Ocupacional

Ele marca algo rapidamente na tela, antes que o vejam gazeteando. Tão logo saem na sala, na qual por impaciente coincidência entraram apenas para olhar um mapa que também está fixado na sala da chefia administrativa, desmarca o que tinha marcado, pressiona o Alt Tab e volta ler o site sobre L.E.R. no qual estava concentrado antes. Contorce-se para a direita, range a cadeira ao fazer um giro esquisito para a esquerda, massageia as costas com sofreguidão. De soslaio, por ter a mesa oblíqua a sua, posso ver tudo. Acho melhor, claro, não dizer nada para ninguém, e nem para ele.

Monday, March 19, 2007

OKTV

Olhe para o alto e jogue-se para baixo. A imobilidade vertiginosa do trabalho, seja qual for o sistema pelo qual fundamentalistas do intelecto fazem proselitismo, rebaixa enquanto te faz mirar ilusões idílicas, mantendo-o na média, medíocre, dando-lhe ilusão de movimento. Mera teorização de quem não faz nada, fracassado. Em casa, é o eletrodoméstico que você tanto diz odiar que te acalenta.

Uma mão lava a outra em vão

Gordo, suando torrencialmente e com um desodorante fortíssimo que só piorava tudo, ofendia a intimidade olfativa de todos, menos a dele mesmo, claro. Devia ser muito eficiente, pois há anos era assim, cochicha-se pelos corredores. Por acaso, descubro não era só eu que o apelidara mentalmente de Carcaça. Era como o chamavam pelas costas há algum tempo. E ele era pútrido em todos os sentidos, contamina tudo com seu Toque de Midas inverso. Minha sorte é que minha área é distinta o suficiente da dele para manter-me muito distante, pelo menos psicologicamente, portanto não tinha que passar o fim de semana com sua imagem nauseabunda ardendo em minha mente, assim como acontece com tantos colegas que reclamam sem parar.

Thursday, March 08, 2007

Passado

Lembrei-me em tempo. Era hoje. Não era possível fazer mais nada, no entanto. Estava no meio de um relatório. Não dava para ir em casa, reunir documentação, fotos e coragem. Podia sair no meio do serviço, claro, correndo, correndo, correndo, para não ter uma vida medíocre, viajar, conhecer muita gente e incomodar quem não presta, tal qual um Joe Strummer da vida que eu sempre quis. Fico calado, com medo do futuro e imóvel.

Wednesday, March 07, 2007

Coma

Pouco mais de um mês depois, levanto-me e me dou conta que não conversei com nenhum amigo a não ser por meios virtuais e não registrei nenhuma linha no diário. Não me lembro bem dos filmes que assisti e das conversas que tive. Não estive em nenhum lugar além dos habituais e o caminho entre eles. Nada aconteceu e todo o tempo foi preenchido por sonhos, que fazem sentido até certo ponto. Trabalhe por várias horas a mais e faça cursos que não interessam para tornar o currículo mais atraente para quem não interessa, pregam dissimuladamente os manuais corporativos impregnados até nos malditos nicks de tudo quanto que é tipo de comunicador instantâneo de gente lutadora, que faz nada de bom e acontece para os basbaques notarem. Ela me manda tomar café da manhã, para que eu não ficasse mais cinco minutos sem entender nada.

Sunday, February 04, 2007

Aranhas no texto

Várias pequenas aranhas saíram de dentro daqueles furos que todo monitor velho possui na parte de trás. Ele ficou muito tempo inutilizado, todos usavam monitores de cristal líquido há uns dois anos e meio. Repentinamente, pequeninos aracnídeos começaram a fazer uma espécie de pequena dança ritual mal coreografada em cima de números e palavras sem importância. Tive tempo de admirar a cena por um minuto. Nem isso. Pensando com calma, foram uns 15, 20 segundos. Depois, as meninas que passavam por trás de mim começaram a gritar. O supervisor matou todas as aranhas que pode e me pediu desculpas por aquela situação. Um novo monitor chegou para mim na mesma tarde. Sei que na cozinha ficaram falando mal de mim, por ser muito devagar e não ter reagido quando apareceram os bichos. Ora, estava admirando-as, foram os únicos seres legais que passaram pelo meu dia e muitas morreram à toa.

Tuesday, January 30, 2007

Interesses

É estranho. Não sei para quê isso. Falar tanto dos filhos, contar que o marido realiza, é um herói, botou o vizinho folgado contra a parede, não sabe administrar o dinheiro (mas é boa pessoa), peitou o cliente inadimplente, é rígido com as filhas porque quer o bem delas, vive se metendo em novos projetos, que pretende e arrebenta. Tudo isso para carcar o chifre nele em pleno horário de trabalho, nos cantos. Pior, se eu percebi sem ninguém nunca ter me contado nada, os amigos do Caroço devem saber de tudo.
Ela chora por tudo. Quando o Mullet chama a atenção, quando alguém faz algum comentário maldoso, quando a emoção das histórias que ela mesma conta sobe-lhe aos olhos. Manteiga, por isso. Ela não me pareceu tão frágil assim quando a flagrei na sala de manutenção com o Caroço. Entretidos que estavam, não me perceberam e pude dar meia-volta, incógnito.

As voltas que a vida dá


O chefão é muito engraçado. É daqueles caras que ainda querem dar a aparência de serem joviais e liberais. É daqueles que andam com aqueles rabos-de-cavalo minúsculos, com o cabelo sempre penteado para traz, com gel. Tenho que imaginá-lo sempre como era com o cabelo solto, não tem jeito. Tenho certeza que antes ele ostentava um mullet; no entanto , pelo jeito atual, o corte não é a mais assim.
Tiro e queda. Sabia. Enquanto ele procurava um documento durante uma conversa comigo, detive o olhar em uma foto sem moldura nem nada, jogada em meio a outros papéis. Ocupado e preocupado que estava olhando em outra gaveta, creio que ele nem reparou no que realmente me interessava. A mulher do lado dele é a esposa, bem mais novinha. A foto é dos anos 80, com certeza. O cara, além do mullet, tinha um bigodão. Achava esses caras muito bundões quando era pivete, era um jeitão de ser de gente que queria se integrar totalmente à sociedade, mas manter um visu "rebelde". Na verdade, esses sujeitos tinham um jeitão cafajeste, tipo como se fossem atores pornôs, mas ao mesmo tempo ostentavam esse disfarce de bom moço. Uma parada muito "vou ganhar dinheiro", classe média domesticada e cínica. É, agora um deles é meu patrão.

Monday, January 29, 2007

Pressa

"...queria dizer que me arrependo muito do que disse, mas acho que seria a única reação que poderia ter tido naquela hora. Vc é muito difícil. Admito que ñ sou uma pessoa fácil de lidar, mas nquela hora tudo que eu poderia fazer era aqulio mesmo. Naum sou uma máquina, vc me pressionou contra a parede e talvze eu até pudesse ser mais legal se fosse em outro dia, mas, naquela hra...".
Fui corrigir apressado os erros de digitação, encostei em algumas teclas que nem tenho idéia quais são, e apaguei todo o texto, que se fosse impresso daria umas cinco páginas. O campo de texto do e-mail não salva nada, não há um comando para voltar. Desisti definitivamente de me explicar e isso foi o fim.

Wednesday, January 24, 2007

Manhã

As nuvens desvanecem-se repentinamente e o sol nasce quadrado no monitor do computador, situado em frente a uma velha janela quadriculada, que ainda não foi trocada, um aspecto do prédio que insiste em sobreviver e que evidencia sua verdadeira função.
Quando era adolescente, odiava aquela tirinha Dilbert. Por puro acaso, procurando informações sobre computadores, topo com uma em que um ex-fotógrafo diz que havia provado o “doce néctar da liberdade”, mas agora confinado no escritório, começa a surtar. É estranho ver seu currículo resumido em poucos segundos, tempo suficiente para tornar-me um fã definitivo também. Agora eu entendo.

Tuesday, January 23, 2007

Cidadãos de bem

A chefia sempre gosta deste tipo de pessoa. Carcaça, Orca, Lesma e Escarro. Os caras são repugnantes e subservientes, mas só os percebo assim porque convivo com eles. Se não fosse o caso, esqueceria completamente deles, assim como me esqueci até dos nomes de outros cuzões com quem convivi. Todo ignorante faz questão de dizer em alto e bom som sua opinião sobre tudo. Estes caras entendem de tudo, é impressionante. Eles sabem exatamente o que fazer se estivessem no lugar dos engenheiros, médicos, jogadores de futebol e políticos sobre os quais falam o tempo todo, e também entendem de física nuclear, nutrição, jornalismo, política externa, tudo, tudo, eles são a encarnação do ideal iluminista. É tanta erudição que o resto da humanidade tomaria um choque se os conhecessem, então isto os paralisa e eles passam o tempo cumprindo rotinas burocráticas, pois eles têm que ter paciência para esperar o aperfeiçoamento mental de nós, meros pós-macacos, para então guiar a próxima evolução de espécie. Temo que eles morram esquecidos.
É muito alto astral, todos eles brincam o tempo todo, mal conhecem alguém e já começam a sacanear numa boa, é tudo de boa, porque temos que ter um bom clima de trabalho, sabe? E é um clima maravilhoso, todo mundo pode dizer o que pensa, e dizem mesmo. O lugar-comum compartilhado é a fonte de toda a felicidade. Brigar para quê? Melhor ficar com fama de quietão esquisito, porque é estranho demais ter a sensação que estou ensaiando um diálogo escrito para o capítulo da novela que vai ao ar hoje à noite. Todas as tréplicas estão decoradas: E se fosse com sua família?, A gente tem que dar graças a Deus por trabalhar e ter saúde, Eu fiz a faculdade da vida. Todos muito trabalhadores e decentes. Sei supostos detalhes da vida sexual de várias meninas que encontro na rua, e com as quais nunca troquei um simples oi.

Monday, January 22, 2007

Vivaz semelhança

Sentei no meu trono do banheiro do fundo, abri o jornal e me senti um rei. Consegui ficar esquecido um bom tempo, quando voltei ao meu posto aparentemente não tinham sequer notado minha ausência e nem notaram minha presença, de qualquer forma. Foi tempo suficiente para descobrir que o "CEO" não gosta do Lerdo dedurando o tempo todo os deslizes dos outros funcionários no horário de expediente. O chefão conta para seu advogado que sempre calculou na relação custo/benefício esse tempo desperdiçado pelos funcionários, o que ele não suporta é ter o próprio tempo perdido ao saber detalhes de bobagens que não lhe interessam. Ouvindo a conversa, fecho o jornal o mais lentamente possível, para não fazer nenhum barulho, e descubro que o Lerdo só permanece na empresa por ser sobrinho de um vereador. Eles acabam de tomar um cafezinho, bem mais rapidamente que os funcionários. Enquanto escuto a discussão sobre a churrasqueira do Clube Náutico desvanecer entre passos no corredor, vou me arrumando devagar para sair do banheiro, dando tempo suficiente para ninguém imaginar que eu estava no banheiro.
Prestes a abrir a porta, escuto o Torto e o Babuíno trotando aos risos. Estavam falando mal do chefinho, se referindo jocosamente ao modo cheio de dedos como ele tratava seu "adevogado" e fazendo conjeturas a respeito de quão fracassada seria a filha dele, de tão mimada que a garota era. Justo eles, que tanto adulam o cara, buscam ela na escola quando o CEO estava ocupado, repetem suas expressões e até copiam suas roupas. Dois completos filhos da puta, ao menos pensava que eles tinham escolhido o seu lado, mas eles só miravam seus respectivos umbigos. Posteriormente ouvi detonarem-se mutuamente entre os colegas, separados apenas por uma divisória, sussurrando. Por motivos que já esqueci, porque eram decididamente irrelevantes. Eles se estenderam tanto no papo furado sobre as finanças da empresa que fiquei com saudade da minha mesa.
O Lerdo, esse sim era puro. Dedicado. Transparente. Só ligava para casa usando o celular, nunca o telefone do trampo. Sempre escancarando sua intimidade. Todos se sentiam à vontade para falar com ele. Fui hábil o suficiente para simular uma abertura ao descobrir o sobrenome dele. Era Fagundes. A princípio só eu o chamava pelo sobrenome, do qual parecia gostar muito, e satisfazia-se com as respostas genéricas com que retrucava suas perguntas. Boris era o único ali que também gostava de quadrinhos. Nunca comentou nada, mas definitivamente percebeu o que se passava. Tratou de popularizar o uso do Fagundes. Não podia mais zoar o Boris que ele apelava e dizia que sempre esquecia de trazer as Piratas do Tietê para eu relaxar um pouco no serviço. Fico imaginando o que se passava pela cabeça do povo quando eles escutavam isso. Com certeza percebiam que era piada interna, mas deviam achar que era referência a travecos, putas ou a algo com conteúdo sexual constrangedor. Um dia o Ogro criou coragem e perguntou o que diabos eram as Piratas do Tietê que um dia deveriam aparecer. Surpreendido comigo mesmo, respondi que era o modo como nos referíamos aos canhões de Sampa que tentavam nos atacar quando moramos em uma república lá, eu e Boris. Se era canhão, então associávamos a mina a pirata, e se era de São Paulo, tinha saído do esgoto do Tietê. Nunca tinha visto a fuça de Boris em Sampa. Disse tudo com tanta naturalidade que a história foi absorvida sem questionamentos. Boris, fascinado, disse que deveria tentar escrever. Até parece.

Sunday, January 21, 2007

My War

Usar uma camiseta do Minor Threat não significa mais nada. Antigamente, e quando digo antigamente nem quero dizer tanto tempo assim, avistar alguém com uma camiseta de banda com a qual você se identificasse já atraía a atenção e normalmente se entabulava uma conversa. Dois dos meus melhores amigos conheci deste modo. Não os vejo pessoalmente há uns bons anos. Pelo menos desde o fim dos anos noventa. Antes éramos muito poucos. Hoje, quem sabe o que é, não dá a mínima. Quem não sabe, deve achar que são estampas de grifes que fazem roupas caras para promovê-las em novelas. Ainda bem que nunca tive o desprazer de ver uma global vestindo um agasalho do Bad Brains, ou algo do gênero.
Rendido à tecnologia que disseminou toda essa informação e indiferença, escondo-me em um posto da PM escutando Polícia – das Mercenárias, que fique bem claro – no MP3 Player. A chuva de verão me encharcou a poucos metros do ponto de ônibus. Reconheço um dos PMs que está lá, amigo de infância. Cumprimento sem graça, nem me lembro o nome dele. Na verdade, éramos apenas colegas na escola. Uma menininha entra de repente, já bem mais molhada. É a filha de Luque. Ela sorri imediatamente para mim. Após alguns segundos em que ambos olham para as colunas de águas trazidas pelo vento para fustigar em intervalos regulares as lonas de barraquinhas e lojas, molhando quem se amontoa embaixo delas, ela se vira e fixa a atenção no meu peito. Aponta para ele e diz algo, mas não escuto porque estou com o fone. Surpreendentemente, quando libero os ouvidos, ouço-a chamar pelo nome e perguntar se eu gosto mesmo de Seven Seconds. Tinha me esquecido que a vó costurou este patch para mim no bolso da camisa. Todo mundo achava que era a marca da roupa. Descubro que o nome dela é Rê. Só isso, pelo menos é o que ela diz. Não sei se é invenção dela ou maluquice do Luque, que não a apresentou apropriadamente para mim, no entanto sei que ele era fã do Angeli. Bem, de qualquer forma, ela é bem legal, fala-me sobre novas bandas das quais nunca ouvi falar e pergunta-me sobre shows em que fui, discos que ainda tenho e sobre como era o pai dela. De relance percebo que os policiais, que estavam afastados, olham disfarçadamente para nós e dão risadinhas; pelo jeito estão fazendo comentários sacanas. Por isso que meu colega de infância não é amigo; é um deles, e eles são o que são.

Saturday, January 20, 2007

Contradição salutar

A natureza humana estraga quase toda tentativa de superá-la. É raro notar que não somos muito diferentes de quem odiamos ou apenas desprezamos. Vimos, eu e Ariel, um taxista escorregar na calçada cheia de limo. Tentamos ajudar o figura, que, de óculos escuros, levantou-se apressado tentando manter uma expressão imperturbável. Como se fosse possível que um lapso temporal houvesse bloqueado a visão daquele tombaço. Apesar de tentarmos nos ignorar, uma mera gargalhada inconveniente bastou para selar as pazes na entrada da firma. Ficamos nos justificando, criando chicanas para explicar que não fazemos o que condenamos em boçais. Conter a espontaneidade é papo furado de história de espionagem, foi mais ou menos essa a linha de argumentação. Foi tão espontânea essa desculpa que até hoje acredito que ela é convincente.

Friday, January 19, 2007

220 horas por mês

Morte em vida. Não é o tempo todo. Há uma tendência a exagerar isso. Há um ou outro momento bom. Quando chega o fim do dia, esses momentos, no entanto, não compensam o que ficou apodrecendo nas gavetas e armários que começam a ficar malcheirosos, nas caixas de mudanças que permanecem há anos fechadas na casa nova, à espera do tempo desperdiçado em frente à TV para não remoer todas as perdas materiais, morais, sentimentais e financeiras. Vontades e sonhos para um futuro senão melhor, pelo menos diferente, para contar com um mínimo de estímulo, são desperdiçados na busca do arquetípico dinheiro que não nasce em árvore e que mesmo assim não deixa de ser uma perda monetária, pois não fossem escolhas desastradas do passado, tenho certeza que ganharia mais. Pensar em tudo isso é inútil, todo mundo deve pensar nisso todo dia, mesmo que não seja algo tão elaborado em suas mentes. E principalmente não tem valia nenhuma porque quanto mais ganharia menos tempo teria para mim mesmo, embora me torture constantemente pensando em mais dinheiro e em mais tempo. Acabei em contradição, pois passei a vida dizendo para meus pais que grana não é importante e o principal era não aceitar fazer qualquer trampo sacana para ter um bom salário. Por isso dispensei trabalhos horríveis e caí em um trampo também horrível, com o qual me identifico menos ainda que os outros, mas pelo menos sou obrigado a sacanear menos gente. Morte em vida de qualquer forma, tudo isso é obviedade, ninguém agüenta mais me ouvir repetir isso.
Ninguém em casa e entre meus amigos. No trampo não abro o bico sobre esses assuntos, exceto uma ou outra menção para colegas em que tenho confiança. Curioso que quando criança, pelo menos pré-adolescente, é difícil lembrar, mas pelo menos desde quando tinha uma compreensão melhor de como seria a vida adulta, ficava me perguntando se teria um emprego que me desse seguro de vida, plano de saúde e um ambiente que pareceria daquelas firmas que via em revistas, com balcões e chão reluzentes que levavam a ambientes com cores harmônicas, mesas arrumadas e equipamentos de última geração. Tenho tudo isso. Devia me sentir um fodão. Tudo é imaculadamente limpo e mortiço. Todo mundo é engraçado, mas todos os risos são forçados. Nada a se conversar, a não ser sobre futebol, TV, que o governo é uma merda, que precisamos de mais incentivos fiscais e que a polícia devia mandar todos esses marginais para o paredão. E tem as piadas e as brincadeiras, a maioria se chama por diminutivos carinhosos pela frente e pelos apelidos de fato pelas costas. Portanto, nada digo para não arrumar mais confusão além das que travei quando entrei aqui, chamo todos pelos nomes e todos eles têm outros nomes na minha cabeça. Eles me devem chamar de outras coisas pelas costas mesmo. Carcaça, Orca, Ogro, Lesma e Escarro. Há Babuíno, Lerdo e Torto, uma panelinha de puxa-sacos. O Caroço não é tão ambicioso, ele só se ocupa em comer a Manteiga, que é casada. O Mullet é o chefe. Ariel e Boris são os únicos amigos, mais para colegas, na verdade. Toda vez que saio com eles ou me vejo naquelas malditas situações de encontro sociais com o pessoal da empresa só escuto conversas sobre o serviço e a vida de quem trabalha lá. E eles só têm uns aos outros em seus círculos sociais, pelo jeito, ou seja, não têm amigos. Prefiro ter meus amigos de sempre, ainda que raramente os veja. A faxineira é o único ser que me parece um humano, mas nunca lembro o nome dela. Ela nunca diz nada, não finge que está viva. Gente boa.

Thursday, January 18, 2007

Teorizando em cima de tretas

Se tem algo que odeio tanto quanto neguinho metido a politicamente correto é o tipo que defende o politicamente incorreto. Todos burros. O primeiro renega uma das mais preciosas qualidades inerentes do ser humano, que é o dom de ser contraditório. Veja bem, contraditório, e não hipócrita. Viver paradoxos pode ser uma experiência fascinante, desde que a situação não redunde em angústia. Embora exista angústia fascinante; aquela que tanto atrai biógrafos, roteiristas de cinema e bilheterias. O segundo é metido a espertinho e para justificar a falta de escrúpulos e seus preconceitos dá uma de rebelde - enquanto na verdade querem que tudo seja a mesma merda que sempre foi - promovendo um tipo de maniqueísmo tão cretino quanto o formulado pelos dogmatistas do politicamente correto. Se o primeiro tenta algo, o arremedo de raciocínio do segundo é "faço o contrário". Estes falsos antagonismos cujos apóstolos que gostam de enfiar-nos goela abaixo, como se tivéssemos algo com isso, como se não existissem alternativas aos manuais de etiqueta disfarçados de idéias, o que inclui direita e esquerda, ateísmo e credo, enfim, todos estas cláusulas pétreas religiosas.
Pessoas que são estes estereótipos ambulantes existem, é fato. Esses são os que acham que pensam, enquanto bombardeiam constantemente o livre pensar. No dia-a-dia mesquinho e banal, é diferente. Não tem preconceito culpado ou preconceito disfarçado de irreverência subversiva. O que existe é preconceito desbragado mesmo. Ou o disfarçado, mas nunca culpado, apenas cauteloso quanto às conseqüências da discriminação . Tanta chuva, preso no semáforo, máquina estúpida, não percebe que os carros e ônibus não podem se mexer esteja verde, vermelho, amarelo, apagado, e fico remoendo essas idéias por um simples "viado" que disse com a mesma inocência de sempre, embora não tenha justificativa para isso, apenas explicação. O que devia bastar. Quando era criança, não fazia idéia do que fosse homossexualismo (Freud diria que sim, mas ele está morto e não me importo). Quando ouvi alguém xingar alguém de viado, achei que era a mesma coisa que babaca, idiota, folgado. Na verdade, para mim está bem claro que o sentido é esse, mas isso é idiossincrasia. Só sei que hoje perdi um amigo por causa de um xingamento dito em tom de brincadeira. O engraçado é que se sempre fui amigo, então não vejo problema nenhum em ele ser viado - no sentido real da palavra, não no sentido pejorativo. Pois é, sei que é uma contradição empregar estes sentidos, mas não vou pedir desculpas.

Wednesday, January 17, 2007

Cinza

Segunda-feira fria como se fosse inverno, em pleno verão. O congelador da geladeira de São Pedro está vazando para gelar nossos rabos nas ruas. Deus deve estar querendo que realmente sejamos gratos por nossos trabalhos, tal qual pedem as correntes que irrompem aos borbotões as nossas caixas de e-mail, pois pelo menos estamos enfurnados em um escritório quente, longe da rua. Enquanto tenho esses pensamentos cretinos, que fariam meus avós sentirem-se tristes por eu ser tão desrespeitoso com que eles tanto valorizam, resolvo me rebelar e descer para tomar um café na padaria que fica uma boa chuva de molhar bobo adiante. E assim vou fingindo que me rebelo contra algo.
Rua abaixo, topo com a filha do Luck Luque, que me diz um simpático "oi!", para minha total surpresa. Quando retribuo o cumprimento, ela já passou por mim. Ela deve ter escutado, mas definitivamente devo parecer gagá. Pena que certamente não o sou de fato, pois senão estaria agora em casa recebendo papinha de colherzinha na boca. É, acho que estou merecendo levar um chute, só fico pensando essas merdas. Pelo menos está tocando Cretin Family na minha cabeça. Oi! Oi! Oi!
A dona da padaria insiste que eu não preciso pagar o café. Tudo bem para ela, eles iam acabar me voltando troco a mais, lesados do jeito que são. Este logro de que temos alguns privilégios é tão pequeno quanto eficiente para nos fazer acreditar que ganhamos o dia, ou que somos de alguma forma especiais, mas não caio nessa.

Tal qual nossos pais

Foi em 1989. Estava andando com um disco do GBH debaixo do braço e o mecânico que morava na rua de baixo me chamou e pediu para ver o disco. Um urso tatuado e mal-humorado, ele nunca tinha olhado na minha cara, mas de repente ficou mais bonzinho. Na oficina dele, na qual baixava de skate com meus primos e o pessoal da rua, ouvi pela primeira vez Exploited, Dead Kennedys, Circle Jerks, Cólera, Inocentes, Discharge. Um ano depois ele estava viciado em um disco que ele achava demais, mas no qual nunca vi nenhuma graça, do Gang Green. Era muito chato, com exceção de uma música. Naquele ano, todo mundo passou a ouvir thrash metal. Eu achava legal, mas todo mundo começou a fazer aula para ser músico e passaram a renegar as raízes. Só eu e aquele tiozão, que tinha sido punk de moicano no começo dos anos 80, continuamos nos ligando em punk rock. O cara se chamava Luck Luque, algo assim. Nunca soube o nome dele, na real, engraçado isso. Lembro que em 1993, na última vez que o vi, mostrei para ele os CDs do Seaweed e do Sunny Day Real Estate que minha prima trouxe para mim dos Estados Unidos. Lembro-me que disse para ela "Compra qualquer coisa que tenha um selinho escrito Sub Pop". O Luck Luque odiou aqueles negócios que eu estava achando que eram tesouros secretos. Sacanagem, tava crente que estava compartilhando um puta achado com o "pai" de tantos sons bons. Fora a encheção por ouvir "essas merdas aí", foi uma cervejada legal. Depois cada um foi para seu canto, o cara mudou e perdi contato. Doze anos depois reencontrei o Luck Luque por acaso no shopping. Com uma filha "emo", viciada nessas merdas aí das quais nem lembro o nome. Por incrível que pareça, ele se lembrou do dia que mostrei os CDzinhos para ele. Como a mina - esqueci o nome - que ia casar com ele tava por perto na oficina, já grávida (mas eu não sabia disso), ele me culpou pelo gosto musical da garotinha. Logo começamos a discutir como sempre fizemos, eu argumentava que nem sabia o que era emocore na época, mas que as bandas eram boas. Era outra coisa, mas ninguém mais ouve aquilo. Ele ainda repetia o discurso de tantos anos atrás: "vocal de florzinha, guitarrinha enfeitada", sei lá o quê. A menina ficou tão constrangida quanto eu ficava quando meu pai ficava falando sem parar da buceta cabeluda da Cláudia Raia perto dos meus amigos quando eu nem tinha doze anos. E era a Cláudia Ohana que tinha um tapetão.

Monday, January 15, 2007

Bom dia

Recebi dez reais de troco por uma nota de cinco reais para pagar apenas dois cafezinhos. Sempre alertei as meninas que trabalham no caixa - sempre acontece com mulheres, "Talvez seja o pendor que elas têm para gastar", pensa meu lado machista e escroto - que elas estavam me dando troco a mais desde que, ainda adolescente, descobri que a diferença no caixa era descontado do salário delas. Antes, é claro, embolsava o lucro e achava que a loja tinha mais que se fuder mesmo. Pela primeira vez, após mais de dez anos, quase não me manifestei e mantive comigo a nota de dez por alguns segundos. Ameacei sair mas algo me segurou. Foi a moça que estava na frente, abrindo o guarda-chuva. Resolvi voltar e com um sorriso amarelo expliquei que "estava achando" que tinha recebido para tomar café. "Fui bem pago para tomar cafezinho, igual funcionário público", arrisquei um gracejo. Recebi de volta o troco correto, um muxoxo e a cara de bosta da mocinha.

Domingo desperdiçado

Todos os carros estão de volta ao lugar. Os gatos espreguiçam-se e afiam as unhas para dilacerar alguns passarinhos que nos acordam, lembrando-nos que domingo, seis e meia da manhã, é a melhor hora para ficar estar sozinho nas ruas do bairro. Nessas horas só se cruza com papas-hóstia e almas penadas chegando de baladas. Desde que o sol tenha saído, tudo parece bom por uma meia hora, às vezes nem isso. Depois, tudo o que peço é algumas poucas horas para ficar jogado no sofá, lendo o jornal. Futuro do pretérito. Se Asimov dizia que seria assim há cinqüenta anos, a história se repete como farsa sem nunca ter conhecido uma nesga de autenticidade. Então tá, também estou querendo fazer algo, fazer, fazer. Ler jornal é se ocupar demais com quem não tem nada conosco. Dormir de dia é morte em vida. Só queria ter a sensação que estou vivo, olhando para as partículas de poeira que dançam na luz, tudo muito bom por muito tempo. Não deu, tem isso para fazer, aquilo, chega meia-noite e ainda está tudo atrasado, sem sono e amanhã pegamos no batente cedinho.

Saturday, January 13, 2007

Ourobouros

Aconteceu o que jurei que jamais permitiria acontecer. Quase todo sábado à noite passo dentro de casa. Sempre fiquei abismado com o que se passava com meus pais, eles sempre permaneciam em casa vendo TV e nunca havia nada de bom passando. Não pareciam felizes, ao mesmo tempo em que aparentemente estava tudo muito bem assim. Faz sentido. Em um casamento convencional, sábados à noite fora de casa são jantares em restaurantes caros, nos quais se paga para ficar um olhando para a cara do outro sem saber o que dizer. Ficar sentado no sofá fitando estranhos que não devolvem olhares é menos constrangedor e mais barato. Ou então o que se tem são compromissos sociais, jogos de ilusões tão desagradáveis quanto compromissos profissionais. Descompromisso é imaturidade. Sair para um show de punk rock tal como antigamente porém cheio de garotas de doze anos vestidas como a Siouxie Sioux com camiseta do Good Charlotte junto as suas mães "alternativas" temporãs fazendo-se de muito loucas, para o teatro com comédias vagabundas e nenhuma saudosa montagenzinha vagabunda do Shakespeare, para o barzinho em que há o barulho e o desrespeito pela assepsia que tanto faz falta nos restaurantes de bacanas, porra, tudo isso é dar de cara com um monte de gente que não te conhece e que te encara como uma relíquia que insiste em não ser posta em um ambiente com controle de temperatura e umidade. Claro, os amigos estão por aí, mas, como não ligo para eles em outras ocasiões, me sinto mal por só lembrar de contatá-los quando estou com vontade de sair, o que aprofunda e arreganha o fosso temporal e físico ao qual nos condenamos. Minha sorte é quando o filhão não dorme cedo e posso passar a noite brincando com ele. Mas quase sempre ele passa o dia correndo, andando de bicicleta e se divertindo pra caralho, portanto só me resta sentir a mesma sensação que tinha quando tinha cinco anos e só pegava a TV Tupi, a Globo e a Record em casa. Depois que acabava o Terra de Gigantes no começo da noite de sábado, não tinha nada para fazer além de brigar para ver um programa menos chato na TV. Só que antes era com minha mãe. Dá na mesma, mãe e esposa odeiam nossos amigos, por mais legais e bem-intencionados que eles sejam.

Friday, January 12, 2007

Contra-senso

Todos os carros daquele lugar estavam com os faróis arrebentados. Permaneciam estacionados lá o dia todo, mas sempre saiam à noite. Nunca via ninguém tirando-os de lá, mas o local permanecia vazio a noite toda. Todo sábado é isto. Era uma nota tão fora do tom em dias harmoniosos passados juntos à família que devia ter tentando entender aquele despropósito, mas antes que pudesse realmente pensar sobre o assunto me perderia madrugada adentro carregado por algo em que mal havia reparado em meio às minhas escapadas para o escritório de Patrícia, enquanto aproveitávamos dos horários dos cultos de nossos cônjuges e filhos para irmos aos céus. Quando estamos obcecados para "reviver" um passado idealizado deixamos até mesmo de especular sobre estas pequenas disgressões do dia-a-dia.

Thursday, January 11, 2007

Racional

Só olhei porque o repentino barulho do saquinho plástico atraiu meu olhar distraído. Justo quando passei pela esquina tinha um gordinho cheirando cola no beco sem saída. Burro, eram oito da noite, horário de verão, ainda estava claro. Sempre achei sossegado andar a pé à noite por aquelas quebradas antes de chegar no conjunto de predinhos onde mora minha mãe. Sempre topo com os manos, passo batido no meio deles, ninguém me enche o saco por eu ser branco, classe média com roupa social. O mais sensato a se fazer, portanto, é andar a pé para fazer exercício e economizar uns trocados da gasolina. Mas justo o gordo de merda se apavorou quando dei de cara com ele. Os moleques que estavam do outro lado da rua começaram a rir e ele ameaçou dar porrada neles. Deve ser o cara que escrotiza a turma. Pela cara, a montanha de banha não tinha mais do que 14 anos. Muito, muito novinho mesmo. Mesmo assim era insalubremente maior do que eu, e depois de ficar baqueado por uns cinco segundos, saiu correndo atrás de mim murmurando meias palavras desconexas. Que imbecil, mesmo sendo um bosta gigante o cara deveria era correr atrás das menininhas, metaforicamente falando é claro, como fazem os moleques mais espertos. Mas claro, puta que o pariu, são os garotos mais velhos que pegam as meninas da idade dele; se para um garoto normal de 14 anos já não rola muita coisa, imagina para um hipopótamo proto-junkie. Caralho, fiquei de cara, minhas pernas bambearam, mas me virei e como não ia correr de uma criança, ainda que fosse uma das mais perigosas, o encarei e ele parou, com uma expressão alucinada. Tinha uma caçamba do lado por sorte e eu já ia pegar uma pedra para inevitavelmente acertá-lo. Como que se pressentisse, ele abriu a porta de uma Hilux - o veículo perfeito dos abonados que não respeitam pedestres e nem ninguém que eles julguem que sejam pobres e portanto dispensáveis - que estava estacionada ao lado e entrou, ficando sentadinho que nem o covarde filho da puta e de papai que ele é. Virei e fui embora sem precaver-me, nem olhei para trás. Dois quarteirões depois deparo com dois casacões do Facção Central tomando uma batida de solícitos homens de bege, que calmamente respondem-me que os elementos apresentavam atitude suspeita.

Wednesday, January 10, 2007

A vida é boa

Devem ser as roupas. Não é possível que apenas mais hormônios na comida resulte nisso. Não acredito que não repararia nos peitos das meninas da minha idade na época do colegial. É, não sou da época do ensino médio. Sinto-me tão obsoleto quanto quem me dizia que havia cursado o ginásio sei lá onde há trocentos anos atrás. Porém, as meninas pareciam mais crianças mesmo, creio que não estou edulcorando o passado. Pelo menos as roupas eram de meninas, mesmo que elas fossem “mocinhas”. No entanto, em tudo quanto que é lugar, borbulham garotas com rosto de criança e seus decotes enormes desvelando seios que insinuam que serão melões, como eu e meus colegas dizíamos, mas isso já deve ser gíria de tiozinho. Não consigo deixar de reparar e achar legal e ficar um pouco chocado, tanto com elas mesmas quanto comigo. Sinto-me estranho, meio pedófilo, mesmo que quase todas tenham papo de adultas. Ninguém mais é ingênuo, mas elas têm modos inevitavelmente inocentes, de quem não sabe em qual esparrela está enfiando as asinhas, embora muitas vezes tenham ciência intuitiva disto. Meninas de 15 anos grávidas quase não escandalizam mais ninguém. Lolitas o caralho, este papo é passado mofando estantes ensebadas, o padrão atual é esse e quem ficar moralmente derrubado com isso nunca mais se levantará. Mas odeio ser meio cafajeste, embora esta seja minha natureza; olho mas não chego perto e então tudo bem. Quando vejo uns moleques de 18 a 16 anos observando com desejo e abordando garotas que, em média, são uns quatro anos mais novas do que eles, aí sim sinto que estou diante de um predador que envolve – com um misto de empolgação e frieza – uma vítima que demorará a se reconhecer nessa condição. Talvez porque elas achem que estão curtindo enquanto podem. Ou seja, devem ser mais espertas do que eu e nem perdem seu tempo pensando no assunto, preferindo vivê-lo. Em geral, sempre é tranqüila minha consciência a respeito do meu olhar perscrutador da feminilidade indecisa quanto a ser impúbere, com exceção de quando sou flagrado fazendo isso.

Tuesday, January 09, 2007

Estranhamento

Distraído, na verdade preocupado com a chuva que vejo cavalgando morros a toda brida uns dois quilômetros adiante, quase não a vejo passar reto. Com certeza, ela não estava interessada em mim. Júnior. Claro, não a chamava assim às claras. É que ela tem o mesmo nome da mãe, que engravidou quando tínhamos quinze anos. A minha maior decepção adolescente; fiquei tão enojado por ela não ter correspondido minha ilusão não-verbalizada de termos nossa primeira vez juntos que esperei uma década e meia para finalmente tê-la em meus braços e logo perdê-la novamente, poucas semanas depois. Nunca contou para mim nem para ninguém quem era o pai da menina. Dizia que apenas os pais dela saberiam quem era, além de, talvez, os avós paternos. Nunca entendi o porquê. Como também tinha quinze anos à época, perguntei se a menina se chamaria Patrícia Júnior. Ela se conteve e riu o mais discretamente que pôde, para não me humilhar, esperando os colegas de sala que comiam lanche ao lado saírem de perto para então me explicar que o sobrenome Júnior só servia para homens. Ter contato com Júnior treze anos depois e contar que fui o primeiro a saber a respeito da existência dela, além dos pais, provocou um efeito estranho na menina. Nestes dois anos, desde o episódio, ela evitava-me deliberadamente. Não teria nada demais, mas ser rejeitado por mãe e filha adolescente com intervalo de poucos dias doeu. Afetar intimidade com quem não conhecemos ao supor que exista uma ligação sentimental – como muitas vezes fizeram conosco parentes distantes e, pior ainda, os compadres e comadres de nossos pais – é uma cagada que só não provoca aversão em invertebrados.

Monday, January 08, 2007

Febre

Apressar a morte não tem sentido. A gente vai se fuder de acordo mais cedo ou mais tarde mesmo. Não deixei de ser obcecado pela idéia. Tomando café forte sozinho com a faxineira da firma, ainda bem, em um canto da cozinha, pois ela nunca fala nada, tenho o estalo, insight, inspiração, qualquer um destes sinônimos aí. Podia lançar um best-seller de auto-ajuda com isso, se soubesse escrever tão mal quanto eu gostaria. Ah, como deve ser bom ser picareta! Minha idéia é a seguinte: fazer que a idéia da morte seja positiva para quem está com depressão. Todo dia, desde aquele momento, eu penso, “vou morrer hoje à noite, vou morrer hoje à noite, vou morrer hoje à noite”. Às vezes penso nisso com tanto ardor que meu peito dói. No geral, entretanto, é funcional. Tenho que correr para fazer o que me interessa, o tempo todo. Tenho só até às dez da noite, incluindo o horário do serviço e o da aporrinhação fora do trabalho. Tenho que resolver o máximo dos MEUS problemas, tanto quanto o possível, antes de me deitar. Quando deito, morro. No dia seguinte, geralmente, sou outro homem. Pior, mais velho, mais cansado. Porém, com mais pressa.

Zelo

A idéia tornou-se recorrente. Tudo o que vem acontecendo vem deixando-me mais desgostoso. Nada permanece. A maioria dos meus livros, que guardei com tanto zelo durante todos estes anos, foram roídos por traças, carunchos, sei lá. Trabalhei demais, tornei-me um workaholic ao longo do ano passado. Nem me senti pressionado a fazer isso por patrões ou colegas, mas sentia-me tão angustiado ao chegar no horário certo em casa, com tantos projetos em mente e tão pouco tempo para viabilizá-los, que passei a dar uma de rapaz responsável. Não conseguia escolher um dos meus sonhos para concretizá-los, deixava tudo pela metade. Por acaso, encontro-a na rua. Irritado com o abandono e com tudo o mais, disse o que sempre dizia nas antigas. Que estava com vontade de morrer. “Não fala isso, você é tão novo, tanta gente queria ter sua saúde”, blábláblá. Conhecia a velha ladainha. Desta vez falei com sinceridade. Antes dizia isso para que ela me acalentasse depois do esbregue. Mas todos temos uma imagem a gelar agora. Sim, gelar. Seremos apenas isso, até o fim, porque nossas escolhas foram encerradas, agora temos que vivê-las e não há volta. Ao menos, ela me aquece com um café, mas, enquanto conta-me as travessuras da filha e as nóias do corno que a sustenta, não consigo deixar de pensar de que preferia quando ela se esgueirava debaixo das minhas cobertas para sumir assim que eu adormecia.

Travo amargo

Fiquei na casa dela cuidando da menina. Ela é pequena demais para lidar com uma dureza destas. Não entenderia nada, se chatearia. Foram compreensivos no serviço. Ou ao menos o fingiram ser. A mãe não pensa que seja boa idéia confrontá-la com uma idéia ainda impossível de explicar. Estava achando bom demais ficar longe da papelada naquela manhã. Jogo bola tão desajeitado quanto uma criança, vejo desenho animado na TV. Tão bom. Ela topa ver desenhos que são da minha época, para minha felicidade e para a dela, que está vendo algo diferente. Repentinamente, ela se vira para mim. “Esses bichinhos voltam quando acertam eles de jeito, mas a gente não volta quando é assim, né?”. Disse que às vezes sim, não é justo que ela seja tão desesperançada quanto os adultos, mesmo que as crianças estejam amadurecendo tão rápido. “They I´ll learn much more, than I never know...” cantorolo para ela, imitando a voz de Louis Armstrong. Não tenho certeza se a letra está certa, mas ela ri muito.

Misantropia

Recebo a notícia no meio da tarde, pelo telefone. O pai da minha cunhada havia falecido. Devia estar consternado, ao menos aparentemente, para oferecer um mínimo de solidariedade. Tudo que sinto é fastio. Talvez minha cara emburrada ajude-me nestas ocasiões nas quais todos têm aquele olhar perdido. Creio que isolo tanto minha mente, pensando no que tenho que fazer e jamais farei enquanto deixo-me vencer pelo imobilismo ritual dos velórios, que irradio a impressão de perda. Interiormente, apenas lamento a perda do meu tempo. Sair do meu canto nestas ocasiões significa dar margens para conversas paliativas que não fazem jus àquele que partiu. Ninguém conversa comigo. Ótimo. Quando deixo o local, pensando que já havia passado do horário do expediente e que estava perdendo minhas parcas horas de lazer, sinto-me mesquinho. Estraguei a minha noite, e mesmo assim culpo o defunto. No dia seguinte, acordo tão pequeno que não tenho coragem de ir ao enterro.

Thursday, January 04, 2007

Cessar

Naquela manhã, tomei uma decisão. Semanas depois, notei que esqueci de implementá-la. Foi apenas um impulso. Mesmo que me sentisse determinado, fui desarmado pelo Bom dia! habitual, dado por alguém que detesto. Síndrome de Estocolmo e Pavlov. Para onde vou, vejo-me assoberbado de tarefas inúteis, conversas fúteis e pensamentos obtusos. Gosto de pensar que é culpa do meio em que convivo, mas nunca me esforcei o suficiente para mudar a situação. A decisão era para dar um cabo nisso. Não tive coragem. Para onde quer que fosse, seria sempre o mesmo vazio entre a volatilidade alheia.

Wednesday, January 03, 2007

Será que dá tempo?

Será que dá tempo?

Nada do que ela disse me impressionou mais do que confessar que já teve um relacionamento com outra mulher. Ela sempre foi muito conservadora. E me diz algo assim, com a maior naturalidade. Tão arrogante, tão provinciana, tão preocupada em aparecer nas colunas sociais da sua cidadezinha. Adorava figurar ao lado das velhas carolas, “damas de caridade” ciosas de seu marketing pessoal. Ela expulsou a filha de casa porque a menina tinha assumido o namoro com uma menininha ainda mais nova. Tentei tomar as mãos dela entre as minhas para alentá-la, mas ela já havia levantado para atender a ligação do marido. O celular tinha um toque específico que identificava o aparelho dele. Guiada pela coleira eletrônica, desabou escada abaixo. Imediatamente vestiu sua máscara, para nunca mais tirá-la.