The snake in the grass
A snake charmer fell in love with her. Now he’s trapped in a box.
Você se lembrará de algo que está aqui? Atualizado toda segunda-feira com minicontos ou crônicas (no começo era aos domingos).
The snake in the grass
A snake charmer fell in love with her. Now he’s trapped in a box.
Um dia, percebeu que um plano simples bastava: não precisava brigar para ser o macho alfa ou se contentar em ser subalterno. Fez concurso para oficial de justiça sem contar para ninguém e ficou contente por ter conseguido uma colocação ruim. Justamente por isso, devia ser chamado para trabalhar em uma cidade distante, em alguma comarca para onde ninguém queria ir. Teve sangue frio, agüentou as provocações dos irmãos e dos pais sem anunciar para ninguém que havia garantido uma vaga e esperou o momento de ser chamado enquanto trabalhava no supermercado, em meio à remarcação de mercadorias vencidas, clamores para que fosse menos lerdo e clientes mal-educados. Chamado ao fórum, confirmou seu interesse na vaga e quietamente embalou seus poucos pertences, sacou dinheiro da poupança para passar o primeiro mês e esperou a noite da véspera chegar para comunicar a mudança a todos. Antes, ao fim da tarde, seus pais notaram que seus livros, apostilas, roupas e carrinhos de brinquedo tinham sumido. Quando chegou, foi chamado de mal-agradecido e teve sua mala jogada no regato ao lado. Sorte que foi amparada pelo bambuzal. Ambos, mala e mala, foram diretamente para rodoviária. Anos depois, em meio a muita falação antes de fazer uma citação, viu a foto de seus irmãos no jornal em cima do balcão da lanchonete. O mais velho matou o caçula em meio a uma discussão sobre quem deveria administrar o negócio. Um templo evangélico funciona no prédio onde ficava o supermercado. Poucos na vizinhança ainda se lembram do estabelecimento e daquela família ao passar com pressa pelas mulheres do bairro que fica do outro lado do córrego, com suas grandes saias e proles.
Ela esqueceu de tomar o remédio, mas na verdade esqueceu que havia tomado-o. Dormiu dois dias seguidos, com a porta aberta. Os cachorros que sempre vagabundeavam pela redondeza entraram, comeram toda a comida sobre a mesa, rasgaram o saco com as fotos talvez por achar que também fosse comida, talvez por diversão, e destruíram recordações que iam de
Aquela assombração do capeta não merece registro. A simples menção do seu nome é um reconhecimento indevido. Esqueça, não falarei a respeito e seu recado não será passado. Sim, atualmente é inofensivo, sua mobilidade foi reduzida com o passar dos anos, ainda que a perversidade inata esteja apenas mascarada pelas pelancas e rugas de velhinho simpático. Trata-se de algo latente.
O que interessa é o seguinte: acertar uma história meia-boca para despistá-lo. Ignorar é uma benção. Não tem essa, é como se fosse uma perna de cobra: não existe e não interessa conjeturar sobre sua existência. Conte você, não dei moral para espectro nenhum. Não precisa ser nada bem tramado. Que ele perceba, quanto mais evidente que é uma evasiva, melhor.
Ninguém se deu conta que ele morreu, meses depois, a não ser os funcionários que trataram do trâmite para que seu corpo fosse doado a estudos de anatomia em uma faculdade de medicina.
Os telefones tocam em vão.
Todos com quem preciso conversar não foram trabalhar. Estão metendo, cochilando, bebendo e dando baixaria, queimando as carnes brancas no mormaço, jogando frescobol, cheirando, vendo mulher pelada na televisão, vendo revista de homem pelado no banheiro, alugando filmes pornôs, brochando em suítes caras de motéis vagabundos para ganhar uma chupada, discutindo com os pais velhinhos para depois jantar com eles, ralhando com os filhos e levando-os para tomar sorvete, nadando em piscinas com 37% de mijo, pulando ondas de coliformes fecais enquanto tomam água de coco, andando de bicicleta na chuva, sendo presas por desacato à autoridade, dançando nus em frente ao espelho, lendo Stephen King, ouvindo jazz na praça, comendo pipoca na fila do cinema, socando a fuça do adversário no xadrez, jogando RPG com os primos bestas, passeando com três vira-latas em forma de Cérbero, jogando confete nos travecos, enrolando as putas com serpentina e chacoalhando-se atrás do trio elétrico. Tem quem esteja trancado no quarto, ouvindo Bauhaus. Só alegria, o bordão surgido sabe-se lá onde me incomoda pra caralho.
Não é tristeza. Estou exasperado, pensando, impotente, cumprindo tabela, esperando que amanhã não perca o dia inteiro dormindo pra compensar a insônia que não posso descontar agora. O picareta do chefão veio dar exemplo. Trabalhou duas horas e foi embora rangar e fazer a sesta.
Imprecações à parte, ainda se pode conviver numa boa com o novato folgado. Acha que caiu, ou caiu de fato, nas graças do Mullet. Faz sentido, pois é fácil impressioná-lo com português castiço ou jogando com conceitos recém-inventados/deturpados. O garoto é um alpinista social que tenta se impor pelo volume da voz e pela inconveniência, mas já tomou tantas invertidas dos cobras véias que deu uma murchada. O meu saco ele não encheu nem alisou. Ser praticamente ignorado por um playboy ignorante em um ambiente com dezenas de pessoas é uma bênção.
Now I´m really pissed off. “The enemy works in the corner of my eye”, the song plays again and again in my head. But I have a advantage: he doesn´t know what I´m writing. He barely read portuguese. He´s looking at me, at my monitor, right now, but he can´t do no harm anymore. So I can practice my english while I pretend to translate commercial letters. Instead, I write big e’s to friends who lives in other countries, and that´s it.
O sono, a desmotivação, o cansaço, o colega, a indisposição, o cachorro do vizinho, o chefe, a comida gordurosa, a perda de tempo, a gostosa que não dá bola, a auto-estima, a visão do dia lindo lá fora, a falta de sentido nas tarefas, a música ruim no rádio, a TV, a manutenção do carro, a tela do computador desejosa de ser preenchida com merda, a conversa fiada, o lugar-comum, o babaca do qual não seu pode fugir? Eu?
Depois de muito envelhecimento precoce devido à inércia somada ao sedentarismo que mesmo a mais frenética atividade na frente do maldito computador provocaria, é só pensar friamente para começar a melhorar. Basta mentir. Preencher o controle de horas com informações falsas. Ninguém nota que não se está fazendo nada. Impressionante. Quando não dá para ficar conversando em qualquer um dos cinco comunicadores instantâneos instalados, por ter alguém olhando, é só escrever longos e-mails no meio dos relatórios mais enfadonhos. Pode-se retomar contato com quem não se conversa há anos e fica por isso mesmo.
Imagens de culpa que nunca fizeram parte do meu imaginário, mesmo tendo uma criação cristã, andam me perseguindo. O que fiz para ativar isso? Parecem hologramas, muito tênues, é fato, se materializam de repente e evaporam mais rapidamente ainda. Deve ser sugestão subliminar da gritaria evangélica próxima de casa.
O pessoal do escritório vai viajar junto. Queria tanto ir à praia, mas ela está cheia de bosta e de gente que me odeia. As velhas de classe média alta estão assistindo TV agora de manhã, reclamando da vida e anotando receitas. Depois elas vão à academia, após tomar uma vitamina reforçada, e buzinarão no ouvido dos pobres funcionários que elas não têm tempo para nada.
Não é nada que faça sentido. Ainda que qualquer um possa compreender. Dolorosamente. Portanto, sua lógica desvanece ao romper a barreira do Id. Resta um pensamento disforme. Descarga elétrica etérea, ainda cognoscível, porém massivamente escorraçada, soterrada e finalmente obliterada. Raros são os que fazem submergir tal incômodo. Há quem tente faturar com isso, e não se pode acusá-los de deturparem a idéia, porque não se trata de algo palpável o suficiente para ser tomado como um conceito bem definido. Corrói o mais insensível dos trogloditas todos os dias, contudo. Quem faz desenhos animados diverte-se tanto quanto as crianças que os assistem e ainda sente-se realizado? Um loop dos momentos felizes, drone incidental de tudo que queremos ouvir em moto perpétuo para preencher toda morte diária fora dos instantes que valem à pena, os quais deveriam ser acrescentados à programação seletiva do autismo consciente a que aspiramos.
Calor na cozinha e pouca compreensão. Basta. Repentinamente contorceu-se violentamente. Tacou a panela no chão. O molho espalhado pelas paredes, chão e em tudo quanto que é eletrodoméstico evocava uma cena de assassinato em massa.
Ela pôs veneno no tempero do macarrão, para dar cabo dos seus tormentos, ou seja, marido e filhos. Contrita, flagelou-se com queimaduras de primeiro e segundo graus. Não podendo explicar-se, parentes e vizinhos enxergaram possessão no ato; possessa, ela antes se convenceu disso. Serena, do hospital seguiu direto ao culto, dando a mão aos filhos e o dízimo para reconfortar-se.
Filhos justificam tudo. É por causa deles que fulano deixou de fazer algo, que o sujeito esqueceu do seu sonho, que a garota justifica sua submissão, que o tiozinho acomodado critica quem quer mudar qualquer mínima condição que seja alegando que o jovemzinho não tem preocupações de fato. Por que pôr uma criança neste mundo cruel? Esta velha pergunta clichê é geralmente respondida por quem a faz (seja a questão, seja a criança), mas apenas nos recônditos da inconsciência. É para não tentar nada. Para justificar toda covardia e as agressões psicológicas a quem tentar sustentar um princípio ou arriscar ficar sem o prato de comida por contrariar o chefe, anunciante, assessor, cão de guarda moral, titular do departamento financeiro/comercial, pretenso superior ou qualquer tiranete contemporâneo. E quanto aos pirralhos, pelos quais se urdiram tantos sacrifícios, que aturem as cobranças (inclusive as em espécie) depois.
As idéias de presunção da felicidade que sugerem a mentira de improviso e os condicionamentos que forçam uma hospitalidade constrita digladiam-se odiosamente. Um hipotético meteorologista cerebral estaria encolhido no refúgio mais fétido para não encarar o colosso de tempestades elétricas que calcina a fronteira entre os hemisférios nestas ocasiões. Uma carona e um convite feito apenas por educação resultaram na súbita aparição. É como se houvesse convidado um vampiro para entrar em casa, e com ele assim instalado não poderia reclamar, pois dei anuência ao mal. Simpático, sorridente, cobra a cerveja que prometi. O paco de garrafas escorregadias desce sobre a pequena mesa no meio da sala milagrosamente sem nenhum pouso forçado. Justo quando a bonança havia começado. Quer dar argumento para uma mulher adora sustentar que o casamento está desgastado? Esqueça a data do dito cujo. E não interessa, nem fodendo, sua defesa de que está trabalhando demais justamente para dar base ao casamento. Quase ao fim do impossível processo de reversão deste tipo de acusação que qualquer homem consegue efetuar quase todo dia, o Ogro me aparece. Fico sem reação. A mulher, um minuto antes de recuperar o pleno bom humor, já quer escorraçá-lo com o olhar, mas esse tipo de sutileza não funciona com alguém plano. O pior: ele se senta, não sei o que dizer, ele não diz nada após elogiar a arrumação da casa. Convido para conhecer o quintal, como se isso fosse interessante, mas ele está totalmente a fim. Mostro o quarto das crianças, ele se detém ainda mais por lá, perguntando detalhes, contando que gostaria de ter filhos, como se estivesse interessado. Ao voltar para a sala, pergunta sobre o sistema democrático da Grécia Clássica, geopolítica, aviões e outros assuntos sobre os quais havíamos conversado no serviço. Demora para sumir com uns livros emprestados debaixo do braço, feliz. No desespero de tentar escapar daquela situação, cheguei a convidá-lo para passear conosco no parque. Ele declinou do convite, disse que logo ia embora, mas ainda ficou uma hora lá, fazendo perguntas. Tava até legal dar uma de professor, porém sentia cada punhalada que os olhos dela desferiam nas minhas costas. Depois da hostilidade inicial, ela foi bacana com o Ogro. Esperava que ela fosse comigo depois, mas sabia que era auto-engano. Bastou ela certificar que ele já ia longe para estressar ao máximo. Até explicar que sim, tinha convidado ele para aparecer, mas não, não naquele dia especial, todo o tempo de comemorações se foi. A noite ascendeu com uma aura de mal-estar.
Esquecemos. A galáxia de pensamentos que não se concretizarão a respeito de assuntos mesquinhos que não merecem nenhuma reflexão ou tempo despendido exige isso. E as lembranças que realmente importam, parte delas se esvai sem reclamar o seu devido lugar. Basta uma hora de rotina para a extinção completa de uma inspiração genial, ou sobre a qual se tem a vaga intuição de que era algo brilhante. Se a idéia não é imediatamente registrada em um suporte qualquer, um pedaço de papel higiênico que seja, a sensação que fica do mote perdido deve assemelhar-se a de um amputado que sofre coceiras intoleráveis no membro inexistente. Restrinjo-me, no entanto, ao campo das idéias. Há paralelos piores. Como, por exemplo, após meses de desgaste profissional, esquecer do aniversário de casamento.
De repente ele aparece na porta de casa. Um pesadelo que remete a adolescência, quando odiava que “amigos” aparecessem lá só para encher o saco. Não tinha a manha de expulsá-los de casa, ninguém faria isso, eu não sabia fazer, depois eu soube como dar um jeito nisso, sempre soube, mas esqueci. Não consigo mais. Fudeu e o tempo livre acabou.
Ele sempre quis ser negão. Corava por qualquer coisa. Agradecia quando alguém não lhe dizia nada. Quando era criança, nunca sabia quando estava vermelho de vergonha, a menos que lhe dissessem. Talvez, justamente por ser pirralho, não se sentisse tão constrangido por qualquer coisa. São outros tempos agora. Ele sabe quando acontece, pois sente o rosto e as orelhas queimarem. Quando alguém abre a boca para aquele típico “Até ficou vermelho!” a brasão aumentava tanto que ele suava. Não há tortura psicológica pior para um branquelo. Temos certeza que muita gente aqui já percebeu.
Ele marca algo rapidamente na tela, antes que o vejam gazeteando. Tão logo saem na sala, na qual por impaciente coincidência entraram apenas para olhar um mapa que também está fixado na sala da chefia administrativa, desmarca o que tinha marcado, pressiona o Alt Tab e volta ler o site sobre L.E.R. no qual estava concentrado antes. Contorce-se para a direita, range a cadeira ao fazer um giro esquisito para a esquerda, massageia as costas com sofreguidão. De soslaio, por ter a mesa oblíqua a sua, posso ver tudo. Acho melhor, claro, não dizer nada para ninguém, e nem para ele.
Olhe para o alto e jogue-se para baixo. A imobilidade vertiginosa do trabalho, seja qual for o sistema pelo qual fundamentalistas do intelecto fazem proselitismo, rebaixa enquanto te faz mirar ilusões idílicas, mantendo-o na média, medíocre, dando-lhe ilusão de movimento. Mera teorização de quem não faz nada, fracassado. Em casa, é o eletrodoméstico que você tanto diz odiar que te acalenta.
Gordo, suando torrencialmente e com um desodorante fortíssimo que só piorava tudo, ofendia a intimidade olfativa de todos, menos a dele mesmo, claro. Devia ser muito eficiente, pois há anos era assim, cochicha-se pelos corredores. Por acaso, descubro não era só eu que o apelidara mentalmente de Carcaça. Era como o chamavam pelas costas há algum tempo. E ele era pútrido em todos os sentidos, contamina tudo com seu Toque de Midas inverso. Minha sorte é que minha área é distinta o suficiente da dele para manter-me muito distante, pelo menos psicologicamente, portanto não tinha que passar o fim de semana com sua imagem nauseabunda ardendo em minha mente, assim como acontece com tantos colegas que reclamam sem parar.