Sunday, December 29, 2019

Ontem Foi Um Sonho

Neste ano publiquei meu primeiro livro, Ontem Foi Um Sonho. 
É uma distopia que se passa num futuro (relativamente) próximo.
É uma edição totalmente independente, em papel reciclado, inclusive capa e contracapa.
A ilustração da capa é da Juliana Melo e a revisão é de Renata Cristina Ling Chan.
Eu mesmo editei e criei uma editora independente para isso, Enigma Anônimo - uma homenagem aos nomes das gravadoras independentes do Joy Division, Enigma e Anonymous, ambas meio de mentirinha, assim como minha editora, mas com pretensões de ser sérias (assim como minha editora). Não pus em nenhuma plataforma, ao menos por enquanto. Pedidos podem ser feitos diretamente a mim nos meus perfis nas redes sociais ou no e-mail danielsouzaluz@gmail.com
Já aviso: é em formato de bolso e tem apenas 16 páginas. A ideia é ser o primeiro de uma série de pequeninos livros de bolso. O valor é R$ 10,00 - mais o frete.


Friday, December 13, 2019

Daniel da Luz, contador de histórias

Daniel da Luz foi um homem trabalhador, bom pai e alegre. Gostava de ajudar as pessoas, de rir, de contar histórias e piadas. Pediu para pôr como epígrafe no seu túmulo a inscrição “Aqui jaz o homem mais feliz do mundo”. Não chorem ao se lembrarem dele, mas sim sorriam e riam; se possível, caiam na gargalhada, ele preferiria assim. Mas lembrem-se dele, sempre.
Bem, até aqui está o que escrevi, com a ajuda da minha mãe, que me lembrou que ele gostava de ajudar os outros e para quem ele disse o que gostaria de constar no seu epitáfio, para constar no cartão de lembranças que será distribuído neste final de semana, na missa de sétimo dia do meu pai. Minha amiga Renata Chan revisou o texto para mim, assim como esta crônica, e disse-me que se lembrou d’Os Excêntricos Tenenbaums devido à frase a constar na epígrafe. Não assisti ao filme, mas meu papai me faz recordar outro: Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas, do Tim Burton, baseado num livro de Daniel Wallace, o qual ainda não li.
Meu pai gostava de contar história de pescador, mas nenhuma delas envolvia pesca. Como em Peixe Grande, também eu, filho mais velho, formei-me em jornalismo e não aturava as mentiras dele. O Daniel pai era um cara inteligente. Quando eu era criança, ele lia o Pasquim para nós, nos falava de política; sei quem é Adam Smith e Karl Marx, o que é capitalismo e comunismo, desde a mais tenra idade, horrorizem-se defensores de Escola Sem Partido (e não optei por nenhum deles, idiotas). Ainda estávamos na ditadura quando ele nos falava de Marighella e Lamarca, assuntos tabus na época. O livro do qual meu pai mais falava era História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman, que era um historiador marxista; só descobri isso agora, para minha total surpresa, ao escrever estas memórias. Isso porque meu pai ainda nos falava muito dele quando entrou para o PMDB, no início dos anos noventa, e passou a ter uma postura cada vez mais pragmática, fazendo-me supor que Huberman era um autor de direita liberal, até pelo título do livro. Antes, papai era brizolista roxo, filiado ao PDT, e gostava de afirmar que era ex-comunista.
A questão é que meu pai contava tanta mentira cabeluda, muitas delas envolvendo conquistas amorosas, que caiu em descrédito comigo. Passei a ser completamente cético com relação às histórias de seu passado de esquerdista radical, por exemplo. Até que dois fatos me mostraram que, como em Peixe Grande, muitas vezes ele só dava umas exageradas na verdade. Ao voltar para Poços de Caldas em 2001, depois de formado, encontrei na casa do meu amigo Raphael Xavier um velho volume amarelado de Marx que meu pai havia emprestado para ele. Estava datado e assinado por ele: era de 1968, poucos meses antes do AI-5. Isso explica porque nunca tinha visto esse livro em casa; ele o manteve bem escondido.
Naquele ano ou no seguinte, morreu o ator Fernando Frizzo. Meu pai viu a notícia e disse-me que ficou triste com isso, que havia feito teatro e que simpatizava muito com ele. Ah, peraí, teatro? Não tem nada, mas nada a ver com ele. Desculpem-me, para mim, ser politicamente correto ou incorreto são duas bobagens, é maniqueísmo, então não vou edulcorar o passado, apesar de ser sim uma frase homofóbica: não me lembro agora exatamente do meu pai dizer “teatro é coisa de viado”, mas é a cara dele dizer isso, quem o conheceu sabe. Ninguém é santo e Daniel da Luz era um ser humano falho como qualquer outro, um homem de seu tempo, não estou escrevendo uma hagiografia.
Pois bem, e não é que meu pai fez teatro estudantil? Foi no fim dos anos sessenta (não no fim dos anos setenta, como saiu no obituário que escrevi para o Jornal da Cidade). Quem me contou foi Teresa Mesquita, educadora e prima do jornalista Luis Nassif. Um dia, nos idos de 2003, fui entrevistá-la, ela viu meu nome e me contou que faziam reuniões secretas, pois eram vistos como subversivos e viviam sob uma ditadura. E faziam peças de teatro, das quais meu pai participava. Fiquei de cara, então era tudo verdade – talvez aumentada de uma forma um tanto épica nas histórias que nos contava, mas era.
Há tantos causos dele que gostaria de retransmitir, mas o espaço reservado para este texto está acabando. Fica aqui meu favorito: diz meu pai que ele teve uma boate em Beagá e que um dia um sujeito estava lá aprontando uma confusão. Isso teria sido nos anos sessenta. Ao abordar o cara e pedir para que ele parasse a baixaria, ele teria dito “Eu sou Agnaldo Timóteo!” e meu pai teria respondido “E daí? Eu sou Daniel da Luz!”. Isso feito, saíram pela rua trocando tiros. É inverossímil, mas e se for real? Como dizia o cineasta John Ford: “Quando a lenda é mais interessante que a verdade, imprima-se a lenda”.

Daniel Souza Luz é escritor, jornalista e revisor


Este texto, híbrido de crônica e memórias, saiu no dia sete de dezembro de 2019 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). Também foi publicada, de forma resumida, no jornal Mantiqueira, na mesma data. Eu mesmo fiz a edição para o Mantiqueira, por questão de espaço. Meu pai nasceu em Poço Fundo, MG, em primeiro de janeiro de 1941. Faleceu em Poços de Caldas em primeiro de dezembro de 2019, devido a complicações de saúde causadas por um câncer, com o qual batalhou por quatro anos e meio. 
Também escrevi o obituário do meu pai para o Jornal da Cidade, acho interessante disponibilizar aqui também uma pequena biografia mais formal. O texto foi copidescado pelo editor João Gabriel Pinheiro Chagas, adaptando-o para o estilo do jornal, e publicado em 03/12//2019, com o sobretítulo Memória Viva; aqui está o original:
Daniel da Luz nasceu em primeiro de janeiro de 1941, em Poço Fundo. Faleceu em primeiro de dezembro de 2019, no domingo, com 78 anos e onze meses. Formou-se em Contabilidade, Administração e Direito. Era conhecido pelo escritório de Contabilidade com seu nome e também exerceu a advocacia. Foi membro dos diretórios do MDB, PDT e PMDB, tendo-se candidatado a vereador em 1992. Também teve cargos em vários conselhos e entidades, como a Caldense e a ACIA. Foi professor de Contabilidade do Colégio Pio XII nos anos oitenta e noventa. Também fez parte de grupos de teatro estudantil no fim dos anos sessenta, de oposição à ditadura militar. Torcia para a Beija-Flor, Vasco e era conhecido também como contador de causos. Deixa três filhos: Daniel Souza Luz, Eurico José de Souza Luz e Fernanda Souza Luz.


Meu pai, Daniel da Luz, nos idos de 2007/2008. Salvo engano, tirei esta foto pela primeira vez em que usei uma máquina digital que não era de disquete.

Monday, November 18, 2019

Para Gostar de Ler Volume 10 - Contos (Resenha que fiz para o Good Reads)

Para Gostar de Ler Volume 10 ContosPara Gostar de Ler Volume 10 Contos by Aluísio Azevedo
My rating: 5 of 5 stars

Todos os contos deste volume são ótimos. Iria lê-lo aos poucos, um conto por dia, mas uma viagem que fiz hoje demorou um pouquinho mais do que eu esperava e matei-o de uma vez. Já tinha lido um spoiler do conto do António de Alcântara Machado numa crônica do Ivan Ângelo, também presente neste volume, escrita em 2017, mas como a prosa (de ambos) é excelente não é nada que tenha tisnado o prazer da leitura. Fiquei surpreso ao notar, conforme passava a história, que já tinha lido A Terceira Margem do Rio, do Guimarães Rosa. Talvez tenha lido-o isoladamente neste número da coleção mesmo, na escola, não tenho certeza. De qualquer forma, isso foi há três décadas, não me recordava do fim, então foi como se tivesse lido pela primeira vez. E foi um deleite finalmente ter devorado de cabo a rabo este livro.


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Monday, October 21, 2019

A Droga do Amor - minhas impressões.

Texto que escrevi para a rede social Good Reads.

My rating: 3 of 5 stars
Li numa tarde. Bandeira o escreveu muitos anos depois da aventura inicial dos Karas, perdeu um pouco da química com o passar dos anos - ou já sou velho demais e perdi um pouco da minha criança interior. De qualquer forma, é uma narrativa digna da turma. O bacana é que ele o fez a pedido de uma leitora (Vanessa Cristina Haneda, a quem ele dedica o livro), que deu a ideia inicial da trama. A obra é de 1993; ele aborda a questão da epidemia de AIDS, então mais assustadora, sem jamais tocar no nome da doença - opção estética que ele explica no posfácio, citando as peças Os Espectros, de Ibsen, e O Homem de Flor na Boca, de Pirandello.
P.S. Uma ótima lembrança que o livro me trouxe dos anos oitenta, embora ele seja dos anos noventa, é a comunicação pelo código Tênis Polar, que eu e uns colegas usávamos na escola para escrever bilhetinhos.


Thursday, September 26, 2019

O Auto da Compadecida - minhas impressões.

Auto da CompadecidaAuto da Compadecida by Ariano Suassuna
My rating: 5 of 5 stars

Li de uma vez só. Na verdade, li em voz alta, para meu pai, que não enxerga quase mais nada. Contando o tempo de leitura do prefácio, que foi lido depois, também para ele, não levou mais do que três horas. Já tínhamos assistido ao filme dirigido pelo Guel Arraes há uns dez anos, à época passou batido para mim; acho que meus familiares já tinham visto até antes, quando foi exibido em forma de minissérie. O texto é muito prazeroso de ser lido em voz alta, afinal foi concebido para o teatro. O que chamou minha atenção, em primeiro lugar, foram as referências das histórias populares que Suassuna cita no preâmbulo; apesar dele ser cristão e conservador, ele não tem pejo em usar passagens escatológicas e me parecem que bem blasfemas, pois também abordam traição e sexo. O ótimo prefácio, de Henrique Oscar, traça as origens disto em textos medievais, nas quais Nossa Senhora também tem papel fundamental na salvação de almas. Ou seja, pode escandalizar carolas, mas é uma obra fundada em narrativas católicas populares que refletem a profunda religiosidade do autor. Outro aspecto que me chamou a atenção é que no livro João Grilo é mais violento e maquiavélico do que me lembro dele ser no filme; parece-me bem normal isto ter sido atenuado no roteiro, pois dificultaria a identificação do público com o personagem. Enfim, um livro divertidíssimo, rápido de ser lido e que não é uma leitura superficial, pelo contrário, também há reflexões assertivas e precisas sobre racismo e gênero, uma surpresa enorme vinda de um autor assumidamente conservador.
Daniel Souza Luz
Texto que escrevi para a rede social Good Reads.


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Thursday, September 05, 2019

Como sobreviver a uma briga num show de punk rock

Hoje, dia da independência, é uma ocasião especial na minha memória afetiva. Remete a uma noite cuja data exata ignoro, apenas tenho o registro de que foi em 1997. É que há uma música do Down By Law, grupo de hardcore dos anos noventa, que narra quase exatamente uma aventura pela qual passei. Ela se chama Independence Day e a letra fala de uma treta num show de punk rock, sem mencionar datas, mas deve ter sido num quatro de julho, a independência dos gringos.
“Bem, os moleques chegam no pico e a merda bate no ventilador/Muita segurança, mas pouca maturidade/A banda subiu no palco/Os garotos estavam furiosos”, começa a letra. Há 22 anos eu cursava Jornalismo no campus da Unesp Bauru e frequentava uma biboca chamada Pau Brasil Café. Era um lugar tosco, mas bacana. Um sobradinho com um bar embaixo, perto da Duque, avenida que concentrava os bares frequentados por unespianos. No fundo, subia-se por uma escadinha e havia um cômodo no qual as bandas tocavam. Era apertadíssimo, inclusive uns malucos equilibravam-se entre a mureta ao lado do “palco” e uma reentrância na parede da escada. Passava-se debaixo da perna deles para adentrar o recinto. Uma legítima espelunca underground. Em agosto de 97 vi lá pela primeira vez o No Bones, banda local de hardcore. O guitarrista Luiz Fernando tocava com o pé suspenso em cima do pedal. Quando alguém se aproximava muito, levava um chute dele.
“Todos os otários estavam aterrorizados, sabiam que iam pagar/Todo coração jovem na casa aquela noite batia um milhão de batidas/Punhos cerrados e um pouco de medo/Ninguém sabe quem tascou o primeiro soco/Mas depois disso ficou pior”. Coisa de um mês depois o Angry e o Autoboneco tocaram também no Pau Brasil. Na hora do Angry estava tão cheio que não adiantou abrir a janela do lugar: estava tão quente que os vidros permaneceram embaçados e não eram apenas os frequentadores que pingavam de suor: houve condensação no teto e os pingos que de lá caiam tornavam o chão uma armadilha. Foi tenso. No pogo – a famosa roda punk, na qual as pessoas pulam, empurram-se e socam o ar – escorregava-se no chão de ladrilhos. Então chegou a hora do Autoboneco, lenda local até hoje ativa.  Algumas músicas deles depois, aconteceu enquanto eles tocavam sua versão de I Wanna Be Your Dog, do Stooges: alguém esmurrou de verdade outra pessoa. Mais de duas décadas depois, conversando com amigos várias vezes a respeito, ninguém sabe quem começou ou o porquê. As suspeitas apontam para o Boy, skatista e pedreiro, um troglodita que me metia medo e que anos depois eu veria levar um senhor murro na cara de uma amiga, a Marília, ao boliná-la. Mas mesmo detratores dizem que ele não foi o culpado. O fato é que ele se envolveu na briga, que em segundos tomou proporções homéricas. Com tanta gente apinhada, não vi nada direito. Fui separar o Tcharlão, então um jovem anarcopunk, de um sujeito e só depois de um tempão entendi que ele estava é segurando o cara para ele não voltar para a treta. O Autoboneco parou de tocar, seus membros aturdidos, e a pancadaria rumou escada abaixo, um furacão devastando o caminho.
“Nós dissemos tudo o que tínhamos a dizer/Fizemos tudo o que tínhamos que fazer/Não pediremos desculpas por nada/ Não há como interromper uma briga/ Eles tentaram parar o show/Nós não iríamos embora/Pela primeira vez as vozes gritaram juntas por um dia”. O Pau Brasil não tinha seguranças. Ninguém chamou a polícia. Não havia armas. Foi como no filme Warriors. Cada um se garantiu como pôde. Quando desci, a briga se dividia entre focos no bar e na rua. O Nardi, batera do No Bones, correu até a esquina para dichavar alguém. Meu amigo Léo, zineiro, estava com o nariz sangrando; sua namorada de então, a Dri, estava possessa. Segurei-a pela camiseta, mas ela escapou e deu uns tabefes num pobre-diabo. Voltei para dentro do bar e meu amigo Samuel estava sentado, olhando fixamente para uma garrafa. Ele havia levado umas pancadas. Quebrou a garrafa e levantou-se. Temendo o pior, pedi por favor que me desse para jogá-la no lixo. Ele concordou, pegou uma cadeira do bar e bateu no Boy a valer. Dadas as circunstâncias, achei razoável e civilizado. O Boy, que já havia batido, resolveu apanhar resignadamente. Lembro-me como se fosse há cinco minutos ele dizendo “Tá bom, já apanhei bastante”, sem reagir a uma cadeirada nas costas.
“Não se preocupe comigo, mamãe e papai/O que posso fazer além de sair na porrada e rezar?.../Garrafas quebradas, ossos quebrados e lá se foi a noite”. Depois de testemunhar essas pequenas partes da carnificina, levei o Léo ao hospital. Ele havia quebrado o nariz. Até hoje não sabe quem o atingiu e por que justamente ele. Umas garotas foram junto, preocupadas com ele. Constam que não o conheciam, o que acharam engraçado. Deviam ser umas minas gente fina. Fiz uma tradução livre da letra do Down By Law para esta crônica, mas creio ter sido bem fiel. Ela é de 1996, já conhecia e gostava, mas só prestei atenção nela em 2002. Cinco anos depois daquela contenda titânica, fiquei com um nó na garganta: naquela noite minha mãe e meu pai foram visitar a mim e meu irmão de surpresa em Bauru. Eu estava de saída para o Pau-Brasil quando chegaram e disse que ficaria bem – eles ficaram preocupados. Vai ver inclusive foi no feriado de sete de setembro que nos visitaram. E como sobreviver a uma briga num show de punk rock? Mermão, não sou escritor de autoajuda. Nem separar briga, que é o que faço, eu sei direito. Te vira aí.
Daniel Souza Luz é escritor, revisor e jornalista

Thursday, May 30, 2019

Machado

Almoço de negócios. No mais afamado restaurante da cidade. Já um tanto decadente, sequer ainda é tido como o melhor, mas a comida é mais do que palatável. O expatriado empresário paulistano joga conversa fora com os conterrâneos; o acordo está fechado. Demoram-se um pouco mais do que o previsto, mas como a conversa tomara um rumo muito agradável, deixaram-se ficar e atrasaram um pouco a volta para São Paulo. Tudo bem.
O empresário, conhecido como Júnior, perde o timing e começa a aborrecer os visitantes, lamuriando-se de não ser bem aceito pela sociedade local, apesar de ser bem-sucedido.
- As pessoas aqui são muito preconceituosas. É uma bela cidade, com muito potencial, mas é um tantinho provinciana. Sou visto como um forasteiro que não deveria opinar na política local.
Já enfastiado, um engenheiro, mais novo, propõe que não se demorem mais para pegarem a estrada. Ao saírem, se deparam com o protesto dos estudantes do campus local da universidade federal. É 15 de maio de 2019. Um dos visitantes engravatados pergunta, já tendo certeza:
- Tudo estudante de Filosofia, né?
Júnior, desde que se mudou para a pequena cidade, meteu-se a ler tudo sobre ela: revistas antigas, jornais, blogs na internet, diário oficial. Arvora-se mais conhecedor dela do que os historiadores e memorialistas locais. Bem relacionado e extremamente articulado, ganhou um terreno público, avaliado em mais de um milhão, para instalar sua indústria no município. Atribui parte do seu sucesso ao profundo conhecimento sobre a cidade que adotou e que ama como se fosse um rebento. Responde com propriedade:
- Sim, só podia ser.
O único curso de Filosofia da cidade havia sido fechado quatro décadas antes. Os cartazes da manifestação destacavam os trabalhos científicos de pesquisa em Biologia desenvolvidos no campus, além de protestar contra o corte abrupto e arbitrário no orçamento da instituição.
Após escutarem por alto o discurso dos alunos da universidade local, transmitidos por um pequeno amplificador aos transeuntes, eles viram a esquina e Júnior não resiste a fazer sua observação mordaz:
- Quando vejo um desses vagabundos cabeludos percebo que criei bem minha filha. Ela nunca aparecerá com um desses em casa. Até por isso a mandei para uma faculdade particular.
O engravatado mais velho, grisalho e baixinho, carregando uma deslocada mochila nas costas, é um tipo mendaz. Muito aprazível, no afã de agradar, acha por bem fazer um complemento venal:
- E se mesmo assim ela aparecesse com um desses, não é nada que uma Glock não resolva.
O empresário aquiesce com um sorriso satisfeito. Segue-se um pequeno silêncio, que, no entanto, não é incômodo para ninguém.
O engenheiro decide rompê-lo.
- Estive aqui quando era criança, não me lembro bem mais de como era a cidade.
- Está igual, a mesma merda, não muda, só tem uns prédios a mais.
Despendem-se no estacionamento. Até ali havia sido um dia produtivo, estão orgulhosos e esperançosos quanto ao futuro empreendimento conjunto.

Daniel Souza Luz é escritor, jornalista e revisor

Este conto foi publicado no dia 17 de maio de 2019 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). Desde dezembro de 2018 que não publicava um novo conto no jornal, este foi o primeiro inédito em quase seis meses; todos os outros que saíram nos primeiros meses do ano foram versões retrabalhadas de contos e minicontos antigos postados originalmente aqui neste blog. Revisei esta versão que estou publicando agora no blog, eliminando pequenos errinhos e repetição de palavras e expressões que deixei desatentamente passar na versão original que saiu no jornal.

Machado foi publicado originalmente na página oito na edição 7037 do Jornal da Cidade.

Tuesday, February 26, 2019

Gatinha

Paula lambia-se como se fosse uma gata. Metaforicamente ela é, mas também, neste caso, literalmente. Sabia que não tinha lógica, mas é um hábito de criança do qual não consegue se livrar. Finalmente em casa, depois de um banho e do almoço, morrendo de sono em frente à TV, sol a pino e sabendo-se privilegiada por estar naquele quarto fresco, todo bege e bem ventilado, Paula lambe-se e arrepia-se consigo mesma, sua melhor companhia, ainda que não considere dispensáveis as demais. 
Contorce-se na medida do possível, estendendo a língua onde aprendeu que era bom pô-la, até que se aconchega no edredom e, antes de apagar, pensa brevemente em ser contorcionista de verdade. Quando acorda, ao fim da tarde, o sol já amigável, ela espreguiça-se pacientemente e sai para caçar.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor


Gatinha foi publicada no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 23 de fevereiro de 2019. É uma versão retrabalhada de um conto de mesmo nome, publicado aqui no blog em 10 de setembro de 2007. É conto lascivo, mas não chega a ser literatura erótica, creio. Esta versão difere também da versão que saiu no jornal, pois a revisei e corrigi um erro de conjugação verbal.

Gatinha foi publicado no meio da página oito, à esquerda, da edição 6985 do Jornal da Cidade.

Thursday, February 21, 2019

Zelo

A ideia tornou-se recorrente. Tudo o que vem acontecendo deixa-me mais desgostoso. Nada permanece. A maioria dos meus livros, que guardei com tanto zelo durante todos estes anos, foram roídos por traças, carunchos, sei lá. Trabalhei demais, tornei-me um workaholic ao longo do ano passado. Nem me senti pressionado a fazer isso por patrões ou colegas, mas sentia-me tão angustiado ao chegar no horário certo em casa, com tantos projetos em mente e tão pouco tempo para viabilizá-los, que passei a dar uma de rapaz responsável. Não conseguia escolher um dos meus sonhos para concretizá-los, deixava tudo pela metade.
Por acaso, encontro-a na rua. Irritado com o abandono e com tudo o mais, disse o que sempre dizia nas antigas. Que estava com vontade de morrer. “Não fala isso, você é tão novo, tanta gente queria ter sua saúde”, blábláblá. Conhecia a velha ladainha. Desta vez falei com sinceridade. Antes dizia isso para que ela me acalentasse depois do esporro. Mas todos temos uma imagem a gelar agora. Sim, gelar. Não há nada mais a zelar. Seremos apenas isso, congelados até o fim, porque nossas escolhas foram encerradas, agora temos que vivê-las e não há volta. Ao menos, ela me aquece com um café, mas, enquanto conta-me as travessuras da filha e as noias do corno que a sustenta, não consigo deixar de pensar de que preferia quando ela se esgueirava debaixo das minhas cobertas para sumir assim que eu adormecia.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Zelo saiu no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 16 de fevereiro de 2019. É uma versão levemente retrabalhada de um conto meu de mesmo nome, publicado aqui no blog em oito de janeiro de 2007.

Zelo saiu no canto esquerdo inferior da página oito da edição 6980 do Jornal da Cidade.


Tuesday, February 12, 2019

Será que dá tempo?

Nada do que ela disse me impressionou mais do que confessar que já teve um relacionamento com outra mulher. Ela sempre foi muito conservadora. E me diz algo assim com a maior naturalidade. Tão arrogante, tão provinciana, tão preocupada em aparecer nas colunas sociais da sua cidadezinha. Adorava figurar ao lado das velhas carolas, “damas de caridade”, ciosas de seu marketing pessoal. Ela expulsou a filha de casa porque a menina tinha assumido o namoro com uma menininha ainda mais nova. Tentei tomar as mãos dela entre as minhas para alentá-la, mas ela já havia levantado para atender a ligação do marido. O celular tinha um toque específico, uma música do Franz Ferdinand, Michael, que identificava o número dele. Guiada pela coleira eletrônica, desabou escada abaixo. Imediatamente vestiu sua máscara, para nunca mais tirá-la.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Será que dá tempo? foi publicado no dia nove de fevereiro de 2019 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). É uma versão retrabalhada do primeiro conto publicado neste blog, em três de janeiro de 2007. Mesmo em relação à versão publicada no jornal, fiz uma pequena alteração aqui, substituindo a palavra "aparelho" por "número" na frase em que falo do toque no celular, o que também foi uma mudança que fiz no original: incluí a citação da música do Franz Ferdinand, pois é um som que caracteriza bem aquela década e que de quebra ainda forneceu o nome de um personagem.


Será que dá tempo? conforme saiu no Jornal da Cidade, no cantinho esquerdo inferior da página oito da edição 6975. Ao lado saiu um texto que fala de poesia, erroneamente creditado a mim, e com o mesmo título, por engano também.



Thursday, February 07, 2019

Memento Mori

Com o tempo se aproximando, sentiu-se petrificado. Não conseguia se mover. Vivendo fora do tempo, isso soa natural, mas não é. Ele ganhou algumas semanas de existência fugaz para compensar os dez anos de quase olvido. Dez anos existindo apenas durante as noites e madrugadas, por alguns poucos segundos, no máximo minutos. Enquanto ela sonhava. Surpreso, às vezes via-se consciente aos sábados ou domingos durante as tardes. Uma vez ela caiu doente e encontraram-se às onze e pouco da manhã de uma terça-feira, por meros quatro segundos, enquanto ela cochilava. Ele prolongava os sonhos dela sempre que podia, conversando, convencendo-a, ou tentando convencê-la, de que era real. Enquanto isso seu corpo envelhecia, mas ele era o mesmo de dez anos antes no fluir etéreo. Finalmente despertou do coma. Mudo e paralisado, não consegue explicar para ela que era tudo verdade. Ele espera que ela note sua ausência onírica.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Memento Mori foi publicado no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em dois de fevereiro de 2019. Já o havia publicado aqui no blog em 09/06/2008, mas o reescrevi para publicá-lo no jornal, porque o original me pareceu ruim ao relê-lo, embora a ideia que tive, tangenciando a literatura fantástica, continue aprazendo-me. Em relação à publicação no jornal, nesta versão ainda grafei por extenso o numeral 4, algo que não consertei a tempo antes do enviá-lo ao editor João Gabriel Pinheiro Chagas.  


Memento Mori saiu no canto inferior esquerdo da página oito da edição 6970 do Jornal da Cidade

Wednesday, January 30, 2019

Discurso de Boteco

Sobe na mesa. Bêbado, mas com o discurso decorado: "Senhoras e senhores, preciso da atenção de vocês. Existe algo tão chato quanto neguinho metido a politicamente correto: os malas do politicamente incorreto. Burros, todos eles. Os primeiros não reconhecem uma das maiores qualidades de nós, seres humanos, que é a capacidade de sermos contraditórios. Vejam bem, não estou dizendo que é legal ser hipócrita, apenas estou dizendo que se não fosse assim não suportaríamos a angústia. Não rola, esse mundo é filho da puta demais. Não, peraí, eu vou falar, tô à pampa aqui, fica de boa aí também, é rapidinho. Então, os segundos são metidos a espertinhos e para disfarçar a falta de escrúpulos e seus preconceitos escrotos dão uma de rebeldes, clamando contra a opressão do politicamente correto, enquanto na verdade querem que tudo seja a mesma merda que sempre foi. Fazer o contrário para fazer o que sempre se fez. É muita cretinice. Peraí, já vou descer. São esses estereótipos ambulantes que existem. Esses são os que acham que pensam, mas tem nojo dos livres pensadores como eu. Os outros gostam de patrulhinhas mesmo, é verdade. A palavra viado, por exemplo. Viado pra mim é sinônimo de babaca, quando eu era um ninquinho de gente eu chamava os outros de viado porque era um xingamento legal, nunca ia imaginar que viado era o que é! Podem vaiar. Não é por mal nem por preconceito. Enfim, tem alguma gostosa aí a fim de levar um papo legal?" 
Dito isso, ganha uma latinha de cerveja cheia na testa.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Este conto foi publicado no Jornal da Cidade em 26 de janeiro de 2019. Fora originalmente publicado no fanzine Embrulho de Banana número 15, em julho de 2007. Foi revisado pela editora, Camila Conti, ou por colaborador chamado Marco, salvo engano. Só faltava uma crase no texto original, pelo o que lembro. Perdi o contato com a Camila e com a Valquíria Lopes Rabelo, outra colaboradora do zine; conversava com ambas por e-mail e jamais as encontrei pessoalmente. Já o havia publicado aqui no blog em agosto de 2008, mas dando uma informação equivocada: que sairia no número 14 do zine - tenho uma cópia do número 15, a edição final do Embrulho. Fiquei surpreso relendo esta postagem antiga, não me lembrava que era a reelaboração de um velho texto meu. De qualquer forma, na postagem de 2008 o texto também está inalterado, tal como a versão que saiu no jornal.  
   
Discurso de Boteco no alto da página oito da edição 6965 do Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG).

Friday, January 18, 2019

Calor Humano

- Pai, o senhor pode voar igual ao Super Homem?
- Posso.
- Então voa.
- Não quero.
- Por quê?
- As pessoas podiam ficar com inveja, e não quero que elas saiam voando por aí. Pior do que um invejoso, só um invejoso voador.
Calor Humano tal como foi publicada no Jornal da Cidade, na página 10 da edição 6950


Nunca menti para meu filho. Mas toda vez que sou sincero com minha esposa, chamas envolvem o meu estômago.
- Amanhã ele vai à missa comigo.
- Você vai transformá-lo em um robô.
- Não somos idiotas, e nem seu filho – nosso filho! – será...
- Ele deveria escolher se quer ir, ou não, quando for adulto.
- Mas...
- Não sei por que casamos. Um par de coisas fundamentais não se encaixa entre nós.
Minha língua funcionou como um lança-chamas. E ela se queimou mesmo. Não devia deixar algo tão abrasivo escapar. Estávamos todos de mau humor, e mais cedo ou mais tarde ela inventaria uma desculpa qualquer para sair pelo mundo. Nós berramos desvairadamente naquela noite. Tanto o vizinho de cima quanto o debaixo reclamaram na portaria.
- Você não pode gritar com seu filho! Nem se ele gritar. Nunca!
Levou tudo e deixou apenas uma foto. Um carola casou com ela. A guarda do garoto foi dada à mãe. Os três acabaram dentro de um ônibus, em um precipício, quando iam para Aparecida.
Tentei fazer uma escultura de gesso de nós três, a partir da foto. Pelo menos teria mais uma lembrança material. Pareceríamos tão feios se a concluísse que nem chorei ao rebentá-la contra a parede. Fiquei sem ar. Novamente me deparei com a imagem de Júnior decapitado.
A vida saiu de controle.
Ponho meio corpo fora da janela, puxando o mormaço para dentro dos pulmões. São compactados pela atmosfera, enquanto o tórax entra em combustão.
Há anjos desenhados no playground. O céu é lá. Encontrarei minha mulher, meu filho. Hora de voar. Não me preocuparei mais com os invejosos.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor


Este conto foi publicado no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em cinco de janeiro de 2019. Já o havia postado antes aqui no blog, há quase uma década, e também em outro blog meu, uma semana após sua publicação original, em 29 de março de 2006, no extinto jornal Papo Arte, da Instituto Cultural Cia Bella de Artes (à época conhecido apenas como Cia Bella de Artes), também de Poços de Caldas. Esta versão é diferente em relação às publicações anteriores, pois acrescentei alguns detalhes, e consertei um erro de digitação constrangedor ("lancha-chamas", em vez de lança-chamas) que deixei passar em todas as publicações anteriores, inclusive na que saiu neste ano no Jornal da Cidade.

Wednesday, January 09, 2019

L7

Em meados do ano um amigo avisou que teria show do L7 no Brasil. Desta vez era de um jeito que me interessava: mais underground, numa casa noturna. Bem diferente de quando estiveram aqui um quarto de século atrás, num grande festival zoado. Apesar dos pesares, devia ter ido, naqueles dias confusos da adolescência. Quem tocou junto foi o Nirvana, que fez uma apresentação ruim, mas foi a única vez que passaram no Brasil.
Por essas e outras, o L7 ficou muito associado ao grunge e às bandas de Seattle. Na real, é um grupo de Los Angeles, na Califórnia, composto apenas por mulheres (com exceção do primeiro disco, de 1988, quando o batera era homem) e cujo som é punk rock bem garageiro, mas com mais peso do que as bandas de garage rock. Voltaram a tocar em 2015 e lançaram duas músicas novas agora em 2018. Mais importante, com a formação clássica, com o retorno da baixista Jennifer Finch.
Avisei amigos de iria a um show do rapper Kamau, com entrada franca, no Centro Cultural São Paulo, numa passagem por São Paulo, em dois de dezembro. Então Luiz Fernando Natel, o amigo que avisara sobre o L7 no meio do ano, lembrou-me a respeito. Vi que tinha o suficiente para ir, o preço era razoável, não havia aumentado. Bora.
Peguei o metrô para o Butantã e eu e outro sujeito também meio perdido na rua seguimos umas meninas tatuadas e de preto pelo caminho. Só que elas também estavam perdidas, mas sem problemas, todos nós tínhamos indicações de amigos. Não deu outra, logo achamos o local, nos despedimos e desejamos bom show um para os outros. O Luiz Fernando chegaria mais tarde. Por isso, cheguei no meio do show da primeira banda de abertura, o Deb and the Mentals, banda brasileira da nova geração. Deu para ver que é divertido, punk n’roll, ou seja, tem algumas influências de hard rock.
Depois de certa demora os Pin Ups subiram ao palco. É o grupo que mais vi ao vivo nos anos noventa, ao lado do Raimundos e do Autoboneco. Sou muito fã deles, mas não quis ir ao show da volta, temeroso de me decepcionar. Agora, no entanto, paguei para ver, queira ou não. Foi lindo. Não reconheci as primeiras músicas, o som estava ruim, mas era indie rock dos mais barulhentos e o vocal da baixista Alê Briganti ainda era reconhecível. Fizeram um show curto e grosso, com vários clássicos da minha juventude: Guts, Witkin, Going On e outras tantas. Não bastasse isto, encerraram com uma excelente cover de You Made Me Realize, do My Bloody Valentine, pioneiros do shoegaze, o que me surpreendeu positivamente, pois sempre achei que tinham exercido influência neles. Eu estava certo.
O Soul Asylum foi um bônus. Não estavam anunciados, foram encaixados de última hora, devido ao cancelamento de um festival em Sorocaba no qual tocariam. São de Minneapolis e fizeram bastante sucesso na época do grunge. Logo na primeira música, 99%, notei como o som estava mais nítido e mais limpo, refletindo a sonoridade deles, muito mais melódica do que seus pares. Hits como Runaway Train e Somebody to Shove, baladas, canções que lembram seus conterrâneos hardcore, Hüsker Dü e Replacements, muito peso no final do longo show: teve de tudo e muito bem executado pelos novos músicos.
Esperava que o show do L7 fosse bom, mas excedeu minhas expectativas. Até porque tive mais contato com o Pin Ups ao longo dos anos, por serem brasileiros, achei que os paulistanos fariam minha apresentação favorita da noite. Mas L7 ao vivo foi maravilhoso demais; mesmo sem ouvir boa parte das músicas há muito tempo, elas estão entranhadas no meu DNA. O show começou com o som muito baixo, sujo e cavernoso, mas foi melhorando com o tempo. Reconheci cada música, lembrei-me de boa parte das letras, então pude cantar junto desde a abertura, com Deathwish. Veio Andres, Everglade e Monster, um clássico atrás do outro na sequência. Comecei a derreter, estava lotado e muito quente. Mas fiquei firme, pogando, mesmo estando sozinho, e cantando junto. Não temia estar só no meio da roda de pogo, afinal é uma banda feminista, que esteve à frente do movimento Rock for Choice, a favor da legalização do aborto, nos anos noventa. Sabia que não estava entre os fascistas ignorantes que brotaram no meio do metal e classic rock.
Em meio a vários outros sons que marcaram época, como Fuel My Fire, Shove, (Right on) Thru e Shitlist, tocaram as novas canções: I Came Back to Bitch e Dispatch from Mar-A-Lago. Antes dessa última, a guitarrista e vocalista Suzi Gardner explicou que gostariam que as pessoas irrompessem pela propriedade de Donald Trump mencionada no título e dessem cabo de suas ignomínias. Outra fala marcante no meio do show foi quando a outra guitarrista e vocalista, Donita Sparks, afirmou que estava com muito tesão e que treparia com qualquer coisa, o que levou muitos a gargalhadas.
O bis veio rápido, com a versão de American Society, da obscura, mas pioneira, agremiação punk Eddie and the Subtitles. Logo depois, pediram para que as pessoas tivessem cuidado com quem estava próximo ao palco, quando começasse o empurra-empurra. Soube que viria o grande hit delas, Pretend We´re Dead, e voilá, veio mesmo. Mesmo estando meio atrás no meio da muvuca, consegui ver a baterista Dee Plakas fazer os backing vocals. Por fim, mandavam ver Fast and Frightening, que é minha música favorita delas. Foi um privilégio. Ao fim da noite, consegui encontrar Luiz Fernando e sua namorada Camila, além de uma amiga de Bauru que não via há uns 15 anos, a Marília, e que estava a mesma, como se o tempo não tivesse passado. Foi essa a sensação que a noite me proporcionou, aliás.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Esta crônica foi publicada em 29 de dezembro de 2018 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). Ocupou quase toda a página oito e mesmo assim tive que editá-la. Algum dia publico a versão integral do texto.


Capa do single Pretend We´re Dead (1992), do L7. É das capas e tatuagens mais bacanas que já vi. A imagem desta versão em cassete foi retirada do site Discogs, creio que é uma imagem escaneada que serve para efeitos de divulgação e provavelmente não infringe nenhum direito autoral sua utilização.