Friday, December 28, 2018

O Monstro em cima da cama

O beijo assusta. Desejava-o, mas não tem sentido. Após todos esses anos querendo-a em silêncio sofrido tinha certeza de que ela havia percebido seus olhares platônicos e os desprezado olimpicamente. Retribui-o por instinto.
Ela então pergunta se ele trouxe o vinil do Joy Division que ficou de ouvirem juntos. Isso aconteceu em um sonho. Que ele não contou para ninguém. Nem sequer tem CDs do Joy Division. “Não, esqueci”. Sorri desconcertado. “Você está tão pálido”. Sonha com ela há três dias. Teve poluções noturnas, o que não acontecia desde a adolescência. Parecia real. É real, agora, mas não parece.
Ao longo do dia procura amigos com quem sonhou. Seus sonhos têm se passado somente à noite, não há mais sol no seu mundo onírico, que se tornou realista e minucioso, e neles tem a autoconfiança que sempre lhe faltou. Todos se lembram das conversas e riem de novo das piadas que contou.
À noite ruma lépido para casa. Agacha-se e olha embaixo da cama. Seu duplo o encara, arrasta-se para o meio do quarto, levanta-se e sorri com desdém. É ligeiramente mais alto, pois não é curvado. Bronzeado, mais forte. Faz sentido. Ele encolhe-se debaixo da cama para de lá nunca mais sair. Agora tem a vida com a qual sempre sonhou.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Escrevi o pequeno conto (ou miniconto, fica ao gosto do freguês) O Monstro em cima da cama para um concurso e o publiquei aqui no blog há mais de oito anos, em nove de junho de 2010. O revisei e reescrevi de leve para publicação na edição do Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) de 22 de dezembro de 2018. Disse na postagem original, na qual dou mais detalhes sobre o concurso, que pretendia ampliar o conto ao reescrevê-lo, mas relendo-o apenas fiz algumas alterações e não senti ganas de mexer na história, já havia contado o que queria. Uma curiosidade sobre tecnologia: no original falava em DVD, que caiu em desuso, e para publicá-lo num jornal em 2018 e não parecer datado tive que resgatar o bom e velho vinil. 


O conto O Monstro em cima da cama publicado no pé da página oito da edição 6944 do Jornal da Cidade. 

Thursday, December 06, 2018

Farsa

O livro repousa na estante.
Na verdade, jaz na estante. Está autografado por Augusto de Campos. Em nome do casal, não apenas dela.
Ele sempre se lembra das acusações de que não lia de fato, de que apenas frequentava redes sociais. Então lhe ocorreu que havia o livro, uma preciosidade, o qual ela jamais mencionava, e que se recusou a devolver.
Encontram-se no bate-papo, pois estavam online. Só assim mesmo.
Ele lembra-a sobre a obra. De fato, ela jamais havia lido-a. Confundiu Haroldo com Augusto - por mais que tivesse veleidades literárias, ela continuava a embaralhar nomes e conceitos, pois havia apenas lia na Wikipédia a respeito da maioria dos autores que citava, mas não havia enfrentado-os de fato. De certa forma, os dois se assemelhavam quanto à parca leitura de livros. Ela sequer se lembrava que o tinha.
O uso dos verbos no passado é correto neste caso.
O livro, novo, nunca lido, está criando poeira em um sebo.


Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Este conto foi publicado no dia primeiro de dezembro de 2018 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). Publiquei-o originalmente aqui no blog em 11 de janeiro de 2015. Estava em São Paulo na semana passada, meu pai havia sido internado com uma crise hipertensiva e fiquei sem tempo para escrever um novo texto ou reescrever alguma crônica ou conto antigos. Portanto, saiu no jornal tal qual a publicação original. A versão acima é diferente da original e da que saiu no jornal; a reescrevi, alterando uns poucos detalhes e principalmente deixando o texto menos impreciso.
O pequeno conto no canto esquerdo inferior da página oito da edição 6929 do Jornal da Cidade, numa versão idêntica à de 2015, embora tenha saído na versão impressa do jornal agora em 2018.

Tuesday, November 20, 2018

Luta Amada

Um retrato na cômoda emoldura uma presença incorpórea. Há quem se sinta ofendido ao entrar na sala. Tantas décadas depois, ainda insistindo nisso. O pai morreu desgostoso, sem concordar com a ideologia do filho até o fim, sem concordar com a sua ausência espontânea e, sobretudo, sem concordar com sua ausência forçada. Jamais admitida por quem a provocou. Todos sabem quem foi, às vezes o responsável aparece no noticiário, com a cara de quem dormiu gostoso ao roubar as horas de sono alheias. Hoje foi a vez da mãe também se ir, sem nunca saber o que aconteceu com aquele filho idealista do qual ela se orgulhava, mesmo sem compreender o que exatamente todos aqueles discursos inflamados diziam. Até o último dia pressionou para que a verdade viesse à tona. O retrato será enterrado com ela.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Este conto foi publicado aqui no blog em 28 de março de 2012, como parte da blogagem coletiva #DesarquivandoBr. Vi meu amigo Tadeu Rodrigues, romancista e poeta, falando a respeito no Twitter e quis participar, pois o tema dos desaparecidos políticos me comove. Achei por bem republicá-lo no Jornal da Cidade agora, devido ao recrudescimento da extrema-direita no país, para que um assunto desta gravidade jamais seja esquecido ou minimizado. O negacionismo, seja do Holocausto, seja de qualquer outra mortandade, nunca pode ser tolerado. Revisei levemente o breve conto e o jornal o publicou no feriado do dia 15 de novembro de 2018. 
O título é Luta Amada mesmo e não Armada, pois refere-se aos familiares dos desaparecidos e sua busca pelos seus entes queridos, e não à luta armada - nem todas as pessoas assassinadas pela ditadura, desaparecidas ou não, pegaram em armas para resistir ao golpe militar. Recomendo a leitura do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964, publicado nos anos noventa pelas imprensas oficiais de Pernambuco e São Paulo, para se saber mais sobre como foi a vida dessas pessoas. Há muito mais obras a respeito. Livros como Olho por Olho (os livros secretos da ditadura), de Lucas Figueiredo, e Mulheres que Foram à Luta Armada, de Luiz Maklouf Carvalho, relatam igualmente crimes tanto da extrema-direita, a maioria usando o aparato estatal, como da extrema-esquerda, mas os pesquisam e os contextualizam; qualquer comentário aqui que use a teoria dos dois demônios (a de que os dois lados eram iguais) será sumariamente apagado, pois também é intolerável. 
Além disso, como costuma constar das peças do Ministério Público Federal contra torturadores e assassinos dos aparelhos repressivos, os crimes da ditadura civil-militar foram "cometidos no contexto de um ataque sistemático e generalizado contra a população civil brasileira, promovido com o objetivo de assegurar a manutenção do poder usurpado em 1964, por meio da violência". A repressão da ditadura enterrou seus mortos, nem todo familiar dos esquerdistas teve esse direito, e relembro: parte dos mortos e desaparecidos estava envolvida na resistência pacífica à tirania de então, não tendo cometido qualquer crime.
 
Luta Amada na versão impressa do Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG), ao fim da página 10 e com o título errôneo.

Wednesday, November 07, 2018

Sobre o que falávamos mesmo?

Bolinha de gude.
Ele ainda se apegava a essa lembrança, o seu Rosebud. Ela, alheia ao desconhecido ao lado, lia mensagens no celular e ria de memes. Lembrou-se de quando leu uma matéria a respeito de memética, sobre como era um assunto sério e lhe pareceu tão interessante e cheio de possibilidades. Agora era só uma piada, como a vida dela, obsoleta.
No ponto de ônibus havia mais seis ou sete pessoas, espremidas, aguardando enquanto a chuva apertava. A garganta dele apertou também, lembrando-se do futuro que acalentava como se fosse um bebê sorridente, que lhe balbuciava promessas em palavras ainda mal articuladas, mas plenamente reconhecíveis.

Quando o ônibus chegou, esbarraram-se. Ele ofereceu-lhe o caminho com a mão; ela agradeceu com um leve aceno de cabeça, desacompanhado de qualquer esboço de sorriso. A meia dúzia esperando atrás e o motorista jamais saberão que eles namoraram por um ano e meio. A história já os apagou e, portanto, não abarca mais a estória deles, essa palavra arcaica, da qual ela jamais gostou e na qual ele ainda se segura como um destroço à beira do redemoinho do presente, esperando ser tragado para o passado abissal como um anacronismo do qual alguém ainda se lembre com algum saudosismo.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor
Este conto foi publicado no fim da página dez no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em dois de novembro de 2018, abaixo de artigos do professor Hugo Pontes sobre o aniversário da cidade e do músico Aquiles Rique Reis (do MPB-4) sobre o sambista Monarco. Já havia publicado-o aqui no blog em 15 de março de 2015. Não o reescrevi, ao relê-lo não senti a necessidade de nenhuma revisão, tudo o que queria expressar sobre um relacionamento intenso que resulta em nada mais do que em ressentimento está dito. 

Tuesday, October 30, 2018

Os Meninos do Brasil

O seu cachorrinho acompanha-a, quietinho. Ele empurra uma bicicleta. Nunca ouviu I Wanna Be Your Dog.
Vegano, pose de bonzinho. O passado de playba maquiado com visual riponga, coque samurai e muita aula de yoga. Espancava um moleque na escola que gostava de Shelter. Fazia bullying com quem ele teoricamente, imaginaria quem o visse vestido daquela forma, pensaria de forma semelhante anos depois. O garoto humilhado, hoje hare krishna, sequer reconheceu o seu antigo antagonista, que caminhava de cabeça baixa atrás da companheira. Sorte dele. O fascista zen, como diria Jello Biafra, sorriu cinicamente, encarando o chão com saudades de pisar em alguém. Muitas saudades.
Chegaram em casa e puseram um vinil da Janis Joplin. Fumaram um banza, brisaram por uma meia hora e treparam. Logo depois ele vestiu uma camisa da seleção e correu para a manifestação com um cartaz, belamente desenhado, pedindo mais repressão. Sua companheira ficou estupefata. Lembrou-se do velho ditado que tanto ouvia do pai, um velho punk – never trust a hippie.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Os Meninos do Brasil foi publicado no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) no dia 27 de outubro de 2018. Como foi no final de semana do segundo turno das eleições presidenciais, veio a calhar aproveitar meu conto 108, publicado aqui em 27 de abril de 2015, e adaptá-lo para a ocasião, afinal ele já era originalmente um conto politizado. Mudei o título, que antes homenageava uma banda de hardcore straight edge, inspirado pela audição da música The Boys From Brazil, do grupo pós punk The Pop Group. O nome da música já é referência a outra obra, um filme inspirado num livro de mesmo nome, e quem o(s) conhece perceberá o porquê da citação. 


Wednesday, October 24, 2018

Metal Perfumado

Jairo e Juliano chegam à casa de shows, na verdade mais conhecida por abrigar arrasta-pés na cidade interiorana, cujo calor derrete quem está à beira da piscina e ainda mais os dois e todos os que estão na porta do lugar, um deserto de asfalto e concreto. Ambos vestem preto e logo identificam seus pares.
- Aqui que é o Tijuana Bar? Não tem placa...
- Opa! Vamô quebra tudo com uns déti metal com nóis.
Apresentações feitas, simpatia imediata.
- Então, nós somos da banda de fora.
- Qual banda? Eu sou um dos organizadores. Não lembro de banda de fora...
- Do Virgin's Immolation.
- Ah é! Mal aí, já virei um tubão. Cadê os equipos d’ôces?
- Vamô lá pegar.
Pardal não perde as piadas no caminho. Sugere que Jairo e Juliano seria um bom nome para uma dupla caipira e que não era para eles tocarem viola no show não. Os dois riem, mas ficam putos por dentro.
- Ô Fabinho, abre o portão aí pros meninos do Virge Amolação montar o palco – brinca Pardal. É o jeito dele, pensam.
A cena parece um hospital de campanha. Vários desfalecidos deitados no chão, vomitados. E o show nem havia começado.
- Falaí, seus poser!
Era Zé, o único contato de Jairo e Juliano na cidade.
- Cê que é um comedor de sucrilhos!; vociferam de volta, em uníssono.
Sentindo-se mais à vontade, os dois enchem-se de expectativa. A bateria eletrônica é plugada e devidamente programada. Eles não têm mais paciência com baterista; está todo mundo velho, os amigos não dão mais conta de tocarem rápido.
Sobem ao palco. Serão os primeiros a tocar, para poderem pegar estrada e voltar cedo. Todo mundo trabalha na segunda de manhãzinha. Antes do primeiro acorde, chega a polícia. Já era.
Estava cheio de adolescentes bêbados e o comissariado não perdoou. O comissário ficou horrorizado. Disse que nunca havia entrado num lugar que cheirasse tão mal. Com o calor, o cheiro de cecê vazava pelas janelas. Jairo e Juliano venderam uma demo em fita, como antigamente. Coisa do demo. Voltam felizes, apesar de tudo; missão cumprida.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor
Foto que tirei do Infects Humanity no parque Vitória Régia, em Bauru/SP, em meados de 1999. Minha inspiração para este conto foram mais os shows que vi na primeira década do século 21, mas também não me esqueço do calor do interior paulista nestas ocasiões.

Este conto foi publicado no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) no dia 20 de outubro de 2018. É uma versão levemente reescrita do meu conto Os Verdadeiros Guerreiros da Verdade do Verdadeiro Metal, publicado aqui no blog em 26 de abril de 2015. O novo título é uma homenagem ao grupo pós punk Chrome, que tem uma música chamada Perfumed Metal, que nada tem a ver com heavy metal. O conto é inspirado em memórias de shows underground de metal que vi em Varginha, Mogi Mirim, Bauru e em especial no primeiro endereço do bar Califórnia e no Bailão do Toninho Norato (acho que era este o nome), ambos no centro de Poços de Caldas, ao longo da década passada.

Tuesday, October 16, 2018

Sindicato dos Sonhos

O jornal é de ontem, mas o texto não é mais o mesmo. Havia sido alterado. Como? Não havia jeito, é papel, não há como aparecer um “atualizado às 18:48”, por exemplo. No entanto, o acróstico desabonador não consta mais na matéria.
É que as letras na verdade são pessoas. Elas haviam sido substituídas por jornalistas mais novos, contratados como PJs, pois todos os sindicalizados foram mandados embora. Entretanto, os jornalistas demitidos entram no texto, diante dos meus olhos, e empurram para fora seus substitutos. Não obstante, o acróstico ainda está falho. Resta uma letra trocada. Eu a localizo. É uma menininha de vestido verde, não um adulto.
Rumo ao encontro dela, dentro da página. Ao contrário dos jornalistas mais novos, que saíram de seus postos, ela permanece no lugar. O início do parágrafo é um pequeno morro; ao me aproximar, noto que ela se torna translúcida. Espectral. Entro dentro dela. Uma voz doce ecoa na minha mente:

- Foi você que me possuiu. Você é o fantasma.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Sindicato dos Sonhos saiu no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) no dia 12 de outubro de 2018. É uma versão levemente reescrita do meu conto Dream Syndicate, publicado aqui no blog em 19 de julho de 2015. À época havia lido sobre um jornalista que ao sair da Folha de S. Paulo escreveu num obituário o acróstico "Chupa Folha". Acabei sonhando com isso, mas num contexto etéreo e confuso. Aproveitei  para escrever um pequeno conto surrealista de inspiração onírica. Esta versão que reescrevi agrada-me muito mais. O título é uma homenagem à banda angelena, referência nos anos oitenta quando se falava em paisley underground.   

O conto na versão impressa do jornal.

Friday, September 28, 2018

Mortos Podem Dançar

Os cabelos bem penteados, os óculos escuros e a camisa social contrastam com as mangas puídas dobradas, a bermuda, as meias esgarçadas e as sandálias com as tiras de trás estouradas. Aquele homem pouco envelhecera na última década – já estava alquebrado e com as linhas de expressão acentuadas há pouco mais de dez anos. À época, concedia entrevistas, um pouco mais bem vestido, à frente de um projeto social, já naufragado. Agora, nitidamente, depende de assistência social.
O repórter aposentado sempre o via caminhando desalentado pela rua. Naquela manhã, o extenuado jornalista acordara desanimado com o tempo chuvoso; a depressão lhe invadia e, por mais esforços que envidasse, era difícil superá-la. O súbito aparecimento do sol e o céu azulando-se incutiram-lhe ânimo e resolveu abordar aquele homem, a quem já entrevistara para um jornal hoje tão extinto quanto ambos.
- Bom dia!                            
- Bom dia... – respondeu desconfiado o homem que já não parecia ter como envelhecer mais ainda.
- Eu já entrevistei o senhor algumas vezes, lembra-se? Desculpe-me, não lembro seu nome.
Não houve resposta. O homem desgastado e agastado permaneceu com o olhar receoso. O velho jornalista, por força do hábito, insistiu:
 - Você tinha um projeto social, como que se chamava mesmo...?
- Ora, vá se meter com a sua vida! – retorquiu aquele sujeito que algum dia foi midiático, mas agora parecia querer evanescer. A frase escapuliu com desespero, sem muita agressividade, como que também quisesse pedir desculpas, impressão reforçada pelo olhar implorando piedade.
Seguiram em sentidos opostos, sem olhar para trás, assim como a vida fez com eles.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Este conto (ou crônica, conforme definido pelo jornal, já nem sei mais em qual gênero qualificar) foi publicado no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 22 de setembro de 2018. É uma versão levemente reescrita do meu conto A Tristeza Insinua-se no Dia Ensolarado, publicado aqui no blog em cinco de abril de 2015. Alterei o título para homenagear a banda gótica/pós punk/folk quase inqualificável Dead Can Dance, achei que era cabível e mais adequado. 

A crônica (ou conto, depende de como você quiser indexar) na versão impressa do jornal.
 

Tuesday, September 18, 2018

Tempo Perdido

É das primeiras músicas das quais me lembro de gostar. Ouvi pela primeira vez numa propaganda de TV; será que era para anunciar a participação em algum programa de auditório? Pela frequência com que era exibida, mais possivelmente era para promover alguma das compilações de novos grupos, àquela época chamadas de pau de sebo, ou uma trilha de novela. Era o vídeo de Tempo Perdido, tenho certeza.
Para mim o disco perfeito da Legião Urbana seria o primeiro acrescido de Tempo Perdido ao final. Tirei esta foto no antigo aparelho de som de casa, agora estragado e sem uso, em 2015.


Depois ouvi no rádio. Fiquei encantado. Foi a primeira vez na vida que prestei atenção espontaneamente à letra de uma música. Isso foi por volta de 1986/1987, tinha uns doze anos. Quer dizer, eu sabia a letra de algumas músicas, principalmente porque meus colegas de escola falavam das do RPM, mas o clássico da Legião Urbana foi a primeira que me interessou mesmo, só que não havia com quem a conversar a respeito. Ninguém se importava muito e acho que nem eu.
À época respondi um daqueles cadernos de perguntas que as meninas faziam e davam para você levar para casa – sim, já se stalkeava naquela época, mas era mais explícito – e respondi que minha música favorita era Tempo Perdido, sem titubear. Ela perguntou depois o porquê e eu disse que a letra refletia a vida; não sei por que disse isso. Hoje ela é atriz, às vezes a vejo no teatro. Eu devia estar afetando profundidade, ela deve ter percebido, pois pareceu incrédula. Para mim, no entanto, a resposta foi sincera. Tempo perdido.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor 

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 15 de setembro de 2018. É uma versão ampliada de "Legião Urbana, uma crônica", originalmente publicada aqui no blog em cinco de setembro de 2016. Em relação ao texto que foi publicado no jornal, fiz apenas uma pequena alteração no segundo parágrafo.



Tuesday, August 14, 2018

Uma Banda Chamada Morte

O anúncio da vinda do Death ao Brasil, em fevereiro de 2016, foi surpreendente. É um mito. Não tem nada a ver com o grupo de death metal dos anos oitenta/noventa, do qual gosto também e que ainda excursiona em homenagem ao fundador Chuck Schuldiner, já morto. O Death em questão foi formado por três irmãos negros em 1971, os Hackney, que lançaram apenas um compacto em 1974. São de Detroit, como as bandas mais importantes do protopunk (ou seja, que já tocavam punk rock antes do estilo existir), o Stooges e o MC 5. Foram redescobertos já no século XXI e o disco com todas as gravações de 1974 foi lançado em 2009.
Como no caso do homônimo, o Death protopunk perdeu para o câncer o guitarrista e mentor, David Hackney, e excursiona em homenagem a ele, mas com um diferencial: fazem músicas novas, pois seguiram tocando rock cristão e depois reggae sob outros nomes ao longo das décadas seguintes ao fim em 1977. Para isto, recrutaram seu guitarrista Bobbie Duncan, da banda de reggae, o Lambsbread. Um grupo fantástico; as gravações de 1974 lembram o que o Bad Brains, a banda fundamental para o surgimento do hardcore, também formada por músicos negros, viria a fazer cinco anos depois. Já vi o Bad Brains ao vivo, não podia perder este show.
Meus problemas começaram aí: eles fariam três apresentações; uma em Curitiba, de graça, mas longe demais, não teria onde ficar, e duas em São Paulo, no Sesc Belenzinho. Ingresso barato, mas o duro é que esgotaram assim que começaram a ser vendidos na web. Tentei comprar horas depois do início da venda, quando já estavam esgotados. Poderia pegar pessoalmente no dia seguinte, mas moro no sul de Minas Gerais. Solução: pedi para um amigo de Sampa, o Bruno Karnov, falecido há um mês e para a qual escrevi uma crônica em homenagem há duas semanas, para pegar o ingresso para nós.
Dá-lhe aventura: macaco velho, ele falou para eu relaxar e NÃO FOI PEGAR os ingressos. Tinha um jeito melhor. Era mesmo, mas meio desesperador para quem mora longe. Ele me pôs em contato com o Clodô Paiva, velho chegado dele, que tinha um camarada que pegou uma cota boa de ingressos para quem precisasse. Na quinta, um dia antes do show, conversei com o Clodô, que me pôs em contato com o amigo dele, o Sandro. Se não fosse o Bruno e o Clodô eu nem teria ido ao show e eles infelizmente não foram; o primeiro perdido na noite; o segundo tinha que trabalhar.
Combinei de pegar o ingresso com o Sandro, que nem conhecia, e fiquei de encontrar dois velhos amigos, a Aline de Castro e o Gustavo Cardoso. Peguei o busão às 14:00, atrasadaço. Queria chegar em Sampa bem antes do horário de pico. Todo mundo iria viajar devido ao carnaval, certeza que as marginais estariam entupidas.
Fui combinando com a Aline, o Cardoso e o Sandro ao longo da viagem usando o celular com parcimônia, pois eu não levei carregador. Ela já tinha chegado a São Paulo e o meu ônibus indo devagariiiinho. Cheguei às 19:00, aproximadamente. Surpresa: até que as marginais não estavam tão zuadas. Corri para o metrô, satisfeito. O Sandro me disse que estaria de regata e bermuda vinho, vou em direção à bilheteria e voilá, vejo alguém trajado assim. Era ele mesmo, havia acabado de chegar também, com nossos ingressos. Era para eu ver o show, pus na cabeça que ia ver. E vi.
Estava perto do guitarrista Bobbie, daí decidi ir para o outro lado quando o baixista e vocalista Bobby Hackney começou a falar sobre a Motown e Marvin Gaye, de como a soul music era importante para eles, e tocaram algo que não reconheci, mas supus ser o Gaye. Queria ficar perto do Bobby, afinal ele canta aquelas músicas há mais de quarenta anos, e consegui ficar em frente, muito perto dele; pena que não dava para ver direito o batera tocando, o Dannis Hackney. Então sinto um toque no meu ombro, era a Aline, em quem dei um abraço e dois beijos, não um só, de felicidade. O show foi lindo, não tem nem muito o que falar, senão estraga a sensação, indescritível para quem não vi(ve)u.
Findo o show, após o bis, despedi-me de Sandro e seus amigos e fui dar uma volta com a Aline para acharmos o Cardoso. O encontramos. Reparamos que havia uma banquinha na qual os caras do Death estavam dando autógrafos. Ela me ajudou a escolher uma camiseta e comprei um pôster para autografar. Após tirar uma foto com eles resolvi trocar algumas palavras; soltei um “I came from a small town so far away, thanks for the show!” ao que eles responderam com largos sorrisos e um sonoro “Thank you!” que me pareceu genuinamente empolgado.
Foi uma noite quase perfeita, então foi perfeita. Se fosse perfeita, não seria punk. Despedi-me da Aline no metrô e fui dormir na casa do Bruno. Ao pegar o ônibus de volta para casa, no dia seguinte, comprei o Laranja Mecânica do Anthony Burgess e voltei lendo-o sem ouvir música nos fones. Não precisava.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor 

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade, de Poços de Caldas/MG, em 11 de agosto de 2018. É uma versão resumida e com algumas atualizações (infelizmente meu amigo Bruno, citado na crônica, faleceu em julho deste ano) de Death, uma crônica protopunk, publicada aqui em oito de fevereiro de 2016, três dias após o show.  

Death ao vivo em cinco de fevereiro de 2016, no Sesc Belenzinho, em São Paulo. Tirei a foto com celular, ficou com a qualidade razoável, creio.
                   

Tuesday, July 31, 2018

Seção 25

Era uma daquelas típicas frias manhãs poços-caldenses que parecem deslocadas, sob o sol alto no céu alijado de nuvens proporcionando um calor ínfimo; aquela sensação de que morava em Ganimedes ou em Io, longe demais, longe demais. Viver insulado em um grande satélite nos anos oitenta fazia com que me apegasse muito a qualquer artefato de civilizações distantes. Naquela manhã encontrei um numa calçada da rua Berilo, na parte baixa do Marçal Santos, o bairro da minha infância. Era uma fita cassete ordinária, sem a caixa, sem nome do dono ou qualquer indicação do conteúdo, mas nitidamente usada.
Peguei-a e esperei. Ninguém apareceu para reclamá-la. Era paciente, tinha tempo, estava com apenas 14 ou 15 anos. Subi a rua onde morava, a Platina, postei-me estrategicamente numa sombra e observei por muito tempo se alguém passava procurando algo no chão perto de onde estava na Berilo. Nada. Era minha, era justo. Estava curioso, coloquei-a no toca-fitas assim que pude. Tinha muita musiquinha sem graça da acid house então em voga. Era dance music bem genérica mesmo; só reconheci o Konkan, uma banda de tecnopop que lembrava um New Order anêmico.
No meio de tanta batida dançante que não dava vontade de se mexer, no entanto, reluziu um tesouro. Era um som com camadas hipnotizantes de sintetizadores, bateria eletrônica e então surgia aquele baixo gordo, potente, destacado. O vocal, distante, contido, deixa mais dúvidas ainda; tudo parece muito também o New Order, a banda que dominava o rádio à época, mas com a audição entrei no Vale da Estranheza: algo estava fora do lugar, aqueles belos backing vocals femininos não se encaixavam, a energia e a criatividade futurista se assemelhavam, mas estava diante de outro ente. Não era uma cópia, parecia um clone robótico que havia assimilado os maneirismos do original e criado personalidade própria.
Perdi a fita numa mudança, mas nunca me esqueci da longa odisseia daquela música. A batida e os acordes foram entranhados no meu DNA. Não havia informação nenhuma que pudesse recuperar ou acessar que não fosse essa memória. Haveria de ser paciente.
Em 1996, seis ou sete anos depois, o mistério começou a se desvanecer. Quando meu amigo Daniel Ferreira, que cursava Arquitetura na Unesp, pediu para morar na mesma república em que eu e meu irmão morávamos, ele me emprestou várias fitinhas. Finalmente pude ouvir Misfits, músicas da Siouxsie and the Banshees que ainda não conhecia e numa delas uma que fez meu coração bater forte e compassadamente, como um marca-passo remoto: Inspiration, do Section 25, era o nome daquela joia cibernética que havia encontrado numa calçada por onde minha infância havia caminhado antes.
Tudo fez sentido, maravilhosamente. Ainda me lembrava de uma resenha do jornalista e escritor Alex Antunes na extinta revista Bizz, na qual ele explicava que a imprensa oitentista acusava o Section 25 de ser uma mera cópia do Joy Division e do New Order, mas que não era bem assim: nas suas palavras, era antes uma banda-irmã dos dois grupos de Manchester, assumidamente influenciado. O mais incrível de tudo, para mim, é que tiveram o primeiro compacto produzido por Ian Curtis, o vocalista do Joy Division, minha banda favorita, meses antes de seu suicídio. A relação era tão umbilical que me recordo que ao ler a biografia Touching From a Distance, de Deborah Curtis, ri ao descobrir que o poeta e mito Ian Curtis ficou com um olho roxo ao se meter numa briga num show do Section 25, sendo, enfim, um humano como qualquer outro.
A fita que o Daniel gravou deixava clara a ligação: as músicas no começo soam como o Joy Division, lúgubres, etéreas, intocáveis, e vão paulatinamente tornando-se mais tecnopop e dançantes, como o New Order. O advento da internet, no entanto, fez-me descobrir que isso foi outro mito que carreguei comigo por muitos anos. Ainda que o single e as primeiras músicas do Section 25 atravessem sendas pouco iluminadas, as músicas que mais se assemelham ao Joy Division, como Beneath the Blade, estão no disco mais pop. Meu xará gravou tudo fora de ordem numa coletânea muito pessoal naquela fita; gostaria de retomar o contato com ele, possivelmente este era o intuito dele, ouvir com a sensação de uma evolução sonora que na prática não ocorreu, pois o grupo é muito confuso. Aliás, existe até hoje, com a filha dos vocalistas, já falecidos, à frente dos músicos, quase como um Demônios da Garoa do Velho Mundo, mal comparando. E Looking from a Hilltop é que foi o grande hit deles; no Youtube, descobri que Inspiration foi um sucesso nas casas noturnas góticas da noite paulistana nos anos 1980 e só lá. Algum DJ deve ter gostado dela mais do que outras e por algum motivo foi parar naquela fitinha esquecida na rua e que me inspira ternas recordações há anos.  
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Seção 25 foi publicada em 28 de julho de 2018 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). Escrevi a crônica no dia anterior e o título, evidentemente, alude ao grupo Section 25.
 
Capa do single Charnel Ground/Haunted, lançado na Bélgica, em 1980, pela Factory Benelux. Foto de Jim Barker, via licença Creative Commons.



Wednesday, July 04, 2018

Grandes Garotos

Lembro ternamente de um caminhãozinho que ganhei quando era criança, azul metálico com a caçamba laranja. Não existem caminhões assim, por isso gostava tanto dele, creio. A caçamba era funcional, gostava de carregar pequenos objetos nela e descarregá-la.
Quando minha mãe passou a permitir que brincássemos na rua, tive a ideia de fazer uma fazendinha. Eu e meu irmão pegamos uma casinha de brinquedo, pegamos pedacinhos de grama, palitos, fósforos e fizemos uma plantação diversa em torno da sede. Já havia aprendido na escola que monoculturas fazem mal para o solo. Colhíamos a safra e embarcávamos no caminhão até um depósito imaginário. Tudo isso na parte de terra de um gramado, hoje cimentado, no predinho em que morávamos na rua Platina.
Não era o quintal do prédio. Estávamos expostos. Não demorou tanto e chegou um moleque da rua de cima querendo intimar. À toa, só porque era maior e riquinho mal-educado. Parou sua bicicleta ao nosso lado e passou a tirar a sarro. “Estão brincando de casinha igual menininha”, ficou repetindo, com sorrisinho de mofa.  Expliquei que não era de casinha, era de fazendinha. “É a mesma coisa, brincadeira de menina”, continuou com a babaquice, nos desestimulando. Obviamente era uma brincadeira diferente; hoje não me ofenderia, pena que não brinco mais, para poder bater o pé.
Os papéis de gênero são bem cristalizados nas cabeças das crianças pelos pais. Mesmo se fosse de casinha, e daí? Não afeta em nada a masculinidade, como poderia? Mas o pentelho estava lá, há mais de trinta anos, nos aporrinhando gratuitamente. Do outro da rua, para nossa sorte, morava um moleque ainda mais velho, o Neto, que já devia ter uns treze, quatorze, quinze anos. Foi um Deus Ex Machina naquele dia para nós. Enquanto outros moleques se aglomeravam para tomar parte do escárnio e já estávamos a ponto de recolher nossos brinquedos, ele atravessou a rua para ver o que estava pegando. Quando ele tomou conhecimento do que acontecia, se virou para o riquinho e fulminou: “Do que você está falando, seu idiota? É maior fera a fazendinha deles, não é brincadeira de casinha”. Nunca me esqueci disto. E fez o riquinho descer da bicicleta e brincar conosco. Não gostei muito dele participar da brincadeira, mas gostei demais dele calar a boca, humilhado. Foi genial. Vai ver que é por isso, também, que hoje em dia ele é uma pessoa melhor. O Neto se mudou pouco depois, nunca soube o nome dele para agradecê-lo.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 30 de junho de 2018. A escrevi de supetão no dia anterior e já a enviei. Traz muitas reminiscências queridas da infância e uma reflexão à luz do atual debate dos papéis de gêneros na infância, inspirado numa palestra da minha amiga Andréa Benetti a respeito da Judith Butler. O título é uma homenagem ao Big Boys, uma estupenda e inclassificável banda de skate rock, que transitava com desenvoltura e extrema criatividade pelo punk, funk, hardcore e pós punk. Não bastasse isto, surgiram no ultraconservador Texas, no fim dos anos setenta, tendo como vocalista uma drag queen skatista e gordo, Randy "Biscuits" Turner, que sofreu homofobia na cena machona do hardcore dos anos oitenta. Um grupo sui generis, predecessor do Red Hot Chilli Peppers e do Suicidal Tendencies, que tiveram muito mais sucesso.

Um dos símbolos dos Big Boys. Muita informação sobre a banda pode ser encontrada no site http://www.soundonsound.org/ - no qual peguei esta imagem.