Monday, February 08, 2016

Death, uma crônica protopunk

Foi uma viagem atribulada.
O anúncio do show do Death no Brasil foi surpreendente. Mais do que uma banda, é uma lenda. Não tem nada a ver com a banda de death metal dos anos oitenta/noventa, da qual gosto também e que ainda excursiona em homenagem ao fundador Chuck Schuldiner, já morto. O Death em questão foi formado por três irmãos negros em 1971, os Hackney, e lançaram apenas um compacto em 1974. Como as bandas mais importantes do protopunk (ou seja, que já tocavam punk rock antes do estilo existir), o Stooges e o MC 5, eles são de Detroit. Foram redescobertos já no século XXI e o disco com todas as gravações de 1974 foi lançado em 2009. Como no caso do Death do metal, o Death protopunk perdeu para o câncer o guitarrista e mentor, David Hackney, e excursiona em homenagem a ele, mas com um diferencial: como eles seguiram tocando rock cristão e depois reggae ao longo das décadas seguintes ao fim em 1977, chamaram o guitarrista Bobbie Duncan, da banda de reggae, o Lambsbread, e continuam fazendo músicas novas. Uma banda absolutamente fantástica; as gravações de 1974 lembram o que o Bad Brains, a banda fundamental para o surgimento do hardcore, também formada integralmente por negros, veio a fazer cinco anos depois. Já vi o Bad Brains ao vivo, não podia perder este show.
Meus problemas começaram aí: eles fariam três shows; um em Curitiba, de graça, mas longe demais e eu não teria onde ficar e dois em São Paulo, no Sesc Belenzinho. Ingresso barato, mas o duro é que esgotaram assim que começaram a ser vendidos na web. E eu só lembrei disso horas depois do início da venda, quando já estavam esgotados. Poderia pegar pessoalmente no dia seguinte, mas eu moro no sul de Minas Gerais. Solução: pedi para um amigo de Sampa, o Bruno Karnov, que também ia, para pegar o ingresso para mim.
A aventura começa aí: malandro velho, ele falou para eu relaxar e NÃO FOI PEGAR os ingressos. Tinha um jeito melhor. Era mesmo, mas meio desesperador para quem mora longe. Ele me pôs em contato com o Clodô Paiva, que conheci há um ano, num show de punk rock, que tinha um camarada que pegou uma cota boa de ingressos para quem precisasse. Na quinta, um dia antes do show, conversei com o Clodô, que me pôs em contato com o amigo dele, o Sandro, que trampa numa unidade do Sesc do litoral. Se não fosse o Bruno e o Clodô eu nem teria ido ao show e eles infelizmente não foram; o primeiro atarefado com a tríade tradicional do rock, mas sem o rock; o segundo foi trabalhar naquela noite.
Enrolado com o trampo e problemas de saúde do meu pai, não poderia ir na quinta. Matei serviço sexta à tarde, mas não me organizei bem para ir ao show: minha mãe passou mal sexta de manhã e a levei no hospital. Arrumei uma mochila mais ou menos, combinei mais ou menos para pegar o ingresso com o Sandro, minha mãe melhorou, minha irmã ficou com ela. Combinei de encontrar dois velhos amigos, a Aline e o Cardoso, e o Bruno falou para eu dormir na casa dele, mas resolvi voltar de madrugada mesmo, assim que acabasse o show. Peguei o busão às 14:00, atrasadaço. Queria chegar em Sampa bem antes do horário de pico. Todo mundo iria viajar devido ao carnaval, certeza que as marginais estariam entupidas.
Fui combinando com a Aline, o Cardoso e o Sandro ao longo da viagem usando o celular com parcimônia, pois eu não levei carregador. Ela já tinha chegado em SP e o meu ônibus indo devagariiiiiinho. Chegando em SP às 19:00, aproximadamente, surpresa: até que as marginais não estavam tão zuadas. Às 19:30, mais ou menos, eu pensei: é para eu ver esse show sim. Eu sempre compro bilhetes de metrô a mais para quando voltar já os ter no bolso. Valeu o show: a fila para comprar bilhetes ou encher o cartão único era quilométrica, nunca a vi tão grande. Pensei que só haveria gente saindo de São Paulo, mas tinha muita gente chegando também. Corri no metrô, satisfeito.
Quando desci na Sé, desespero. Sempre soube que a linha vermelha é emperrada, tem gente demais. Mas achei que neste horário, numa sexta de carnaval, estaria de boa. Ledo engano. Estava pior, horrivelmente pior, do que nunca. Os trens passavam lotadíssimos, quase ninguém entrava. Pacientemente aguardei até ser alegremente “ensardinhado” no destino Corinthians-Itaquera. Achei que ia perder o show. E para descer? Pedindo muito “por favor”, pois nunca tinha descido na estação Belém, para alcançar a porta esquerda em meio à turba. Foi fácil achar o Sesc Belenzinho. Tinha olhado um mapa antes, fui meio no rumo, e numa ruazinha segui dois caras negros e uma mina com camisetas de som, pois estava na cara que iam ao show. Iam mesmo, chegamos lá na hora certa, em meio a raios e trovões, bem quando começou a chover.
E agora não sabia bem onde era nada. O Sandro me disse que estaria de regata e bermuda vinho, vou em direção à bilheteria e voilá, vejo alguém trajado assim e pergunto: era ele mesmo, havia acabado de chegar também. Era para eu ver o show, pus na cabeça que ia ver. E vi.
Conheci uma galera na porta, o Bruno havia acabado de avisar que não ia. A Aline estava atrasada. Não tinha o telefone do Cardoso. Entrei e fui comprar um par de brejas e um sanduíche, pois não comia desde o almoço. A banda saiu por uma portinha atrás da lanchonete. Engoli o lanche e voltei para mesa onde a galera do Sandro estava. Quando ele e a namorada, Andréia, chegaram, eu corri para mais perto do palco. Estava perto do guitarrista Bobbie, daí decidi ir para o outro lado quando o baixista e vocalista Bobby começou a falar sobre a Motown e Marvin Gaye, como que era importante para eles, e tocaram algo que não reconheci, mas logo supus ser o Gaye. Queria ficar perto do Bobby, afinal ele canta aquelas músicas há mais de quarenta anos, e consegui ficar em frente, muito perto dele; pena que não dava para ver direito o batera tocando, o Dannys. Então sinto um toque no meu ombro, era a Aline, em quem dei um abraço e dois beijos, não um só, de felicidade. Dava muita vontade ir pogar no meio da roda quando tocavam músicas como You’re a Prisoner, mas eu tava cheio do lanche e com medo de passar mal. Preferi pogar por ali mesmo, de leve, com ela por perto.
O show foi lindo, não tem nem muito o que falar, senão estraga a sensação, indescritível para quem não vi(ve)u. Tocaram três músicas do “nuovo disco”, como o Bobby dizia ao microfone, uma melhor do que a outra, inclusive uma feita pelo guitarrista Bobbie, o único que não é da formação original – estão em forma, não é uma banda do passado, mas sim muito viva, sem mofo, vicejando deslumbrantemente. Não deixaram de mencionar o irmão David; Bobby apontou para o céu, disse que ele estava lá conosco. Houve mais comunhão até que no show do Bad Brains, uma banda em que a religião também desempenha papel central e que também enveredou pelo reggae. Tocaram Views, Keep on Knocking, Freakin Out, vários clássicos, e pensei, cabotino: essas músicas e eu, tudo o que de mais bacana que apareceu em 1974, estão se encontrando cara a cara agora, em 2016. Para fechar, antes do bis, minha favorita deles, a música quintessencial do que viria a ser o punk: Politicians in my Eyes. Um cara com camiseta da Alternative Tentacles que estava na minha frente foi pogar no meio, quase o segui, mas pensei: pogar, eu pogo sozinho mesmo, parte da graça é essa até.
Findo o show, após o bis, despedi-me de meus novos amigos e fui dar uma volta com a Aline para acharmos o Cardoso e o achamos. Enquanto conversávamos, do lado de fora, uma briga irrompeu atrás de nós e disse para afastarmo-nos. Um sujeito gordinho e outro com boina e suíças trocaram socos e ficaram se rodeando, punhos em riste e guarda baixa; uma cena muito semelhante com a do Gangues de Nova Iorque na qual os personagens McCloin e Amsterdã apostam um quebra-pau. Isso foi interrompido por dois amigos do gordinho, que chegaram chegando e socaram a fuça do cara de boina, que não caiu ao chão em momento algum junto (tanto ele, como a boina), auxiliando o gordinho. Um segurança, sozinho, separou. Não sei quem estava errado ou certo – pra mim, todos estavam errados – mas foi covardia os três socarem o cara. Separados o gordinho gritou “skinhead de merda” ao que o sujeito da boina, que tinha mais jeito de quem gosta de irish punk, respondeu: “skinhead é o caralho!”. Uma garota pôs o sujeito de boina para dentro e foi o fim daquilo.
Depois que o Cardoso se despediu, já íamos embora, quando lembrei que eu ainda tinha uma ficha para duas brejas, já pagas. Benditas cervejas; enquanto eu e a Aline púnhamos a conversa em dia – não conversávamos pessoalmente desde 2008, quando nos encontramos num show do Mudhoney – reparamos que havia uma banquinha na qual os caras do Death estavam dando autógrafos. Já havíamos procurado banquinha de material antes, mas não tínhamos encontrado. Ela me ajudou a escolher uma camiseta e comprei um pôster para autografar – o DVD com o doc sobre a banda já havia se esgotado. Após tirar uma foto com eles resolvi trocar algumas palavras, apesar da promotora que havia tirado a foto estar nos apressando para que a fila andasse logo, pois pensei “Porra, esses caras começaram a tocar quando viram os Beatles em 1965, que privilégio estar aqui na frente deles” e soltei um “I came from a small town so... so far away, thanks for the show!” ao que eles responderam com largos sorrisos e um sonoro “Thank you!” que me pareceu genuinamente empolgado com a minha breve história, a qual estendi aqui.
Uma das melhores fotos que consegui tirar do show. Death, Sesc Belenzinho, São Paulo, 05/02/2016.

Foi uma noite quase perfeita, então foi perfeita – se fosse perfeita, não seria punk. Despedi-me da Aline no metrô e decidi-me por dormir na casa do Bruno. Ao pegar o ônibus de volta para casa, no dia seguinte, comprei o Laranja Mecânica do Anthony Burgess, pois nunca havia lido-o, e voltei lendo-o sem ouvir música. Não precisava.

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