Sunday, August 31, 2008

Estagnação

Emprego novo e colegas das antigas. Não dá para acreditar; é 2008 e mais uma vez retrocedeu nesse esquema arcaico. O escritório é pior do que o outro, fedendo a cigarro. A empresa mudou de nome, mas o modus operandi é o mesmo. Todos são os mesmos. E o ranço é o pior possível. Até os nomes são do tempo do onça: Praxedes, Antenor e Guilhermina. Quem na faixa dos 25 anos se chama assim? Todos trabalhando juntos. Muito bizarro.
É nojento, mas antes fazer isso com alguém do que um escroto aprontar uma dessas com ele, tenta justificar-se sem convicção. Ligam para o caboclo, como eles gostam de dizer ali, e fazem um recrutamento para uma indústria da região. Detalhe: o pessoal tem que pagar adiantado pela entrevista de emprego. Ele e seus colegas ficam uns dois meses por ali e somem. Todos eles são de cidades longínquas.
O engraçado é quem trabalha nisso, com asco de si mesmo, faz de tudo para cair fora. Mas os três viajam pelo Brasil, como empregados do boçal do Antunes (outro nome embolorado) ainda por cima, só fazendo isso. Sem criar raízes. Sem família. A Guilhermina é a pior, ô mulher sem coração. Todos eles tentaram comê-la e não conseguiram, ele não sabia deste detalhe. Eles se odeiam e saem juntos sempre, porque são tão detestáveis que ninguém mais os suporta. Solteiros encaminhando-se para tornarem-se solteirões e solteirona. Talvez ele seja pior dentre todos, não consegue evitar de pensar: foi o único que voltou a se juntar a trupe. E a fila dos otários que entregam seus parcos trocos não pára, não pára.

Sunday, August 24, 2008

Ensaio Utópico

A civilização, tal como a conhecemos, deveria ser extinta. O tráfico – seja de influência, drogas, armas ou imigrantes ilegais – seria extirpado pela raiz. Toda e qualquer autoridade seria ignorada. A propriedade seria abolida e, ato contínuo, os males decorrentes desta instituição cairiam em desuso. Esta idealização da anarquia, no entanto, depende da tomada de consciência de que é necessário que não nos reproduzíssemos. Havendo menos gente, a necessidade de competição cai por terra. Porém, isso não pode ser imposto pela traição da manipulação, ou pelo fio da espada, ou pela rajada da metralhadora. A tomada de consciência deve ser voluntária. A natureza, desgastada pela estupidez humana, não é mais uma cornucópia que nos abastecerá indefinidamente, poupando-nos da labuta, mas sem o estímulo ao consumismo basta reciclar as quinquilharias supérfluas do capitalismo em bens essenciais. Se houver menos gente, elas sobrarão, de qualquer forma. Pena que o trabalho persistirá. Preciso me ocupar com modo de destruí-lo, pois, segundo a máxima do Barão de Itararé, “quem inventou o trabalho não tinha mais o que fazer”.

Outro texto que achei perdido no meio das minhas coisas. Foi feito para uma oficina literária ministrada pela escritora Ana Miranda em maio de 2004. Pelo o que me lembro ela não gostou do texto, pois o devolveu sem fazer nenhum comentário, após elogiar um conto que produzi nesta oficina: Calor Humano, que foi publicado no jornal PapoArte. Tem um link para esse conto neste blog (na verdade o reproduzi em outro blog, o Humano Obsoleto). Já este Ensaio Utópico teve como base a proposta de se produzir um texto tendo como base um ensaio clássico – só que não me lembro qual, pois não estou achando todas as minhas anotações da oficina. Segui o conselho da Ana Miranda e cortei alguns trechos do texto, de qualquer forma. Em parte o texto é nonsense bem-humorado, mas o sentimento pessoal no qual ele é alicerçado é verdadeiro.

Sunday, August 17, 2008

Estrela

A semana caiu quando ela o encontrou. Os compromissos já firmados e os pretendidos encontros ainda pendentes de detalhes a ser resolvidos em sua cabeça espatifaram-se no lodo da vergonha, estampada em um rubor que deu força à expressão maçãs do rosto. O sábado e domingo de reencontro, no entanto, transformaram seus olhos em diques para as lágrimas. Naquela segunda de manhã, pisando leve no chão acarpetado daquele corredor sem janelas, não esperava subir a escada e ainda encontrar o marido àquela hora, olhando-a de cima, afetando uma expressão de superioridade, logo desfeita quando ele passou arqueado por ela, descendo enquanto tenta conter os soluços, sem lhe dirigir o olhar.
Após o luto guardado no apartamento depenado, já no domingo seguinte, não há nada interessante na TV para fazê-la esquecer de que está sozinha. Após passar a manhã toda procurando algo, definitivamente irritada quando com um seriado de luta logo após o almoço, ela decide que a próxima segunda de manhã seria diferente. Começou com um telefonema. O produtor concordou. A Esposa do Carola faria mais um filme. Desta vez seu rosto seria revelado ao público. Mas seus fãs ficaram na dúvida. Ela filmou de roupa, pois estava se achando gorda. Ela havia raspado os pêlos pubianos. Discutia-se se sua famosa pintinha não havia sido reproduzida em outra mulher. E os gemidos não eram mais aqueles. Mas que ela era bonita, ela era. O vídeo e o DVD venderam bem.

Achei um rascunho deste miniconto enquanto fazia uma faxina. Lembro que o escrevi no segundo semestre de 2004, após uma aula particular de alemão com a falecida Ursula Beith. Acrescentei alguns detalhes e o revisei hoje. É um predecessor da premissa do meu miniconto Nilky, embora tenha me esquecido totalmente dele nestes quase quatro anos.

Sunday, August 10, 2008

Discurso de boteco

Sobe na mesa. Bêbado, mas com o discurso decorado: "Senhoras e senhores, preciso da atenção de vocês. Existe algo tão chato quanto neguinho metido a politicamente correto: os malas do politicamente incorreto. Burros, todos eles. Os primeiros não reconhecem uma das maiores qualidades de nós, seres humanos, que é a capacidade de sermos contraditórios. Vejam bem, não estou dizendo que é legal ser hipócrita, apenas estou dizendo que se não fosse assim não suportaríamos a angústia. Não rola, esse mundo é filho da puta demais. Não, peraí, eu vou falar, tô à pampa aqui, fica de boa aí também, é rapidinho. Então, os segundos são metidos a espertinhos e para disfarçar a falta de escrúpulos e seus preconceitos escrotos dão uma de rebeldes, clamando contra a opressão do politicamente correto, enquanto na verdade querem que tudo seja a mesma merda que sempre foi. Fazer o contrário para fazer o que sempre se fez. É muita cretinice. Peraí, já vou descer. São esses estereótipos ambulantes que existem. Esses são os que acham que pensam, mas tem nojo dos livres pensadores como eu. Os outros gostam de patrulhinhas mesmo, é verdade. A palavra viado, por exemplo. Viado pra mim é sinônimo de babaca, quando eu era um ninquinho de gente eu chamava os outros de viado porque era um xingamento legal, nunca ia imaginar que viado era o que é! Podem vaiar. Não é por mal nem por preconceito. Enfim, tem alguma gostosa aía fim de levar um papo legal?" Dito isso, ganha uma latinha de cerveja cheia na testa.

Fiz este miniconto para um fanzine chamado Embrulho de Banana em julho do ano passado. Na real, é uma adaptação de um velho continho meu, pois estava sem tempo naquela época e já tinha feito dois textos especialmente para o Embrulho. Infelizmente os dois outros continhos não puderam ser aproveitados porque estouraram o limite de caracteres. Este conto deveria ter saído na edição número 14, mas pelo que eu sei o projeto ficou em estado de suspensão. O site do zine é
www.embrulhodebanana.org

Sunday, August 03, 2008

Adolescência tardia

Elas confiam em mim. Não deveriam. Fico apreensivo e erro; erros que podem se tornar tragédias. Visualizo. Olhos vazados, ossos quebrados, talvez intestinos perfurados. Mesmo quando erro e o skate zune próximo a elas, no máximo levantam-se, recuam brevemente e logo voltam para perto de mim. Tranco-as dentro de casa, mas não adianta muito, a gatinha mais nova sempre dá um jeito de escapar e ficar ao meu lado. Gosto demais dela. Tanto por preguiça minha em alertá-la novamente para sair de perto de mim, quanto por preguiça dela, que adora ficar refestelada ao sol acompanhando-me, ollies particularmente altos aterrissam estalados ao lado das pernas dela, que não se assusta com o barulho – ela nem sequer se mexe. Solto as cachorras e deixo que todas me façam companhia, bem-vinda ao fim das contas. Vou afastando-as, elas voltam, e assim vai. Deixei de ficar nervoso ao ser observado e torno-me um skatista melhor. O skate, às vezes, escapa e rasga o ar a milímetros delas. As bordas desgastadas estão parecendo facas, sem muito corte, é verdade, mas é o suficiente para talharem a minha pele mesmo quando batem de leve. Nada nunca acontece com elas, na real, mas não é que não possa acontecer. É que não quero sair de perto de casa. JFA, Minor Threat, Brujeria, Poison Idea, Mzuri Sana, Parteum, Paura, Bad Brains, Jesu, Nação Zumbi, Zeni Geva, Toasters, Alice Donut, Citizen Fish, Crass, sempre alto, um atrás do outro, no fim de tarde, sol fraco e bom, tomando suco de laranja e bem acompanhado. Lendo as velhas Chicletes com Banana em um ou outro intervalo em que a respiração fica pesada, rindo do Furio Lonza falando mal de skate. Os moleques do quarteirão ao lado aparecem com skates debaixo do braço e começamos a montar uma rampinha para subirmos no muro de casa. Nenhum namoro nunca foi tão bom assim. É que elas não confiam em mim. Deveriam. Também só as conduziria a fazermos essas fitas da hora. E outras mais ainda, claro. Só que elas teriam que confiar em mim. De qualquer forma, gosto de todas elas. Principalmente das gatinhas e das cadelas. É uma pena que não dá para mantê-las em casa.