Monday, May 31, 2021

Serviço militar obrigatório para mulher? Recuso-me! Denuncio!, de Maria Lacerda de Moura

 Resenha publicada originalmente no Good Reads em dezembro de 2019; reescrevi e ampliei para publicação no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 29 de maio de 2021. O texto foi revisado pela Juliana Gandra e ainda inseri uma informação na última linha, após a publicação no jornal: a data da publicação original do livro.

Ótimo livro sobre objeção de consciência. Maria Lacerda de Moura nasceu em Manhuaçu, Minas Gerais (não que isso importe para uma anarquista), e faria 134 anos neste mês, caso isso fosse possível para a espécie humana. O ponto de vista anárquico e antibélico da autora rejeita tanto o feminismo liberal, que defende que mulheres também integrem as forças armadas, quanto o feminismo comunista de Alexandra Kollontai, que sustenta que as mulheres tomem parte do aparato bélico para que se instale a ditadura do proletariado. Diga-se de passagem, isto não consta no livro, mas Kollontai abandonou os ideais feministas de outubro de 1917 e apoiou o reacionarismo de Stalin, que passou a proibir o aborto e cancelou outras conquistas femininas da revolução. O conteúdo do livro na verdade é a transcrição de uma conferência de Maria Lacerda de Moura, proferida em dezembro de 1932, à semelhança de Por Que Não Sou Cristão, de Bertrand Russell. O feminismo libertário de Maria Lacerda é impiedoso com mulheres que transigem com o militarismo, imputando o fato à educação conformadora que as fazem enxergar-se em papel subalterno a ponto de defender esta função. A argumentação é muito sólida, a despeito do caráter panfletário. O livro inclui dois artigos posteriores para o jornal santista A Tribuna, por isso tem o subtítulo "(e outros escritos...)", mas sem a mesma verve. De qualquer forma, são importantíssimos registros históricos. Espero que algum dia o livro seja reeditado com a nova ortografia e uma revisão mais caprichada. Não há crase alguma, por exemplo, e mistura-se a grafia da época com a então vigente antes da reforma que entrou em vigor em 2009, pois foi editado pela pequena editora anarquista Opúsculo Libertário em 1999 (e publicado originalmente em 1933).

Daniel Souza Luz é professor, escritor, revisor e jornalista




Thursday, May 20, 2021

Partes de um Corpo, vários autores

Autores do livro: Cláudia Tajes, Giovana Madalosso, Antônio Prata, Jarid Arraes, Tati Bernardi, Jessé Andarilho e Mel Duarte.

A TAG é uma editora gaúcha que tem uma proposta interessante: um clube de livros. O leitor assina e recebe em sua casa uma obra da qual não tem conhecimento prévio. Não é um expediente inédito e, basicamente, são livros de outros editoras que recebem um tratamento de luxo, com vários apêndices. Algo parecido com o extinto Círculo do Livro, que funcionou entre as décadas de 1970 e 1990, mas muito mais caprichado. A boa novidade é que passou a publicar títulos inéditos e neste mês as duas obras ofertadas estão sendo acompanhados por obras independentes, ou seja, livros de contos que não são meros apêndices. Um deles é Partes de um Corpo, que veio junto ao livro Gostaria que Você Estivesse Aqui, de Fernando Scheller. Enquanto lia-o, repensei um pouco minha condenação ao uso de redes sociais: por parte delas, descubro e leio vários bons novos escritores, alguns deles presentes neste volume. De qualquer forma, uma coletânea dessas é sempre bem-vinda, pois transcende os esquemas de algoritmos que tentam capt(ur)ar nossos gostos. Aos autores convidados, foi dado o tema que está exposto explicitamente no título, que ganharia relevância numa pandemia que extirpou os corpos de mais de 400.000 brasileiros. Alguns contos, muito alegóricos, acabam por não passar essa urgência da contemporaneidade proposta, no entanto. Não que isso seja ruim, acaba tornando este pequeno painel mais diverso. Recomendo deixar a leitura do prefácio, de Socorro Acioli, por último. Acaba entregando muito dos contos, todos inéditos. Mesmo assim, ela expõe muito de O Nariz, de Gógol, que não li por pouco há uns anos, e O Visconde Partido ao Meio, de Ítalo Calvino, que está há meses na minha pilha de livros a serem lidos. Tendo isso em mente, tentarei dar o menos de spoilers possíveis. Bile n.º 5, de Claudia Tajes, é o primeiro texto e é o mais distópico de todos – na verdade, o único, e era de se esperar outros, dado o contexto. Fortíssimo e surpreendente, contrasta com o conto seguinte, o delicado Melanomas, de Giovana Madalosso. Entretanto, há muitos pontos de contato, pois ambas as tramas partem de tratamentos oncológicos e há muitos termos médicos – dá até para supor que as autoras tiveram que enfrentar a doença nas suas famílias, pois também sou familiarizado com tais vocábulos. São os melhores. Bourbon, de Antonio Prata, é hilário e rápido. Neste caso, tenho que entregar uma parte fundamental da história: é sobre um falo falante. Não é algo de todo original, ao contrário do que parece; O Tagarela, HQ do italiano Paolo Baciliero, publicada no Brasil no início dos anos 1990 na icônica Grandes Aventuras Animal, já contava uma história parecida e até mais engraçada. Antonio, no entanto, insere discussões deste século na história e demonstra ser até mais hábil para o humor do que seu pai, Mario. A narrativa seguinte é Engolir o Amor, de Jarid Arraes. Já havia lido um de seus livros de poesia, Um Buraco com meu Nome, e foi uma grata surpresa ver que também domina muito bem a prosa ao abordar as crendices do catolicismo popular e seus efeitos, muito deletérios, nas relações interpessoais das protagonistas. O conto que se segue, O Dedão de Carolina, é uma grata surpresa: é de Tati Bernardi, a quem costumava ler na Folha de S.Paulo, junto com Antonio Prata, e me fartei de seus textos acerbos e egocêntricos, especialmente os que abordavam maternidade e saíam na Revista da Folha. Ao contrário do que esperava, não há nenhuma birrinha de gente branca de classe média alta no texto, mas sim uma história quase tão cômica quanto ao de seu colega de jornal. Os dois últimos, infelizmente, não são tão bons. Braço Direito, de Jessé Andarilho, é um texto metafórico, uma brincadeira com lugares-comuns; é bem urdido, mas não faz rir. O que, talvez, nem seja a intenção do autor, mas parece-me que sim e que ele não alcançou seu intento. Daquela que te Alimenta as Memórias, de Mel Duarte, ótima poeta – dessas que conheci e leio nas redes –, pesa muito na questão autorreferencial e faz pensar como o incensado modelo de autoficção já está muito desgastado. De qualquer forma, temos aí autores e autoras de formações e públicos muito diferentes reunidos num pequeno livro interessante, que pode apresentá-los para leitores de fora de suas bolhas.

Daniel Souza Luz é professor, jornalista, escritor e revisor


Esta resenha foi publicada originalmente no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 18 de maio de 2021. O texto foi revisado pela Juliana Gandra.  




Monday, May 03, 2021

A Bagagem do Viajante

Conforme lia este livro de crônicas, que foi presente de uma amiga, dei-me conta de que já havia começado a lê-lo nos anos noventa, quando o comprei numa livraria no campus da Unesp em Bauru, esperançoso de ter uma ótima leitura, dada a reputação do Saramago. Mas detestei-o e o deixei de lado. Esqueci-me dele de tal forma que não me lembrava mais do título e, como a reedição tem uma capa muito diferente da edição original que adquiri em 1996, de um lindo roxo brilhoso, não percebi de imediato que passei a ter duas edições diferentes da mesma obra. Lendo-o agora, tendo mais paciência, devido à idade, notei que não é tão ruim assim. Apesar da frustrada primeira experiência, não fiquei com nenhum ranço do Saramago; naquela década mesmo, ainda jovem, li O Conto da Ilha Desconhecida e achei ótimo. Meu problema com este livro é que as crônicas brasileiras são ótimas, uma tradição que provavelmente é inigualável. Saramago, português nobelizado, tem a mão pesada demais para o gênero. Ele diz que tem um tom "doce-amargo" nas suas crônicas; balela, são apenas amargas mesmo e, principalmente, maçantes. Há algumas lindíssimas (A minha subida ao Evereste, As terras, Os portões que dão para onde?) e lê-se o livro na expectativa de que outros momentos sublimes como estes se repitam em meio a tantos queixumes chatíssimos, mas eles não vêm, não vêm. Felizmente, valeu a pena chegar ao fim: a última, A perfeita viagem, é tão inspirada quanto aquelas que me encantaram.


Daniel Souza Luz é jornalista, revisor, escritor e professor. 

Esta resenha foi publicada no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 17 de abril de 2021. Originalmente foi escrita para o Good Reads. Eu a adaptei para sair no jornal, o texto foi revisado pela Juliana Gandra. Esta é a versão final, com mais uma revisão, feita por mim mesmo. É o mesmo texto do jornal, com uma pequena correção para que uma frase ficasse mais compreensível.