Monday, December 28, 2015

Birthday Party

Era meu aniversário de sete anos. Estava na escola. Não via sentido nisso. Era meu aniversário! Devia estar em casa assistindo desenho animado na televisão ou jogando futebol de botão ou futebol de verdade com meu irmão.
A aula parou. Entraram com um bolo de aniversário e chamaram até o meu irmão para vir na minha sala! Não há nada mais encantador para uma criança, ao menos para a que eu era, que fazer uma sala de aula parar para uma festinha. Basta dizer que nunca mais vi isso acontecer.
Foi a minha última festa de aniversário nos anos oitenta. Minha mãe e meu pai só me davam presentes e boa. A próxima festa de aniversário que tive foi uns vinte anos depois. Mas aquela de 1981 me bastou esses anos todos.

Monday, December 21, 2015

Mercenárias

O disco só roda em 45 RPM. Por sorte meu aparelho de som tem esse recurso . Achei num sebo. É de 1987. Estamos em 1989. A banda não existia mais há um ano, descobriria numa revista Bizz, também comprada num sebo, uns dois ou três anos depois. Estava vivendo intensamente algo que já havia acabado. Os anos oitenta tinham muito disso, o apartamento onde vivia era uma caverna de Platão, nos quais as sombras dançando ao fundo não eram sombrias, mas sim tão fascinantes quanto um teatro de sombras é para uma criança – a qual eu ainda era ali, com 14/15 anos.

Uns dois anos depois mais ou menos, em 1991 ou 1992, minha irmã e suas amigas descobrem o disco, decoram umas letras, cantam junto. Elas adoraram, era uma banda só de mulheres, novidade para elas, com a qual se identificaram. Elas tinham 10 ou 11 anos. Eu fiquei enciumado. Era a MINHA banda. Eu devia ter incentivado-as a montarem uma banda influenciada pelas Mercenárias. Faltou empatia. A empatia que elas tiveram.

Monday, December 14, 2015

Wire


Invasão de propriedade. Nunca vimos como maldade ou crime. Criança não conhece essas fronteiras. Sabem que elas existem, mas se não estragamos nada, qual o problema? Nos anos oitenta, com o fim da ditadura, tudo tinha cheiro de liberdade.
Uma das melhores lembranças que tenho da época é pular dentro do pátio de uma loja de pneus e artigos automotivos que ficava fechada do sábado à tarde em diante e ficarmos andando de skate no cimento liso daquele lugar tranquilo, que até hoje permanece exatamente igual, pois, claro, nunca estragamos nada, não queríamos ser descobertos e repreendidos – ainda tenho vontade de pular lá dentro. No ano passado cheguei a andar no pátio aberto na frente, que também é grande e propicia bons rolês, mas não tem tanta graça quanto pular aquele muro.
No mesmo quarteirão dessa loja, o de baixo da minha casa, tinha uma fábrica de chocolates na qual ia, quando criança, com a minha mãe; lá, um funcionário sempre me dava bombons! Não bastasse essa boa memória, há outra. Uns dez anos depois, como ela faliu, eu, meu irmão e uns amigos resolvemos pular o muro. Que surpresa: tinha uma piscina vazia lá dentro! Com uma parede curva, que acompanhava a esquina, pois a piscina ficava num canto da fábrica. Não tinha transição, tínhamos que andar lá dando wall rides. Era divertido, mas fomos pouco lá, pois não éramos tão bons nisso. Foi o mais perto que já cheguei de andar de skate em uma piscina como as da Califórnia – é uma pena mesmo as daqui não ter transições.
Andar de bike e entrar em fazendas ou áreas de represa ou usinas de força (ou algo assim) era mato – literalmente também. O problema sempre foram os arames farpados, alguns enferrujados. Um de nós às vezes se enroscava. Bons tempos – sei que essa expressão é clichê, fazer o quê? – mas bons tempos mesmo em que as grandes enroscadas eram essas.  

Monday, December 07, 2015

Hüsker Dü

1988 ou 1989.

Na entrada do prédio, após virarmos o corredor à esquerda – seguindo em frente chegava-se ao quintal onde penduravam as roupas nos varais – jogávamos uma brincadeira de bolinha de plástico, dessas que quicam muito, que inventamos da nossa cabeça. Ficávamos sentados, não podíamos levantar, e batíamos na bolinha com a mão. Se passasse atrás dos jogares do outro time, era ponto. Fomos precursores de uma forma primitiva de goalball.
Os vizinhos não gostavam muito dessa ideia não, eles tinham que passar por ali. Mas era de tarde. Não dava nada.
Você se lembra?
Hoje sonhei que a Menina, a cachorra da minha irmã, estava no corredor e que ainda morávamos lá. Logo acordei, alertado pelo anacronismo da cachorrinha que ainda nasceria muitos anos depois de nos mudarmos de lá. Lembrei-me do jogo que inventamos, nunca pensamos nisso. Talvez só eu ainda me lembre.

Monday, November 30, 2015

Burning Image

Com o filme queimado, mas não sabia disso. Nem conhece a expressão, é nova demais, nem sabia que a má fama maculava seu nome no lugar.
Foi apelidada de Samarca. Gostava de falar das marcas das roupas com as quais desfilava. Essas marcas para as quais dizia não se importar um ano antes.
Ela mesma enterrou-se na lama.

Monday, November 23, 2015

Comsat Angels

Coadjuvante do Gasparzinho também teve seu gibi. Reprodução da capa de uma velha edição brasileira.


Vários dos meus melhores amigos eram de desenhos animados e de gibis. Eles eram tão legais quanto os melhores amigos da vida. Ninguém brigava com ninguém, nem os amigos da vida e nem os dos desenhos e dos gibis comigo; os amigos dos desenhos só brigavam entre si na TV e nas revistas, mas ninguém nunca se machucava – não se machucava muito – ou morria. Nos gibis do Gasparzinho os fantasmas e os diabinhos também não morriam. Ninguém morria, nem os mortos.
Minha tia ficava abismada toda vez que via um amigo meu atirando no outro na TV.
- É normal tia, ninguém morre de verdade.
Aí um dia, bem numa hora em que minha tia apareceu em casa sem eu saber, o Jerry matou o Tom com um tiro. Ele não foi pro céu e continuou vivo. Ele morreu mesmo.
- Viu, te falei! As pessoas morrem sim.
Essa tia era chata. A inocência também não foi pro céu.

Sunday, November 15, 2015

The Sound

Para Adrian Borland

A consciência se expande para além do corpo. Não é nenhuma bobagem mística. Não creio em nenhuma delas. É um estado induzido, propositalmente induzido, mas cujo controle é uma rédea esquecida em uma casa abandonada há centenas de quilômetros, dias antes. Uma fuga do corpo. Quando finalmente é bem-sucedida, no entanto, é aterrorizante. Os neurônios, na ponta dos dedos, são tocados por pensamentos incorpóreos, mas extremamente conscientes da expansão pelo ar. Talvez possam esvair, sem retorno. Por isso agarram-se à pele.
Um som de sino. Distante, vem se aproximando.
- Que merda, você está lendo muito Phillip K. Dick e brisando demais.
Reprodução de Daniel in the Lion's Den, quadro de Briton Rivière (1872)

Ela agarra meu pau. Escapei de mim mesmo e retornei, enlaçado pelos baixos instintos. Os melhores; será?...

Sunday, November 08, 2015

Baader-Meinhof Blues

Será que se chamava aparelho, como no Brasil? O fato é que adentrei no apartamento e fui bem recebido.
Estava brincando no prédio e um amigo me chamou para participar do grupo. Eu devia ter uns 14 ou 15 anos, dá para depreender pela aparência do meu amigo, um moleque branquelo, de bochechas rosadas. Ele me disse que me viram no edifício e gostaram da minha atitude – seja ela qual for, não faço ideia.
 estavam eles: Andreas Baader e Ulrike Meinhof. Não reconheci Gudrun Ensslin entre os presentes, não havia nenhuma loira. Devia ter umas sete ou seis pessoas na sala do apartamento. Quando a porta se abriu, notei que eu estava em nos anos setenta. Todos os homens usavam golas rolê com pulôveres ou paletós, alguns tinham costeletas; as mulheres vestidos com muitos botões e botas, além de óculos escuros e boinas. O apartamento parecia ser todo acarpetado, o estilo dos móveis era típico dos anos 1970. Eu não sei explicar por que os móveis são desta época; não sou bom em descrever detalhes de sofás e mesas, mas eu me lembro desse estilo, seja em filmes, seja porque eu tenho memórias deste tipo de mobiliário no fim da década de setenta, quando tinha entre quatro e seis anos.
Havia mais um visitante, além de meu amigo e eu – um Pantera Negra. Fiquei impressionado. Ninguém disse que era, mas só podia ser. Negro, com cabelo Black Power, com uma barbicha e uma postura arrogante. Fiquei surpreso de ver os dois grupos juntos. A cena era impressionante e ficou mais ainda.
Mal nos cumprimentamos – ninguém nos deu as mãos, pois estavam vidrados no noticiário policial da TV, como no filme que fala sobre o Baader-Meinhof. Não daria tempo, pois a polícia logo irrompeu pela porta. Armas na mão, junto ao corpo, e extremamente ágeis, logo dominaram todos. Notei que estava escrito Gendarmerie – a polícia francesa – nos uniformes deles. Eu era francês então.
Apesar disto, no sonho todos falavam português, lógico. Um policial mascarado agarrou a mim e meu amigo pelos braços. Ele nos disse para ficarmos tranquilos, pois eles sabiam que estávamos sendo cooptados. Era só para irmos na delegacia amanhã. Sendo arrastado porta afora, ainda vi os policiais torturando Baader, enfiando sua cabeça num saco plástico. Escada abaixo, enquanto o policial insistia para ficarmos tranquilos, ressaltando que era só irmos prestar depoimento na delegacia no dia seguinte e tudo ficaria bem, senti náuseas, pois não queria ter participado e nem visto nada daquilo. Era um pesadelo, de verdade – portanto, de mentira. Antes de acordar, ao lado das viaturas da Gerdarmerie na garagem do prédio, notei que também havia uma escrita Polizei. Os agentes alemães tinham vindo pegá-los.

A sensação nauseante não passou quando acordei. Talvez tenha sido o mais assustador dos pesadelos, pois foi com fantasmas que me foram contemporâneos, embora tenham morrido alhures muitos anos antes de ouvir falar neles.

Sunday, November 01, 2015

DNA, uma crônica no wave onírica

Para Ikue Mori, Arto Lindsay, Robin Crutchfield e meus irmãos Fernanda e Eurico

Sempre soube que eram sonhos, eram fantásticos e eram recorrentes. Poderiam até ser realidade, ao menos no começo os percebia como reais enquanto eles aconteciam, pois era criancinha quando eles começaram e eu ficava um pouco confuso por o cenário sempre ser o apartamento onde vivia e no início sempre era de noite neles.
Foram proto-sonhos lúcidos, portanto; meu primeiro sonho lúcido, no entanto, foi uns anos depois destes preâmbulos fantásticos, mas ainda era criança quando aconteceu: estava no pátio do Colégio Canadá, onde fiz o jardim da infância, e uma freira me mandou parar de brincar e voltar para a sala. Estranhei, pois em primeiro lugar não parecia tanto assim o Colégio Canadá, que não existe mais (mas ainda existia, à época do sonho). Em segundo lugar, embora eu ficasse louco para voltar para casa e assistir desenhos animados, na verdade eu gostava desta escola, justamente porque era um ambiente alegre e laico. Não havia aulas de religião e muito menos freiras. Então, no meio do sonho, tomei CONSCIÊNCIA DE QUE ESTAVA SONHANDO.
Meu primeiro sonho lúcido foi libertador, uma experiência inesquecível para uma criança. Não fiquei apavorado, não tive paralisia do sono e não sabia que existia o termo “sonho lúcido”. Só fiquei muito feliz, tanto como quando estudava no Colégio Canadá. Na época deste sonho já estudava em outra escola, hoje centenária, num ambiente mais repressor.
Como sabia que estava sonhando, interpelei a freira e disse-lhe “Isto é um sonho. Você não manda em mim”. Era uma senhora, ela fez uma cara de decepcionada... Ainda virei para ela mais uma vez e disse “Você não existe, vou continuar brincando”. E fiquei na caixa de areia, com um carrinho de plástico vermelho na mão. Acordei pouco depois, mas feliz. Durou pouco essa mobilidade onírica consciente, mas foi marcante. Décadas depois, vi uma cena semelhante no filme Vanilla Sky, do diretor Cameron Crowe.
Saudades desse Colégio Canadá. Lembro-me que o diretor se chamava Sérgio e ele dava aulas de judô ou karatê – alguma arte marcial; só lembro que não era kung fu – para nós. Mas era algo muito lúdico, todos tínhamos seis anos ou menos. Eu tinha sentimentos muito divididos sobre a escola: eu detestava não poder assistir desenhos animados e invejava meu irmão mais novo, Eurico, que ficava em casa assistindo-os. Por outro lado, ele queria demais ir à escola comigo e eu não entendia isso. Mas quando chegava ao colégio era um ambiente tão bom e aprendia tantas coisas tão alegremente que esquecia dos desenhos do Zero (sim, além do gibi, existia um desenho animado), do Johnny Quest, Carangos e Motocas, Speed Racer e tantos outros que adorava.
Na hora de ir embora, pela qual eu tanto ansiava antes, para poder ver TV com meu irmão (minha irmã Fernanda ainda não havia nascido), no entanto, eu ficava apavorado. É que havia uma oficina mecânica na avenida João Pinheiro, num local onde hoje há uma padaria, e eu ficava apavorado ao ver as faíscas de quando eles soldavam algo. Eu deveria achar que algo ia explodir ou que estavam montando um robô assassino gigante ali, sei lá. Minha experiência com a escola era uma montanha-russa de emoções conflitantes. O Colégio Canadá, no fim, foi parar perto da casa onde morei nos anos noventa e morreu quieto, eu acho, na mão de outros proprietários, pelo o que sei. Um pedacinho que se perdeu da história de Poços de Caldas.
Toda esta divagação e ainda não falei dos sonhos fantásticos que tinha desde criancinha. Não há como descrever a maravilha visual que eram estes sonhos, simplesmente não há palavras para isto. Mas o que sempre acontecia é que olhava pela janela do apartamento onde morei quando era criança e estava tudo certo com a paisagem: o quintal do prédio, com uma casinha de utensílios para o jardineiro e vários varais, alguns com roupa. Em frente, os fundos de uma casa. Mas o céu sempre era diferente: às vezes, eu via o núcleo da Via Láctea. A Lua geralmente não aparecia, mas vários planetas apareciam tendo o mesmo tamanho dela ou maiores, como se estivessem muito mais próximos. Júpiter, Marte e especialmente Saturno eram presenças constantes. Em vários desses sonhos, quando eu abria a cortina, havia outros planetas, desconhecidos e maravilhosos, por perto. Não era nada como Melancolia, não era ameaçador – era deslumbrante. Discos voadores eventualmente cruzavam o céu. Não era sempre que apareciam e raramente eram ameaçadores. Às vezes o tráfego de OVNIs era intenso. Nos únicos casos em que me senti ameaçado por eles, eles sempre vinham sobrevoando de trás do teto de uma casa cinza cuja lateral ficava à esquerda. Estas casas, assim como o prédio, existem até hoje no mundo real. Exatamente por isso, como disse minha irmã dias atrás, o prédio se parece com um sonho.
O curioso a respeito dos discos voadores que sempre surgiam sinistramente por detrás da casa cinza, tendo ao fundo as montanhas, é que muitas vezes eles surgiam de dia e este virava noite. Mas eles nunca pousaram ou destruíram nada. Eventualmente viravam teco-tecos. Ou seja, nunca foram perigosos.
Embora estes sonhos com o céu transformado tenham começado em tenra idade, continuei tendo-os mesmo depois que mudei do prédio. Foram inúmeros, sempre fascinantes, por décadas, do fim dos anos setenta até neste século. Tive-os até recentemente.
O prédio onde cresci. Tirei a foto em 2012.
O último foi há um par de anos. Sonhei que a banda no wave DNA estava tocando no quintal do prédio. Poderia ter descido lá o Mars, outra banda da mesma cena e com nome de planeta, mas alguma engrenagem onírica escolheu o DNA. Dois integrantes, Arto Lindsay e Ikue Mori, estavam lá, tocando muito baixo para uma banda tão barulhenta e experimental, ao lado de um terceiro integrante indistinto, como se fosse o fantasma do tecladista Robin Crutchfield. Corri para a janela para vê-los, não queria perder um segundo da apresentação descendo a escada até lá. Afinal, se o DNA estava tocando no quintal do meu prédio sem qualquer motivo, se eu descesse até lá talvez eles não estivessem mais lá quando eu chegasse. Apenas algumas crianças estavam vendo-os. Então notei que o céu era igual ao dos meus sonhos recorrentes. Repentinamente, era noite, Saturno estava enorme no céu e discos voadores nos sobrevoavam. Foi a última vez que sonhei com este céu fantástico, que não aparece em nenhuma outra paisagem onírica – ele ocorre apenas no quintal do meu predinho da infância. Sempre que acontece, a sensação remete ao título de uma música de outra banda no wave, o Teenage Jesus and the Jerks: eu acordei sonhando.

Friday, August 28, 2015

Durutti Column

A meninada se posta diante dos dois maiores, que vão escolher os times.
Escolhem da forma mais equânime possível, mais ou menos medindo as forças de cada um, de acordo com o tamanho e as habilidades de cada moleque. Formados os times, vai-se para a pelada no campinho demarcado na rua, meio apagado devido à chuva repentina de verão do começo da tarde. As meninas jogavam também, tinham duas; ninguém se importava.
Eu lembro-me de quando meu xará tomou uma entrada mais dura. Expulsamos o forasteiro. Sim, nós mesmos éramos nossos juízes. Com um a menos, passei para o time deles. Ficou mais ou menos equilibrado; era o menos habilidoso, mas chutava forte umas bombas difíceis pros goleiros, que também jogavam na linha, segurar.
Terminada a partida, eu que estava perdendo num time acabei ganhando no outro. E montamos outros times, uma das minas não tava mais a fim, deu certo. Deu empate, acho. Se os anos oitenta ficaram conhecidos como a década perdida, nós só ganhávamos, independente dos resultados.

Monday, August 24, 2015

Theatre of Hate

O sorriso desvanece conforme viravam as costas e transmuta-se num esgar de desprezo. Tantos anos estudando artes cênicas renderam-lhe habilidades sociais imprescindíveis, pelas quais sempre ansiou. Adentra ao recinto segura de si, algo que logrou após anos de treino em dissimulação. As vestes hippies conferem-lhe uma simpatia que não denunciam seu artificialismo aos convivas.
Abrem-se as cortinas. A melhor atuação, no entanto, já havia ocorrido no átrio, antes do início da peça.
O final da peça é abrupto. O público, a princípio atônito, só passa a aplaudir quando as cortinas fecham-se sem aviso, segundos depois. Quando o elenco logo volta, aplaudem de pé, mas nota-se certo constrangimento, raras as exceções. Ela é uma destas.
Na saída, passa a falar o mais alto possível, para atrair todas as atenções. Agora sim começa o verdadeiro espetáculo, no qual reputações inocentes serão destruídas de forma sórdida, causando deleite ao público remanescente.
Por favor, desliguem os celulares.

Monday, August 03, 2015

Crispy Ambulance

Por favor.
- Samu, boa noite.
- Por favor, manda uma ambulância.
- Peraí, o que foi que aconteceu?
- A menina aqui, ela tomou todos os remédios.
- Ela está inconsciente?
-Não.
- Está falando?
- Sim.
- Você tem carro?
- Tenho.
- Ela tem plano de saúde?
- Tem.
- Então leva ela você mesmo para lá. É melhor. Vai demorar menos.
Durante o caminho, só ouvi nonsense vindo dela. Mas, pensando bem, sempre foi assim.

Sunday, July 26, 2015

Section 25

As janelas todas abertas. Ao menos a brisa nos confortava de quando em quando. Nos estertores do século passado, essa frase era literal.
Passou Here We Go na MTV.
- Olha que legal! Você conhece?
- Nossa, você não conhece? Shelter tocava no rádio o tempo todo. Eu nem notei que não fazia mais sucesso.
- Você já é velho.
Aos 25 anos. Here we go again.
Liguei o ventilador. Mesmo assim, suávamos. À noite. A inspiração que bastava. Tiramos as roupas. O tecido do sofá era incômodo, grudava na pele. 
O chão da cozinha ficou empapado de suor.

Sunday, July 19, 2015

Dream Syndicate

O jornal é de ontem, mas o texto não é mais o mesmo. Havia sido alterado. Como? Não havia jeito, é papel, não há como aparecer um “atualizado às 18:48”, por exemplo. No entanto, o acróstico desabonador não consta mais na matéria.
É que as letras na verdade são pessoas. Elas haviam sido substituídas por jornalistas mais novos, contratados como PJs, pois todos os sindicalizados foram mandados embora. Entretanto, os jornalistas demitidos entram no texto, diante dos meus olhos, e empurram para fora seus substitutos. Não obstante, o acróstico ainda está falho. Resta uma letra trocada. Eu a localizo. É uma menininha de vestido verde, não um adulto.
Rumo ao encontro dela, dentro da página. Ao contrário dos jornalistas mais novos, que saíram de seus postos, ela permanece no lugar. O início do parágrafo é um pequeno morro; ao me aproximar, noto que ela é translúcida. Fantasma. Entro dentro dela. Uma voz doce ecoa na minha mente:

- Foi você que me possuiu. Você é o fantasma.

Sunday, July 12, 2015

Public Image Limited

Distraído. Parado no semáforo, conversando sobre política. 
Um garoto, mais um, mas parecido demais com os demais: de barbicha, roupas que aludem ao circo, muito jovem, malvisto na família (provavelmente). Fazendo malabarismo com bolinhas.
Notei-o porque errou: uma bolinha escapou e foi parar embaixo do carro ao lado. Sorri - na verdade, ri. Ele foi safo o suficiente para levar na esportiva: não se deixou abater, pegou uma das bolas que restaram, vermelha, e a pôs em frente ao nariz, emulando um palhaço que não meteria medo nem na mais traumatizada criança que teme essa figura.
Procurei desesperadamente por umas moedas, mas, como não estava prestando atenção antes, não as encontrei. Quando ele se aproximou, entreguei uma bala. A desculpa que dei é que ela poderia lhe dar energia.
O semáforo, que não estava para brincadeiras, deixou de ser vermelho.

Sunday, July 05, 2015

Sex Pistol

Acordei exausto. 
Logo cedo havia pegado estrada. Ao chegar no sítio, perguntei o que estava acontecendo. Ela disse que o problema era o que não havia acontecido. Nos beijamos. 
De volta à estrada, fui para a cidadezinha. Encontrei a noiva d'antanho lá. Não resisti e perguntei na lata:
- É verdade que você e seu marido têm relacionamento aberto?
- Sim, mas para você eu sou casada.
 Nunca tomei um toco tão forte. Fui pra casa. Então a mocinha que a abandonou lá estava, esperando-me dormindo na cama, como usualmente fazia quando eu chegava de São Paulo no sábado à noite. Beijou-me sonolenta, como fazia naquela época. Deitei-me abraçando-a. Ela ainda virou-se para mim e disse uma única frase antes de cerrar os olhos.
- Seu pau se encaixa direitinho no vão da minha bunda. 
Dormimos abraçados uma última vez por um milissegundo. 
Além de exausto, acordei sozinho.

Sunday, June 28, 2015

Joy Division

Episódio novo de Anjos da Lei na TV. Pronto, o domingo já foi bom. Está frio, de volta pras cobertas. 
Então a galera chega, me arranca da cama, me arrasta pra rua pra zoar o dia todo. Não sei se a frase é mesmo do Stephen King, mas se for, ele acertou na veia ao final de Conta Comigo, numa sessão da tarde de videocassete, não da TV, àquela época: não há mais amigos como os que se tem por volta dos 14 anos, mesmo que você nunca mais os veja ou que se tornem meros conhecidos.

Saturday, June 20, 2015

Atari Teenage Riot

São quatro e meia da tarde. Choveu muito no dia anterior. O céu está limpo de toda a fumaça, como se velhas lentes de contato tivessem sido trocadas por um novo par. O caminho ensolarado lembra cenário de videogame – parece que todo cena de games tem o sol desse horário, quando a ação se passa durante dia. A falta de criatividade dos programadores me irrita. Eu adoro o sol desta hora no inverno – me lembra o sol das cinco e meia no verão, quando eu saía da escola e ficava na rua brincando até de noitinha. Essa hora sempre foi a hora da felicidade. Embora videogames tenham me trazido muitas alegrias à época e mesmo hoje, eles não combinam com esse horário, ao menos no meu registro pessoal.
A realidade, que os games desta década tanto tentam emular, é tão subjetiva em 2015 que eles são muito mais simulacros de uma idealização de hiper-realismo e muito menos verdadeiros do que jogos simplórios dos anos oitenta, cujos gráficos deixavam muito mais espaço para a imaginação preencher lacunas. Fan fiction era criação instantânea nos anos oitenta. Talvez deixe rastros até hoje, em livros de ficção científica daquela geração – a minha.
No lugar de um miniconto no domingo, neste final de semana resolvi publicar uma pequena crônica no sábado, pois o caos é legal.

Sunday, June 14, 2015

Descartesiana

A morte vem chegando.

Por que não desacelerar? Mas aceleramos, na perspectiva de sermos mais rápidos, sem notarmos que a colisão que se avizinha é frontal.

Sunday, June 07, 2015

Descartesiano

Entreolhamo-nos. Torto. Ambos.
Seguimos nossas vidas. Como se não houvéssemos existido. Não existimos. No entanto, pensamos.

O café estava gostoso.

Sunday, May 31, 2015

A morte do Poeta

“O Fescenino fenece fecundo de fé”.
Ficou bem mais ou menos esta aliteração, mas serve como epitáfio.

A nota suicida foi posteriormente incorporada às obras completas. 

Tuesday, May 26, 2015

A giant anteater lies dead at the side of the road

A cada documento carimbado, conferido, visto e assinado, a vista se vai. A cada segundo perdido, o cérebro se esvai. A cada bobagem ouvida, a audição se perde. A cada café muito quente queimando a garganta, o paladar some. A cada ida ao banheiro fedendo a cigarro, o olfato cancela-se. A cada palavra desinteressante digitada, a tendinite vem e o tato vai-se.
- Oi amor, como foi o dia hoje?
- Vá à merda!
A porta fecha-se.

Sunday, May 17, 2015

Eterno Despertar Finito

Após uns três anos, finalmente tive um sonho lúcido novamente. Não dormi bem, acordei algumas vezes ao longo da noite, ainda que estivesse frio – geralmente durmo sem interrupções se a noite é fria e silenciosa. Na penúltima delas, acho, pouco antes de acordar, estava andando no quintal do prédio onde morei na infância. Quando comecei a descer a escada que leva a um patamar inferior do quintal – uma escada estreita, íngreme e de cimento mal-acabado, muito bem representada no meu sonho – eu me toquei que estava na verdade sonhando.
Aí pensei comigo mesmo: nossa, estava falando sobre voar em sonhos tempos atrás com a Renata – uma grande amiga. Como disse para ela, quase sempre quando sonho, começo a bater os braços, como um pássaro bate as asas, para voar. Geralmente, depois que levanto voo, não preciso continuar batendo os braços, basta continuar voando, com os braços estendidos ou não. No sonho, conscientemente, decidi sair voando sem esforço. Deu certo! Sobrevoei o quintal da minha infância por alguns segundos. Não preciso sequer ir lá fazer uma visita algum dia, nada se compara a emoção de voar.
Acordei e pensei: preciso contar esse sonho para ela. O quarto estava na penumbra. Alguém começou a puxar o lençol e eu fui indo junto, para debaixo do cobertor, lentamente. Fiquei imaginando se não poderia ser a Yasmin, minha cachorrona. Mas ela não seria forte o suficiente... Então acordei de fato! Fiquei assustado, como sempre acontece nessas ocasiões. Pela primeira vez na vida, tive os dois tipos de sonhos lúcidos juntos: no primeiro, eu controlo o sonho. No segundo, como no primeiro número do Sandman de Neil Gaiman, eu desperto, acho que estou acordado, tudo é bem real, mas não estou acordado e desperto de verdade, completamente desacorçoado! Como pela primeira vez tive os dois tipos de sonhos na mesma noite, e na sequência, meu coração disparou tão fortemente que não conseguia voltar a dormir por um bom tempo, embora não tenha sido exatamente um pesadelo, pois a sensação de ser puxado junto com o lençol não me aterrorizou durante o sonho, pelo contrário, pareceu-me uma brincadeira e a sensação tátil de ser arrastada pelo lençol era até mesmo gostosa, como se ajudasse a me cobrir para me esquentar e dormir melhor. Estava me deixando levar.
Aproximadamente uma hora depois, consegui voltar a dormir, lá pelas seis da manhã. Desejando ter outro sonho lúcido. Não tive.

Sandman sentenciando quem lhe mantinha cativo ao Eterno Despertar. Arte de Sam Kieth, Mike Drigenberg e Robbie Busch.

Sunday, May 10, 2015

A noite em que fui um Lanterna Verde

Estou voando. É fácil, mais fácil do que andar de bicicleta. Sobrevoo o bairro onde cresci; é mais ou menos como imaginava que seria quando visto do alto.
Telepaticamente, sou alertado pelos Guardiões do Universo, diretamente de Oa, que alienígenas invadiram a terra e sequestraram algumas garotas em Batatais, interior de São Paulo. Não me perguntem o porquê de aliens se interessarem por Batatais. Não vejo os Guardiões, apenas os ouço na minha mente e sei que estão em Oa. Logo parte da Tropa dos Lanternas Verdes aparece ao meu lado e voamos acelerado; rapidamente saímos de Poços de Caldas e logo chegamos em Batatais.
No caminho, os Guardiões nos avisaram que os alienígenas se pareciam com baratas. Sobrevoamos o bairro, devagar e baixinho. Parecia mais um subúrbio dos Estados Unidos do que uma cidade brasileira. Perto de uma esquina de onde saía uma estrada de terra, paro para recarregar meu anel numa bateria verde que foi deixada em frente a um sobrado. Então levantamos voo de novo e usando o anel como sensor descubro onde os alienígenas estão. A nave deles está enterrada embaixo de uma grande casa.
Entramos na casa, mas voando. Abrimos a porta usando a luz verde do anel e ficamos levitando na sala, ninguém anda. Ouvimos gritos, gritos desesperados de garotas. Temos certeza de que elas estão sendo torturadas. A sala tem uma porta de onde parecem vir os gritos, a abrimos e acendemos as luzes, sempre voando. Há um imenso porão.
O porão está vazio, elas não estão lá. Os gritos parecem vir de baixo de nós. Mas não vemos nada. De entradas laterais, aparecem vários gatos. Eles se parecem com felinos normais, mas são um pouco maiores e olham-nos fixamente e SORRIEM. Um sorriso maldoso, satânico. Então começam a pular muito alto e quase nos alcançam. Comprimimo-nos contra o teto. Antes que contra-ataquemos, acordo.
Está meio frio no quarto, é inverno. Tudo escuro. Pouco depois volto a dormir.
Quando passo a sonhar novamente, EU VOLTO A SER UM LANTERNA VERDE. Isso foi realmente legal. Este sonho seguinte, ao contrário do anterior, dessa vez era remanescente de leituras de HQs, mais especificamente do Cavaleiro das Trevas. Era de noite, eu voava e o vento frio castigava meu rosto. Estava beirando a costa, e em meio a nuvens um pouco cinzas, sobre as quais pontuava a lua, cujo reflexo no oceano era bonito, eu via o Super-Homem destruindo MIGs soviéticos. Estava bravo com o Super-Homem, não porque fiquei do lado dos russos, mas porque ele estava matando outros seres humanos, quebrando seu juramento. Eu voava em direção aos aviões e procurava salvar os pilotos, mas o Super-Homem estava possesso e matando geral. O Super-Homem era rápido demais, era apenas um risco azul que logo desaparecia de vista. Como um elétron, não o via de fato; só de observá-lo, ele mudava de direção imediatamente. Esse sonho não foi tão bom, porque estava frio – eu realmente sentia frio durante o voo, assim como sinto gosto de comida durante os sonhos! – mas não foi propriamente um pesadelo. No entanto, estava frustrado até mesmo ao acordar. Não havia conseguido salvar ninguém.


Daniel Souza Luz, 10 de maio de 2015.

Arte de Gil Kane para o mais notório Lanterna Verde, Hal Jordan. Foi uma honra ser colega de Jordan por uma noite.