Sunday, May 31, 2015

A morte do Poeta

“O Fescenino fenece fecundo de fé”.
Ficou bem mais ou menos esta aliteração, mas serve como epitáfio.

A nota suicida foi posteriormente incorporada às obras completas. 

Tuesday, May 26, 2015

A giant anteater lies dead at the side of the road

A cada documento carimbado, conferido, visto e assinado, a vista se vai. A cada segundo perdido, o cérebro se esvai. A cada bobagem ouvida, a audição se perde. A cada café muito quente queimando a garganta, o paladar some. A cada ida ao banheiro fedendo a cigarro, o olfato cancela-se. A cada palavra desinteressante digitada, a tendinite vem e o tato vai-se.
- Oi amor, como foi o dia hoje?
- Vá à merda!
A porta fecha-se.

Sunday, May 17, 2015

Eterno Despertar Finito

Após uns três anos, finalmente tive um sonho lúcido novamente. Não dormi bem, acordei algumas vezes ao longo da noite, ainda que estivesse frio – geralmente durmo sem interrupções se a noite é fria e silenciosa. Na penúltima delas, acho, pouco antes de acordar, estava andando no quintal do prédio onde morei na infância. Quando comecei a descer a escada que leva a um patamar inferior do quintal – uma escada estreita, íngreme e de cimento mal-acabado, muito bem representada no meu sonho – eu me toquei que estava na verdade sonhando.
Aí pensei comigo mesmo: nossa, estava falando sobre voar em sonhos tempos atrás com a Renata – uma grande amiga. Como disse para ela, quase sempre quando sonho, começo a bater os braços, como um pássaro bate as asas, para voar. Geralmente, depois que levanto voo, não preciso continuar batendo os braços, basta continuar voando, com os braços estendidos ou não. No sonho, conscientemente, decidi sair voando sem esforço. Deu certo! Sobrevoei o quintal da minha infância por alguns segundos. Não preciso sequer ir lá fazer uma visita algum dia, nada se compara a emoção de voar.
Acordei e pensei: preciso contar esse sonho para ela. O quarto estava na penumbra. Alguém começou a puxar o lençol e eu fui indo junto, para debaixo do cobertor, lentamente. Fiquei imaginando se não poderia ser a Yasmin, minha cachorrona. Mas ela não seria forte o suficiente... Então acordei de fato! Fiquei assustado, como sempre acontece nessas ocasiões. Pela primeira vez na vida, tive os dois tipos de sonhos lúcidos juntos: no primeiro, eu controlo o sonho. No segundo, como no primeiro número do Sandman de Neil Gaiman, eu desperto, acho que estou acordado, tudo é bem real, mas não estou acordado e desperto de verdade, completamente desacorçoado! Como pela primeira vez tive os dois tipos de sonhos na mesma noite, e na sequência, meu coração disparou tão fortemente que não conseguia voltar a dormir por um bom tempo, embora não tenha sido exatamente um pesadelo, pois a sensação de ser puxado junto com o lençol não me aterrorizou durante o sonho, pelo contrário, pareceu-me uma brincadeira e a sensação tátil de ser arrastada pelo lençol era até mesmo gostosa, como se ajudasse a me cobrir para me esquentar e dormir melhor. Estava me deixando levar.
Aproximadamente uma hora depois, consegui voltar a dormir, lá pelas seis da manhã. Desejando ter outro sonho lúcido. Não tive.

Sandman sentenciando quem lhe mantinha cativo ao Eterno Despertar. Arte de Sam Kieth, Mike Drigenberg e Robbie Busch.

Sunday, May 10, 2015

A noite em que fui um Lanterna Verde

Estou voando. É fácil, mais fácil do que andar de bicicleta. Sobrevoo o bairro onde cresci; é mais ou menos como imaginava que seria quando visto do alto.
Telepaticamente, sou alertado pelos Guardiões do Universo, diretamente de Oa, que alienígenas invadiram a terra e sequestraram algumas garotas em Batatais, interior de São Paulo. Não me perguntem o porquê de aliens se interessarem por Batatais. Não vejo os Guardiões, apenas os ouço na minha mente e sei que estão em Oa. Logo parte da Tropa dos Lanternas Verdes aparece ao meu lado e voamos acelerado; rapidamente saímos de Poços de Caldas e logo chegamos em Batatais.
No caminho, os Guardiões nos avisaram que os alienígenas se pareciam com baratas. Sobrevoamos o bairro, devagar e baixinho. Parecia mais um subúrbio dos Estados Unidos do que uma cidade brasileira. Perto de uma esquina de onde saía uma estrada de terra, paro para recarregar meu anel numa bateria verde que foi deixada em frente a um sobrado. Então levantamos voo de novo e usando o anel como sensor descubro onde os alienígenas estão. A nave deles está enterrada embaixo de uma grande casa.
Entramos na casa, mas voando. Abrimos a porta usando a luz verde do anel e ficamos levitando na sala, ninguém anda. Ouvimos gritos, gritos desesperados de garotas. Temos certeza de que elas estão sendo torturadas. A sala tem uma porta de onde parecem vir os gritos, a abrimos e acendemos as luzes, sempre voando. Há um imenso porão.
O porão está vazio, elas não estão lá. Os gritos parecem vir de baixo de nós. Mas não vemos nada. De entradas laterais, aparecem vários gatos. Eles se parecem com felinos normais, mas são um pouco maiores e olham-nos fixamente e SORRIEM. Um sorriso maldoso, satânico. Então começam a pular muito alto e quase nos alcançam. Comprimimo-nos contra o teto. Antes que contra-ataquemos, acordo.
Está meio frio no quarto, é inverno. Tudo escuro. Pouco depois volto a dormir.
Quando passo a sonhar novamente, EU VOLTO A SER UM LANTERNA VERDE. Isso foi realmente legal. Este sonho seguinte, ao contrário do anterior, dessa vez era remanescente de leituras de HQs, mais especificamente do Cavaleiro das Trevas. Era de noite, eu voava e o vento frio castigava meu rosto. Estava beirando a costa, e em meio a nuvens um pouco cinzas, sobre as quais pontuava a lua, cujo reflexo no oceano era bonito, eu via o Super-Homem destruindo MIGs soviéticos. Estava bravo com o Super-Homem, não porque fiquei do lado dos russos, mas porque ele estava matando outros seres humanos, quebrando seu juramento. Eu voava em direção aos aviões e procurava salvar os pilotos, mas o Super-Homem estava possesso e matando geral. O Super-Homem era rápido demais, era apenas um risco azul que logo desaparecia de vista. Como um elétron, não o via de fato; só de observá-lo, ele mudava de direção imediatamente. Esse sonho não foi tão bom, porque estava frio – eu realmente sentia frio durante o voo, assim como sinto gosto de comida durante os sonhos! – mas não foi propriamente um pesadelo. No entanto, estava frustrado até mesmo ao acordar. Não havia conseguido salvar ninguém.


Daniel Souza Luz, 10 de maio de 2015.

Arte de Gil Kane para o mais notório Lanterna Verde, Hal Jordan. Foi uma honra ser colega de Jordan por uma noite.

Sunday, May 03, 2015

Poliódio

Maria caminha cabisbaixa, rente às paredes das velhas casinhas, todas com as frentes coladas à calçada. Eventualmente tem que se abaixar, devido a alguma janela aberta, sempre essas de madeira, mas não desvia do seu caminho, longe da rua. Para para pensar por um instante: será que tem medo atávico de ser atropelada ou teme sair da casa dos pais? Não consegue ver sentido em nenhuma das duas coisas ou ver algum sentido no jeito como caminha, mas deve haver algum. Desiste de se auto-analisar e segue seu caminho. Prefere seguir no fluxo. O instinto, sem pensar muito, é poesia. Foi a poesia que a ensinou isso.
A faina foi extenuante. No momento, tudo o que quer é tomar um banho quente e não pensar em nada. Mas não consegue. Bola um novo poema pouco antes de chegar e já corre para o computador. Atualiza sua página, mas ninguém dá atenção por mais de meia hora. Enquanto espera por alguém curtir a publicação, arruma uma treta com um moleque, amigo de uma velha amiga, mas uns cinco anos mais novo, o qual escreveu um comentário estúpido: “mulher deveria agradecer por ser chamada de gostosa, mesmo não sendo”. Dá-lhe uma lição sobre feminismo, mas o fedelho responde cinicamente a todos os argumentos. Vermelha de raiva, fecha a tampa do notebook com força e começa a se despir para se banhar. A mãe, passando pelo corredor, atenta à cena, pergunta o que foi aquilo. Maria não responde objetivamente, apenas murmura um “Não foi nada não” e vai pro chuveiro.
Refeita, vai jantar. Dona Zulmira a observa, preocupada. Até mesmo Maria chama a mãe de “Dona Zulmira”, como se Dona fosse o primeiro nome de Zu, como ela realmente gosta de ser chamada. Apenas o pai de Maria, falecido há pouco, chamava Zulmira de Zu.
- Filha, o que você tem?
- Nada Dona Zulmira, tô bem!
- Agora você até está. Mas você não está bem. Mãe não se engana.
Maria continua a comer, quieta. Não quer se irritar mais. Desde que abandonou a igreja evangélica que frequentava com os pais, sentindo-se desobrigada com a morte de Zé, seu velho pai, ela vem sendo mais questionada pela mãe.
- Filha, você está ficando velha. Precisa se casar, como seus irmãos.
- Mãe! Eu por acaso preciso ter filhos, me casar, ser como os outros? Isso é normatização.
- Fico feliz por você me chamar de mãe. Eu sou sua mãe, sim.
Maria fica desconcertada. Depois de um silêncio desconfortável, a mãe resolve quebrar o gelo jogando lenha na fogueira para o circo incendiar-se sem chance das chamas serem debeladas.
- Maria... Por que você não volta com o André? Um menino tão bom...
- Mas que heteronormatividade, mãe! Eu não sou mais como era; ele é religioso, machista. Aceita que eu sou ateia agora. Aceita, mãe.
Dona Zulmira sabe que tem mais dois fatos incômodos que ela tem que aceitar. Aceitar, ela aceita. Mas queria um netinho.
- Maria, se você quer ter vários namorados...
- Não são namorados. Não quero ter. Não tenho ninguém e ninguém me tem, não sou propriedade de ninguém. E não são só, como você chama, namorados...
- Eu sei, eu sei.
- Então tá bom assim.
- Se está bom assim, por que você não é feliz? Você está sempre infeliz. De cara amarrada. Brigando com todo mundo.
- Eu sou feliz.
- Eu sei que você não é. Você fica nesse computador o dia todo, brigando com os outros.
- Eu não faço só isso. Eu saio com minhas amigas. Eu administro a minha página. Eu escrevo. Eu gosto disso. Eu tava brigando com um menino machista. Eu não aceito mais esse mundo patriarcal.
As frases saem num jorro. No que a mãe rebate de bate pronto.
- Mas você não é feliz.
- Eu sou feminista. O mundo é cruel e me estresso mesmo. Eu tenho que exercer a sororidade, minhas irmãs precisam de mim. Já te expliquei o que é isso.
Zulmira se irrita.
- Você fica falando de amor livre... A Augustina é minha amiga.
- Isso é passado. Põe uma pedra nisso.
- Você foi lá fofocar sobre o filho dela pra namorada dele que tava na Bélgica. Eles se separaram por sua causa. Você sabe. O menino tá com depressão até hoje.
- Eu era outra pessoa na época.
- Mas a sua amiga Alice pode chifrar a Carol que você não fala nada? Cadê sua sororidade com a Carol?
Maria fica muda. Atônita.
- Como você sabe disso, mãe?
- Não interessa. E o assunto não é da minha conta. Não é da sua conta também, mas você passa pano para tudo que a Alice faz, só que você deveria era cuidar da sua vida. Tá na sua cara que você não é feliz. Na sua cara.
- Para de fingir que é jovem, mãe. Passar pano. Passar pano – ironiza Maria, imitando a voz de Zulmira.
- Quem finge ser algo que não é, é você. Eu só falei algo que você me ensinou. Mas você entendeu o recado. Para de viver em função dos outros. Você é que finge ser algo que não é.
- Olha aqui...
- Não vou olhar nada. Sou sua mãe. Não sou patriarcal. Você pare de fingir algo que não é. Você sempre quis ter filhos, se casar. Todo mundo muda, mas ninguém muda tanto assim. Para de fingir ser quem você não é para bancar a grande feminista. Você pode ser, sem ser essa farsa infeliz. Para de odiar o mundo. O mundo é o mundo. Você não odeia a Alice que faz do mundo um lugar ainda pior. Você não acha que a Carol não vai sofrer por culpa dela? Então para de odiar os outros. Você era uma menina boa. Não tô falando pra você voltar a ser uma menina. Tô pedindo para você voltar a ser uma pessoa boa.

Maria engole em seco as lágrimas que se recusa a derrubar em frente à mãe. Tranca-se no quarto. Abre o notebook. Duzentos e setenta e sete pessoas curtiram o poema que postou no início da noite. Sente-se enternecida. Sendo assim, consegue dormir.