Monday, December 20, 2021

Veja a Manchete

Raramente tenho algo que se possa chamar de pesadelo, de uma década e meia para cá. E mesmo antes não era algo muito comum. No entanto, há uns anos, apesar de não ter acordado assustado, fiquei aliviado ao acordar de um sonho que não foi particularmente bom. Então talvez tenha sido mesmo um pesadelo. Nele, estava folheando uma Veja de 1979; havia denúncias de tortura, era uma edição comemorando a Anistia, a reabertura política que levou ao fim da ditadura no Brasil. Enfim, havia uma matéria, páginas adiante, falando de tortura e execuções de opositores na Turquia. Parecia muito real, vi vários cadáveres desfigurados. Até a diagramação e a fonte das letras pareciam com as das revistas que lia quando era criancinha, em salas de espera e, em especial, em barbearias no centro de Poços, quando eu ia cortar o cabelo com meu pai e tinha que aguardar minha vez. Na vida real, essas revistas realmente eram assim, mas a Manchete, principalmente, mais parecia encarte de discos do Carcass, a pioneira banda de goregrind. Lembro-me em especial de uma, numa barbearia que ainda existe, quando havia acabado de aprender a ler: publicaram uma reportagem sobre um sequestro de avião em que os terroristas cortaram aleatoriamente a língua de uma refém. Havia várias fotos dela sangrando ao longo das páginas. Talvez só uma ou duas, mas na minha memória agora parece que eram dezenas. Em preto e branco, o que tornou aquele sangue escurecido ainda mais traumático. Ficava pensando em como ela poderia viver depois; isso perturbou vários dias da minha infância. Perto disso, o famoso jornal Notícias Populares, apelidado de “Espreme e Sai Sangue”, hoje tão morto e enterrado quanto a Manchete, não era nada.

 

Daniel Souza Luz é professor, escritor, jornalista e revisor

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 18 de dezembro de 2021. É uma versão reescrita e ampliada da minha Micrônica 2147, de 25 de março de 2018.


Uma edição de janeiro de 1985 da revista Manchete. Reproduzida aqui via licença Creative Commons.




Monday, December 13, 2021

Procurando chifre em cabeça de cavalo

 Escrevi este conto em 2008. Resolvi tirá-lo da gaveta e foi publicado no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 11 de dezembro de 2021. Como o texto já tinha 13 anos, precisei reescrevê-lo para atualizar referências tecnológicas. De qualquer forma, o reescreveria mesmo em parte, pois eliminei elementos do texto original que denotavam forte influência do Bukowski, o que me irrita profundamente hoje. Mas não se enganem, ainda sou fã do Buk. 

A única música que me dava arrepios era The Carnival Is Over, mas hoje em dia não sinto quase nada. O prazer de ouvir a música é muito vago. Mas ao menos isso. Nenhum outro som me desperta algo. Ou despertava. O que tornou especialmente difícil escutar, de bobeira, Feel Good The Hit Of The Summer, que não diz nada com nada, e voltar a associar uma música a uma pessoa. A lembrança de Anna desabou sobre mim com o peso de uma banda que eu não ouvia há muito tempo e da qual nós tanto gostávamos. Só havia algo no mundo que eu gostava mais do que aquele CDzinho azul do Rated R: da Anna. Eu o perdi, a perdi. Se foi o interesse por ambos, mas não consegui bloquear a lembrança dela. Apenas a tirei de foco.

Chorei e não sou disso. Não chorava desde que tinha uns onze anos. Sempre detestei, fui ensinado a crer que era coisa de maricas. Foi foda, o impacto sonoro suspendeu o entrave mnemônico que havia me imposto. Malditos algoritmos do modo aleatório dos serviços de streaming. Encomendei uma edição especial do CD, já que o passado voltou tão veementemente. Bobagem, podia ter escutado online mesmo. Na minha mente, as faixas já se reordenaram e estão tocando na ordem certa. Já tinha tudo de cor, internalizado. Bem, não senti nada, de novo, quando tirei o CD do invólucro e pus para rodar. Se fosse só isso estava bom. Mas não. As recordações daquele tempo com Anna, de qualquer forma, me deixaram abalado em outros momentos nada musicais. Não sabia mais nada sobre ela, a não ser que tinha se mudado da casa dos pais.

Pois bem, resolvi procurar por ela nas redes sociais. Nada. Mas uma busca na web me revela o número e endereço do consultório dela. Agora ela trabalha com constelação familiar. Caramba, que picaretagem. Mas é tarde, estou obcecado.

Avalio por uma meia hora, andando de um lado para o outro e tomando café, se devo ligar ou aparecer na porta do consultório dela como se eu não quisesse nada. No fim, resolvi ligar. Ela atende, não consigo falar. Nunca fui dessas coisas, que idiota. Sou mais cretino ainda ao ligar novamente e pôr o telefone em frente ao som, sem falar nada, enquanto o Rated R está rolando no volume máximo. Depois de uns trinta segundos abaixo o som e resolvo falar um oi, mas ela já havia desligado. Será que ela entendeu o que estava acontecendo? Espero meia hora para ver se ela retorna a ligação. Largo mão de frescura: agora ligo direto pra ela, que atende com frieza. Ela tinha sacado sim que era eu. Avisa que ainda escuta muito o disco, pois o marido comprou a reedição em vinil de 180 gramas. Ah tá, entendi o recado. Depois de algum papo protocolar, tchau. Sheila está me esperando em casa, impaciente e ligando no meu celular a cada cinco minutos.

Daniel Souza Luz é professor, escritor, revisor e jornalista


A reedição em vinil do Rated R, disco do Queens of Stone Age lançado originalmente com a capa azul em 2000.


Monday, December 06, 2021

Queda Livre

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 04/12/2021, depois de ser revisada pela minha noiva, Juliana Gandra. É uma versão reescrita e muito ampliada da minha crônica A Queda, de 2017. 

Há algum tempo disse que precisa reescrever minha crônica A Queda. Bem, chegou a hora, por uma série de fatores que não vêm ao caso agora. A questão é: talvez eu tenha começado a andar de skate em 1987, mas mais provavelmente apenas meu irmão começou naquele ano. Eu tinha medo; via uns moleques bem mais velhos, uns caras que na verdade eram altos que nem prédios e já deviam ter 18 anos, ou quase isso, descendo minha rua muito rápido em pé nos skates; eu pensava que no máximo desceria sentado. Parecia assustador demais, absolutamente apavorante, vê-los soltos em cima das pranchinhas com rodas. Bem, um ano depois lá estava eu descendo a rua de casa em cima de um skate, primeiro com medo, pouco depois destemidamente. Eu me recordo bem que tinha 13 anos quando comecei, pois os moleques mais novos diziam que eu era velho demais para começar a andar – imagina, pura pressão, não tinha o menor sentido. Apesar de ter alcançado esta idade nos fins de 87, é quase certeza que comecei a andar em 1988.

Tanto eu quanto meu irmão começamos com um péssimo skate, emprestado por um amigo chamado Ronan, primo de umas vizinhas. Ele sempre aparecia na rua Platina, onde residíamos, e nos emprestava o skate dele sem problemas. Meu irmão e eu convencemos meu pai a nos comprar skates bem melhores. Eles nos proporcionaram algo muito melhor do que descer rápido a rua, afinal isso os carrinhos de rolimã também proporcionavam. Aprender a dar ollie, o famoso flatland ollie inventado por Rodney Mullen, foi árduo, mas era isso que nos fazia voar. Não conheço sensação melhor na adolescência do que sair por aí superando obstáculos de ollie air.

Mais do que qualquer coisa, acho que foi isso que me deixou safo para a vida de adolescente e a ter alguma vivência de rua. Até então, eu era meio cabação das ideias. Era bem impressionável e um exemplo de pensamento mágico, sem qualquer fundamento na realidade, do qual nunca me esqueço é de quando, salvo engano, eu ainda não sabia andar de skate.

Meu irmão foi pular uma rampinha improvisada da rua Platina, que é uma leve ladeira, mas se atrapalhou e bateu a cabeça no chão. Fiquei impressionado com o baque seco da queda, pois eu estava ouvindo música bem alto no toca-fitas do carro do meu pai, pois era o único aparelho de som que tínhamos.

Acontece é que justo naquele momento eu estava ouvindo Bark At The Moon, do Ozzy Osbourne. Como eu não sabia quase nada de inglês e não anotaram o nome das músicas na fita, eu achava que o Ozzy dizia “Back, Demon!” no refrão – que, na minha cabeça, era “Volta pra cá, Demônio!”. Não fazia ideia que a tradução do título era Uivando Para a Lua. Pois bem, influenciado por discursos sensacionalistas da mídia, achei que meu irmão havia caído por minha culpa, devido à suposta influência malévola da música. Quando entramos em casa e ele era socorrido, eu me senti extremamente culpado. Mas ele se recuperou e tudo realmente acabou bem: aprendi inglês e dois anos depois já estávamos ouvindo Slayer, que é thrash metal e muito mais satânico do que o Ozzy, mas esses satanismos de araque do metal só impressionam quem é bocó.

Daniel Souza Luz é professor, revisor, escritor e jornalista


Still do videoclipe de Scrape, música de 1995 de Unsane, editado apenas com tombos de skate. O Unsane é um das bandas de noise rock da qual mais gosto. O nome desta crônica era originalmente Caindo de Novo, mas mudei para Queda Livre, pois assim que a concluí começou a tocar Free Fall, do Cornelius, artista japonês de música eletrônica, num aplicativo. Daí aproveitei a sincronicicidade. 



Wednesday, December 01, 2021

Todas as saudades

Esta crônica, em homenagem ao meu pai, saiu hoje nos jornais Mantiqueira e Jornal da Cidade, ambos de Poços de Caldas. Aqui está a versão definitiva, pois fiz algumas alterações: corrigi tempos verbais, acrescentei algumas palavras e cortei outras. Foram pequenas modificações em algumas frases para que ficassem mais compreensíveis ou deixassem de ser ambíguas. O texto não havia passado por revisão antes da publicações nos jornais, portanto o reli e revisei-o antes de publicá-lo aqui. 

Todas as saudades

Aos domingos, às sete da manhã ou até antes, um senhor, em idade muito provecta, às vezes tocava a campainha do apartamentozinho onde minha família morou durante minha infância e adolescência, nos acordando. Era um velhinho chinês, franzino, conhecido como seu Charles. No começo estranhamos, mas ele era tão simpático, com um sorriso tão largo, que ninguém se importava com as visitas inusitadas. De qualquer forma, eu e meus irmãos éramos crianças, não íamos dormir tardão no sábado à noite. Ele jamais aceitou um convite para entrar, conversava muito brevemente e sempre trazia presentes. Geralmente comida, principalmente arroz agridoce que ele mesmo preparava, salvo engano. Nunca havia comido algo assim; a princípio até que gostei, mas depois não conseguíamos comer; era muito atípico para nosso paladar infantil. Mesmo assim, recebíamos o presente de bom grado.

Por que ele gostava de nos presentear? Meu pai disse que uma vez o viu chorando na rua, pois o seu Charles não tinha mais dinheiro para comprar comida. Então meu pai lhe fez uma compra de supermercado e disse que ele não precisava pagar até ter condições financeiras novamente. Segundo meu pai, seu Charles não só o pagou posteriormente, como também fazia questão de demonstrar o quão agradecido era.

Hoje faz dois anos que Daniel da Luz morreu. Meu pai. Nunca me achei parecido com ele no jeito de ser. Fisicamente, somos parecidos, claro. Aliás, muito parecidos. Mas há outras características que foram herdadas e das quais não me dava conta. Vira e mexe ganho presentes de amigos a quem socorri financeiramente no passado. Só notei isso agora. Também não pedia para me pagarem imediatamente, não cobrava juros, nada disso. Fui movido pelo exemplo do meu pai, inconscientemente.

Convivi demais com meu pai nos últimos anos de vida dele, conversava o máximo possível sobre o passado, mas, mesmo assim, ficam lacunas. Não sei de onde ele conheceu o seu Charles, por exemplo. E ele adorava contar histórias, verdadeiras ou não. Era um pouco difícil discernir o que era verdade e o que era ficção. Tal como a vida.

Tirei centenas de fotos do meu pai, ainda assim parece que é pouco. Então recorro novamente a velhos álbuns, dos tempos analógicos, com novo olhar. Há fotos, a quais eu não dava atenção, nas quais amigos dele aparecem. Graças a minha mãe, hoje sei quem são alguns, tais como Mário Xandó de Oliveira, o avô do jogador de vôlei, e Joffre Rafael dos Santos, ex-vereador, de inesquecível voz rouquenha, com quem eu conversei dezenas de vezes ao telefone, pois ele ligava insistentemente para meu pai, mas com quem nunca me encontrei – não que me recorde. Não há fotos do seu Charles. Ele desapareceu ainda nos anos oitenta. Consta que simplesmente sumiu e a família nunca mais teve notícias dele. Mas hoje todas essas presenças evolaram. Tenho saudades dessas pessoas que sequer conheci de verdade, de toda uma sociedade que subsiste apenas na memória. Que dirá então do meu pai.

Daniel Souza Luz é professor, jornalista, escritor e revisor

Daniel da Luz (01/01/1941 - 01/12/2019). Tirei esta foto em 30/08/2006.



Monday, November 29, 2021

Escritos Negros: textos contemporâneos

Esta resenha foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 27 de novembro de 2021.

Esta outra coletânea lançada pela TAG, a exemplo de Uma Outra História, que tem o mesmo subtítulo, tem também como objetivo comemorar o Dia Nacional da Consciência Negra, que foi no sábado passado. É, no mínimo, uma leitura tão ótima quanto sua companhia. Particularmente, achei melhor, ainda mais forte. Como no outro volume, a tônica é dada na introdução, escrita pelo editor Luiz Mauricio Azevedo. Tomo a liberdade de reproduzir parte do início do seu texto, pois é muito seminal: “No Brasil, há uma ideologia literária da cor, que incide sobre aquilo que consideramos boa ficção. [...] Nesse deplorável projeto político de branqueamento cultural, aprendemos a reduzir Machado de Assis à ironia, Cruz e Souza ao exotismo poético e Lima Barreto ao alcoolismo”. Para captar, em parte, a diversidade das letras afro-diaspóricas, o livro não se resume apenas à literatura escrita por autores do Brasil, pois, como o próprio nome explicita, os descendentes de africanos retirados à força do continente espalharam-se por todo o mundo, particularmente pelas Américas. O primeiro texto, na verdade, é terno; nele, a autora afro-cubana Teresa Cárdenas Angulo rememora seu contato com os livros, seu fascínio com a escrita, sua decepção em notar que não havia personagens negros na literatura canônica ou mesmo nas mais vanguardistas e seus passos para se tornar uma escritora. A grande pancada no estômago vem com o texto seguinte, o conto Filsan, da escritora somali Nadifa Mohamed. É o momento mais visceral das duas coletâneas. Trata-se da história da militar que dá nome ao conto, premida pela solidão, inadequação e pressão para que seja melhor do que suas e seus colegas; o sexismo do qual é vítima acabará por vitimar civis. É de se perguntar se a autora não ampliou uma narrativa tão promissora num romance de longo fôlego. Uma leitura muito oportuna que vem a seguir é o pequeno, mas revelador, ensaio que Jeferson Tenório faz da sua trajetória enquanto escritor negro e quais implicações isso traz a ele e seus leitores. Nele Tenório aborda o processo de escrita e divulgação de O Avesso da Pele, que o levou a conquistar o prêmio Jabuti de melhor romance literário anteontem. Segue-se a este ensaio outra transcrição do bate-papo entre Marcelo D´Salete e Allan da Rosa, também presente em Uma Outra História, e nota-se que, na verdade, o início da conversa está neste volume. Particularmente revelador no diálogo, ao menos para mim, é o impacto que a revolução que levou à independência do Haiti, influenciada pela religião vodu, teve na cultura negra no Brasil e em inúmeros processos políticos no continente. Por fim, há mais um ensaio sobre o processo formativo de leitora e escritora, desta feita da escritora mineira Cidinha da Silva, que é muito direta sobre suas preferências e desinteresses. É ela quem traz as referências mais diversas e neste ensaio consolida-se de vez no leitor a importância do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD Literário), responsável pela distribuição de centenas de milhares de livros em bibliotecas públicas e de escolas, citado até mesmo por Teresa Cárdenas na difusão da sua obra no Brasil.   

Daniel Souza Luz é professor, jornalista, escritor e revisor




Monday, November 22, 2021

Uma Outra História – textos contemporâneos

Esta resenha foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 20 de novembro de 2021. 

O clube literário TAG acerta mais uma vez numa coletânea. Desta feita, essa foi lançada para comemorar o Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado hoje, dia 20 de novembro. É um acompanhamento para o romance deste mês, e que bônus! São textos que refletem sobre a presença de autores negros não apenas na literatura, como também nas relações sociopolíticas em todo o mundo, muitas vezes de um ponto de vista que expressa o pensamento decolonial, que rejeita o supremacismo cultural eurocêntrico. A introdução, escrita pela professora Zélia Amador de Deus, é ótima e estabelece um eixo comum a muitos dos textos de coletânea: a obra literária de Toni Morrison, autora de Sula, que foi lançado pela TAG neste ano e o qual já resenhei. Zélia me deu a ideia de que seriam ensaios acadêmicos, mas ledo engano o meu. O primeiro é do incensado Itamar Vieira Júnior, escritor baiano que venceu inúmeros prêmios com o romance Torto Arado no ano passado, incluindo o Jabuti. Ele tangencia o ensaio pessoal, ao falar de sua relação com bibliotecas, uma das quais no bairro onde viveu Jorge Amado, e, também, demonstra que, antes de chegar em Morrison e outros autores negros, passou por clássicos da literatura juvenil brasileira e clássicos como Thomas Mann, Fiódor Dostoiévski, José Saramago e Jorge Luis Borges. Ou seja, não há uma repulsa à literatura de autores brancos europeus ou que dialogam com a tradição ocidental, mas sim um rompimento com o viés elitista que rejeita outras vivências e/ou produções fora dos centros culturais usuais. No entanto, após certa digressão, ele opta por produzir um ensaio mais convencional mesmo, ainda que sem viés academicista, a respeito do prazer da leitura e sua potencialidade educacional. Quem faz um ensaio pessoal a respeito do contato com os livros e o posterior mergulho na literatura produzida por negros, em especial por mulheres negras, é Djamila Ribeiro. Ainda eu que tenha reservas com relação a sua arrogância midiática (vide os ataques que ela fez à militante Letícia Parks, também negra, mas desprezada por Djamila por não ter a pele retinta), não tem como não admirar sua postura editorial, cujas razões são esmiuçadas no seu belo ensaio. O texto seguinte é o melhor da coletânea e é da lavra da haitiana Edwige Danticat. Publicado originalmente na prestigiada revista New Yorker, a bíblia do jornalismo literário, é uma mistura vigorosa de texto de memórias e ensaio pessoal. Tem a grande qualidade do texto literário, mencionada no ensaio de Itamar Vieira Júnior e perseguida obsessivamente pelo jornalismo literário (que é o jornalismo aprofundado que despreza as convenções jornalísticas do texto com lide e pirâmide invertida, não sendo necessariamente o jornalismo que cobre literatura): a capacidade de nos transportar a locais onde nunca estaremos, eventualmente num passado distante, e a experimentar vividamente histórias e sensações de outrem. Segue-se ao brilhante relato dela, um doloroso epitáfio para uma haitiana cuja existência evola junto ao seu país, um riquíssimo bate-papo entre o quadrinista Marcelo D’Salete e o dramaturgo e historiador Allan da Rosa. Mesmo quem já tem algum conhecimento das referências que eles evocam tem muito a aprender com o diálogo registrado, que relembra personagens e autores quase apagados pelo racismo estrutural. Por fim, há um complexo ensaio, ainda que curto, do congolês Alain Mabanckou. Depois de sair da África e imigrar para a França, residindo atualmente nos EUA, ele investiga as contradições que os imigrantes vivem e como as identidades transfiguram-se. Da sua vivência ele arranca conclusões instigantes sobre a condição humana. Leiam com atenção redobrada.

Daniel Souza Luz é professor, revisor, jornalista e escritor






Monday, November 15, 2021

New Model Army e Pixies

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 13 de novembro de 2021. É uma versão retrabalhada da minha Micrônica 2126, de mesmo título, escrita em quatro de março de 2018. O texto foi revisado pela Juliana Gandra após a publicação no jornal, que manteve os erros de concordâncias verbal e nominal que deixei passar no texto original.   

Nunca me esqueço: um dia o Kid Vinil apresentou no Som Pop, programa de videoclipes da TV Cultura no qual era VJ na virada dos anos 1980 para os 1990, vários clipes do New Model Army na sequência. Tempos depois, conforme era costume à época, pedi para gravarem uma fita do Doolittle, do Pixies, numa loja de discos extinta há mais de um quarto de século. Até hoje tenho a fitinha, ainda a escuto, apesar de agora ter o Doolittle em CD. Os nomes das músicas vinham datilografados. Como sempre sobrava uns espaços após o final dos lados dos cassetes, eles gravaram umas músicas extras, mas sem indicações dos nomes. Nessa do Doolittle vieram três que eu não conhecia, mas pelo baixo, que tanto lembrava o meu amado Joy Division, quanto pela voz eu soube imediatamente qual era a banda: o New Model Army. Depois, muitos anos depois, descobri os nomes das três músicas: Spirit of the Falklands, Christian Milita e Waiting, que estava com um pedaço cortado. Ornando com o nome da música, tive que esperar anos para achar um CD para locar e gravar o primeiro disco, finalmente escutando o pedacinho que faltava. Mais anos ainda depois, por sorte, achei num sebo o EP de White Coats, a música cujo baixo mais me hipnotizava. Deixei cair e amassar a capa num canto. Virou usado, virou meu.

 

Daniel Souza Luz é professor, escritor, jornalista e revisor


A fita cassete que cito na crônica. Holy Words é o nome que eu supus ser de Christian Milita, Spirit in the Falklands é porque li em algum lugar o nome da música, associei (corretamente) àquela gravação e a grafei errado na capinha e, por fim, eu gravei essa versão do The Clash para I Fought The Law porque ela cabia toda no final do fita (ao contrário de Waiting, que estava cortada). Eu mesmo fiz o desenho do duende, em alusão ao Pixies, nos anos noventa. Tirei esta foto em 27 de outubro de 2015.  


Monday, November 08, 2021

Velha Escola

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas) em seis de novembro de 2021. É uma versão um pouco ampliada da minha Micrônica 1997, de 26 de outubro de 2017.

Talvez um dos aspectos dos quais mais tenho saudades dos anos noventa é fato do meio punk/hardcore ser o mais aberto para novas ideias e não se encontrar nenhum machocore de direita ignara na cena. Ao menos eu, felizmente, não conheci nenhum à época. Veganismo, sexismo, homofobia, racismo, violência policial e todos os temas hoje prementes eram discutidos o tempo todo em shows e, também, quando encontrava amigos e amigas com gosto musical semelhante. Muitos dos debates destes anos pós-Jornadas de Junho de 2013 já tinha discutido há vinte anos ou mais. O punk e o hardcore foram as melhores escolas que frequentei; as letras das músicas e os encartes foram os melhores professores. Foi tão ótimo quanto ter cursado a Unesp, a Unicamp e a pós-graduação em Jornalismo Literário. Ainda havia os fanzines para ajudar a nos iluminar ainda mais. Lembro do enorme impacto que tiveram bandas feministas como Dominatrix, Bikini Kill, Pin Ups e muitas outras. Discutia nossa relação com minha namorada de então baseado nas letras da Kathleen Hanna. Parecia que tudo evoluiria muito. Mais de duas décadas depois, evoluímos. Mas a reação é forte. Tudo bem, quem frequentava rodas de pogo está preparado.   

Daniel Souza Luz é professor, jornalista, revisor e escritor


Kathleen Hanna à frente do seu grupo The Julie Ruin, em 10/11/2013, no Fun Fun Fest em Austin, Texas/EUA.
Foto tirada por Anna Hanks e reproduzida via licença Creative Commons. 


Wednesday, November 03, 2021

Jello Biafra já tinha avisado

Esta crônica foi publicada em 30 de outubro de 2021 na página nove da edição 7626 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). É uma versão retrabalhada da minha Micrônica 2009, que tinha o mesmo título e publicada originalmente em sete de novembro de 2017. 

No final de 2008 fui chamado para um concurso que prestara anos antes e do qual havia até me esquecido, pois abandonei a faculdade de Direito. Era para trabalhar no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, como oficial judicial, num cargo que chamam de precário – sem estabilidade, mas com possibilidade de efetivação. Uma prévia perversa da precarização do trabalho que grassaria a partir do nefando governo de Michel Temer. Mas, enfim, àquela época trabalhava numa assessoria de imprensa em Campinas, justamente atendendo associações de magistrados de São Paulo, e estava de volta à Unicamp, como aluno especial na pós de multimeios, estudando Cinema Brasileiro. Estava bem feliz lá, mas topei voltar, afinal era uma carga de trabalho de apenas seis horas e para ganhar um pouco mais, pois voltaria a morar com meu pai por ao menos algum tempo e economizaria com aluguel. Comecei no início de 2009. Fui nomeado para uma secretaria criminal – ou vara criminal, pouco me importa o juridiquês, pois é o mais patético dos jargões. Pensei: “Tudo bem, estamos no século 21, deve ser um trabalho civilizado”. Ledo engano. Não, não estávamos – eu podia estar, mas o não arcaico judiciário brasileiro, que mal disfarça seu pendor escravocrata. As letras de punk rock/hardcore e rap sempre me avisaram, sempre soube, mas imaginei que os poderes haviam se civilizado minimamente tantos anos após a redemocratização. Foi ingenuidade demais para quem sempre ouviu punks e rappers. Caí em depressão, é deprimente demais fazer parte da aplicação do direito penal, uma máquina tão racista que chega a ser caricata. Sem falar ser obrigado a conviver com os privilégios nababescos da magistratura, uma casta inimputável; na genial mudança que fez na letra de I Fought The Law, do The Crickets (originalmente é “Eu lutei contra a lei e a lei venceu”), para os Dead Kennedys, Jello Biafra já havia flagrado o maior dos crimes: “Eu sou a lei, então eu venci”.

Daniel Souza Luz é professor, jornalista, revisor e escritor


Jello Biafra em Nova Iorque, 13 de julho de 2002. Foto tirada por Scott Beale/Laughing Squid (laughingsquid.com) e reproduzida aqui via licença não comercial Creative Commons.


Monday, October 25, 2021

Nêmesis, de Philip Roth (resenha)

Esta resenha foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 23 de outubro de 2021. 

O lançamento deste livro pela TAG, em parceria com a Companhia das Letras, foi muito oportuno: em março, salvo engano, quando a pandemia estava acelerando no Brasil a níveis absurdos. Com UTIs com 100% de ocupação e pessoas morrendo na fila de espera, não tive coragem de seguir na leitura. Quem foi mais racional e prosseguiu, com certeza pôde refletir profundamente e compreender melhor o ponto em que chegaríamos agora neste segundo semestre. Roth é dos raros autores a incorporar a Filosofia à Literatura de forma orgânica, sem pedantismo, numa narrativa fluída na qual questões contemporâneas são esmiuçadas sob o ponto de vista de discussões de pensadores do século XX. Este livro, no entanto, é de 2009 e é seu canto do cisne. É ambientado, mais uma vez, na sua cidade natal, Newark. No entanto, a trama passa-se em 1944 e a doença sem cura, também provocada por um vírus, é a poliomielite. Há muitos pontos de contato com o que o mundo vem passando desde o fim de 2019. Mas também há diferenças marcantes: a doença não atacava tanto pessoas na terceira idade ou mesmo adultas, mas sim crianças. E, principalmente, não havia uma política genocida de um governo de extrema-direita para que ela fosse irresponsavelmente espalhada para que se alcançasse imunidade de rebanho. É justamente esse o ponto de tensão que permeia a história: as pessoas não queriam que a doença se espalhasse. No entanto, no fraturado caldeirão étnico dos EUA, um grupo de arruaceiros italianos decide ir ao bairro judeu para dar cusparadas em direção a crianças judias, dizendo abertamente que queriam contaminar judeus. O romance não se foca no antissemitismo, no entanto. Roth conta a tragédia de um professor de Educação Física, Eugene “Bucky” Cantor, jovem judeu muito forte e míope, frustrado por não poder lutar na Segunda Guerra Mundial, através do seu ponto de vista filtrado por um narrador que é na verdade um personagem secundário, numa manobra narrativa muito interessante – por vezes, esquece-se disso e pensa-se estar diante de um narrador onisciente, mas isso é esclarecido no capítulo final, no qual se compreende que as poucas lacunas da história são justo as que Cantor estava relutante em contar. Não é à toa: admirado na comunidade, especialmente após enfrentar absolutamente sozinho os filhos de imigrantes italianos que ameaçavam seus amados alunos, ele passa também a ser malvisto conforme as crianças que ele treina vão adoecendo e morrendo. Desacorçoado e impotente, ele entra num processo de fuga perene e degradação impensável para alguém tão autoconfiante. O reencontro com o narrador, Arnie Meniskoff, também vítima da pólio, é o que proporciona reflexões mais aprofundadas, pois Cantor não consegue elaborá-las. São especialmente fortes as sobre culpa e sobre sequelas que talvez podem até se agravar anos depois, arruinando planejamentos para a vida – aí sim temos outro ponto de contato com a atualidade. O ateísmo de Roth não é tão pronunciado nesta obra, mas ele não deixa de apontar como processos aleatórios e fora de controle são determinantes para os indivíduos tentados a racionalizá-los ou espiritualizá-los, sempre em vão. Por fim, sempre me perguntei por que Roth se aposentou dos romances, embora ainda tenha vivido quase mais uma década, depois de uma carreira tão profícua. Sempre pode haver mais algo a ser escrito. Mas talvez ele tenha contemplado as quatro últimas páginas deste livro, assim que as escreveu, e pensado: é isso. É compreensível, são um primor.   

Daniel Souza Luz é professor, revisor, jornalista e escritor



Monday, October 18, 2021

O Nobel

Este conto foi publicado no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 16/10/2021. Era inédito, foi escrito no dia anterior. 

Um espasmo de ódio sacode Spaticano, sempre cioso de sua organização. Os livros expostos na vitrine não estão de acordo com a lista dos mais vendidos desta semana e as exigências das editoras. É um trabalho artístico essa arrumação. Ele jamais deveria ter delegado a um empregado. Até porque alguns pedidos jamais devem ser atendidos. Os livros comemorando o centenário de Paulo Freire nunca deveriam estar em destaque. Algo assim ele só aceitaria, muito a contragosto, se ele entrasse na lista dos dez mais vendidos. É verdade que a revista na qual sempre se fiou não é mais sua favorita. Spaticano se revolta ao ler alguns dos artigos hoje. O novato, ainda no contrato de experiência, não entende. “É que eles cederam na guerra cultural. Você não compreenderia, é novo demais. Precisa fazer os cursos que fiz para entender”, explica Spaticano, suspirando. “O senhor leu muitos livros nesses cursos?”, pergunta, ingenuamente, o novato. “Vi os vídeos. Não tenho tempo de ler, tenho tarefas demais”, justifica Spaticano. Agora ele está à procura do empregado mais antigo. Está sedento por justiça. Dá aquele esporro e arremata: “Na minha livraria não!”. Depois procura nos catálogos das editoras se o novo laureado pelo Nobel de Literatura já foi editado no Brasil. Não foi. “Quem deveria ganhar um Nobel de Literatura era eu”, resmunga. O novato, querendo entender a dinâmica da livraria, pergunta o que ele disse, pois não escutou bem. Irritadiço, Spaticano repete a frase com certa brutalidade: “Quem deveria ganhar um Nobel de Literatura era eu”. Diante da cara de incredulidade do pobre-diabo, ele complementa: “Quem faz de verdade os livros somos nós que os vendemos. E eu sou o melhor vendedor. Não é justo isso. Vou escrever um livro sobre vendas de livros, especificamente”. Agora quem está incrédulo e largou seus afazeres é o empregado das antigas, leitor voraz que bem sabe como o patrão é iletrado. Notando que já conquistou sua audiência, afinal duas pessoas prestando atenção é o começo da trajetória do vencedor, Spaticano discursa triunfante. “Livro é igual salsicha, eu fui gerente de vendas uma fábrica de salsichas, é tudo a mesma coisa. É só uma mistura de papel e umas merdas. Vou escrever o meu! É só saber chegar nas pessoas certas da sociedade para ser um sucesso”. Um cliente entra na loja, alheio ao espetáculo. O novato vai atendê-lo. O velho empregado não resiste: “Você esqueceu do sangue”. Spaticano está tão fascinado por seu próprio rompante que sequer escutou.       

Daniel Souza Luz é professor, revisor, jornalista e escritor




Wednesday, October 13, 2021

Gerô e Cris

Este conto foi publicado no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 09/10/2021. Eu o escrevi no dia sete de outubro e por coincidência no dia seguinte viralizou nas redes sociais um vídeo de uma mesa de debate sobre racismo na qual o Demétrio Magnoli censurou a manifestação de negros e permitiu que apenas brancos falassem. O conto não foi escrito tendo em mente o Magnoli, mas sim em sujeitos que são muito parecidas com ele. 

Coça a papada com a mão macilenta em frente ao espelho. Encara-se, incomodado. O fixo toca. Ninguém liga mais nesse número. Estranha, mas atende.

- Fala, Gerô!

- Cris! Há quanto tempo! Que surpresa boa. O que você conta de bom?

- Ah, nada de especial. Pandemia, tudo parado. Estou escrevendo bastante, ao menos. E você?

- Quem me dera... Jornalismo desconcentra. Escrevo bastante também, mas só para imprensa. Mas tudo bem, ao menos nunca saio de casa, estou fazendo um isolamento rigoroso.

- Eu também! Estou acompanhando tudo, rapaz. Assinei a revista nova, tenho lido sua coluna online. Impecável, como sempre.

- Muito obrigado, meu caro!

- Precisa voltar para a Literatura, Gerô! São poucos que ainda a honram. Se existisse essa besteira de lugar de fala, esse é o seu.

- Ah, estou tão desanimado... Foi um fiasco esse último. Mais um. Eu sei, você sabe.

-  Não é assim também...

- Foi. Nem o esquema da revista deu certo. E deu tão certo pro Marião... Ainda bem que saí de lá.

- É, nem sua crítica ao meu livro fez ele bombar. Mas não é culpa sua. A revista que já estava em decadência, não é como antes.

- Sim, mas ao menos você vende sempre. O incrível é que a sua crítica ao meu, que eu tinha tanta certeza que faria um barulho, não atraiu ninguém. Nada. Queria ganhar meus trocados.

- O meio cultural daqui que não está preparado pra sua sofisticação, Gerô. Está vendo que horror essa tentativa de transformar a Carolina Maria de Jesus em escritora? Em escritora de respeito! Esse país não tem jeito. É uma terra de parvos.

- E esse preto que ganhou o Nobel agora? Nunca ouvi falar. Não suporto mais o politicamente correto, Cris. Um dia ainda vão nos proibir de ler os clássicos apenas porque são europeus.

- Nem me fale. Mas, deixa eu te falar, faz tempo que a gente não conversa e fiquei preocupado com algo... Aquele povo festeiro percebeu nosso esquema de nos elogiar na revista? Deu certo esperar umas semanas para que não notassem? Você sabe, não tenho redes sociais.

- Passou batido, fica tranquilo! Mas não sei se foi porque armamos direito. É que eles inflavam a circulação, distribuem vários exemplares gratuitamente pelo país todo. Ninguém mais lê a revista; você está certo, entrou em declínio.

- É, por isso não vendemos mais. Mas e agora, daria certo fazer outro esquema pra promover meu livro que estou terminando aqui?

- Não, não. Ficam em cima. Não me deixariam escrever a respeito.

- Ah, pena.

-Bem, sendo bem Poliana, ninguém parece ter percebido que foi tudo combinado. Às vezes foi melhor ter passado batido. Se fosse naquela época que tentei esmagar a petistada nas letras... Teriam caído matando.

- Era o meu temor. Imagina se alguém percebesse? Iam fazer aqueles textos nos estereotipando como elitistas, racistas, pedantes, esnobes e sabe-se lá mais que outro delírio.

- Pois é, imagina só! Que falta de imaginação. Esse povo não sabe de nada. São sempre esses personagens caricatos, planos.

- Não sabem como valorizamos o diálogo democrático.

- E sofisticado.

- Pois é. Bem, tenho que desligar, o alarme do SUV disparou aqui. Abraço!

- Vai lá! Vou terminar de bebericar meu Chateau Petrus. Abraço!

 

Daniel Souza Luz é professor, revisor, jornalista e escritor

Thursday, October 07, 2021

Raimundos Versus Pin Ups (eu era muito feliz há 25 anos)

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade em 04/09/2021. Originalmente chama-se Raimundos Versus Pins Ups (eu era muito feliz há 21 anos), pois a escrevi e publiquei como a Micrônica 1996 em 25/10/2017. Premido pela falta de tempo e outras tarefas, esqueci de alterar o título quando a mandei para o jornal, de última hora. O texto que foi publicado nele é mera transcrição daquela micrônica escrita à mão. Agora corrigi o título, observando a passagem do tempo, para essa publicação e resolvi fazer várias alterações, acrescentando muita mais informação ao texto e eliminando muita repetição de termos e palavras. Esta versão publicada aqui, portanto, é a definitiva.  

Sempre gostei de contar esta história, mas nunca a escrevi. As bandas que mais vi shows ao longo dos anos noventa foram os Raimundos, os Pin Ups e o Autoboneco. Em Bauru, onde fiz a universidade, o Autoboneco, cujo nome na verdade é um símbolo como o do Prince e na época era conhecido como Bonequinho, era a banda que mais gostava na cena underground e naturalmente foi que mais vi ao vivo. Raimundos era zoeira adolescente com a qual me identifiquei assim que ouvi Puteiro em João Pessoa, antes do primeiro disco sair, em 1994. Vi um trecho num show exibido na MTV; um amigo de Ribeirão Preto, o Vítor, gravou pra mim. Em 1995 consegui ver o primeiro de vários shows deles que eu viria a assistir. Pin Ups conheci antes ainda, quando o Luiz Gustavo, o vocalista, cujas HQs eu gostava demais, ainda estava à frente do grupo. No entanto, só vi shows depois que a baixista Alê Briganti se tornou a vocalista. Por mim tudo ótimo com ela no vocal de 1996 em diante, minha música favorita deles era Witkin, a única que ela cantava antes (se não se levar em conta o projeto acústico do grupo, o Gash). Com a Alê à frente, o Pin Ups tornou-se a voz do feminismo no rock brasileiro e o Raimundos era a face das letras machistas, mas eu levava no bom humor. Entrevistei tanto ela quanto o Rodolfo, à época ainda à frente dos Raimundos, para o meu TCC, no final daquela década. Ambos foram legais ao me receber, em especial ela, ao encontrá-la por acaso em Santos – eu ainda marcaria a entrevista em São Paulo, mas fizemos a entrevista no improviso, o que não foi nenhum problema, pois eu já tinha a pauta na cabeça. Apesar de não ter gostado de algumas perguntas, ele me tratou educadamente e não precisei pedir para assessoria de imprensa antes e nem nada assim, simplesmente me apresentei, disse que era para um trabalho da faculdade, que iria ao ar na rádio universitária, e ele me concedeu a entrevista imediatamente, sem qualquer formalidade. E os conflitos de hoje espelham o que ambos diziam.

 

Daniel Souza Luz é jornalista, escritor, revisor e professor


Meu exemplar do vinil do Scrabby?, o segundo LP do Pin Ups (sem contar o projeto acústico Gash, de 1992), lançado em 1993 pela gravadora independente Devil Discos. Tirei esta foto em 21/10/2012 e a publiquei originalmente no meu perfil do Twitter, naquela data. 


Wednesday, October 06, 2021

Ramones

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em dois de outubro de 2021. É uma versão reescrita e um pouco ampliada da minha Micrônica 1976, de cinco de outubro de 2017. Tal como o som dos Ramones, é rápida e simples. 

Estava andando de skate com meu irmão Eurico e meus amigos no centro. Estávamos em 1988, havia skatista para tudo que é canto da cidade. Na esquina das Rio Grande do Sul e Prefeito Chagas encontramos um amigo, o Helinho. Trocando ideia, ele me fala sobre os Ramones. Digo que nunca ouvi e ele fica espantado: “Como assim, você anda de skate e não conhece Ramones?”. No dia seguinte o Helinho, que curiosamente hoje pouco vejo e é um amigo distante, apareceu na rua de casa e trouxe uma fitinha do Ramones para me emprestar. Eu nem pedi, pelo que me lembro foi generosidade dele. Hoje, relembrando a sequência das músicas, sei que era uma gravação da coletânea Ramonesmania, então recém-lançada. Recordo-me bem do som que meu pai havia acabado de mandar fazer: era um toca-fitas de carro acoplado a caixas de som pequenas, instalado no quarto que eu dividia com meu irmão. Pus a fitinha pra tocar e aconteceu o mesmo momento mágico que ocorreu com milhões desde o primeiro contato com Ramones: daí em diante minha vida mudou pra sempre.

Daniel Souza Luz é professor, revisor, jornalista e escritor



Estátua em homenagem a Johnny Ramone. Foto de Scott Beale/Laughing Squid (laughingsquid.com), compartilhada aqui via licença Creative Commons


Wednesday, September 29, 2021

O Facho

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 25 de setembro de 2021. Foi revisada atentamente pela Renata Chan. É uma sátira política inspirada no Machado de Assis, John Boyne (no final) e principalmente no grande Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. E, claro, nos transfóbicos políticos da terrinha, em especial naquele que se acha o lídimo representante da liberdade de expressão - desde que seja a dele, senão não procuraria interditar a discussão da identidade de gênero. 

1921. Na modorrenta Poções de Cura, cidade interiorana que passara da condição de vila no começo do século, a pequena população foi chacoalhada por um intrépido vereador, que trouxe, para o júbilo do seu proponente, um debate então inaudito à câmara e que logo ganharia repercussão nas ruas e até fora da província. Em moção de apoio a Arthur Bernardes, que então ocupava a chamada Presidência do Estado de Minas Gerais e que no ano seguinte ocuparia a presidência de fato do Brasil, o nobre edil Claudelino Marcel Queiroga Neves Pazuello de Carvalho saiu-se com o seguinte discurso, tido por muitos como um disparate, mas que encheu de orgulho o bravo orador, maravilhado com a própria oratória:

- Faz muito bem nosso grande líder desse Estado em vetar os projetos apresentados pela oposição. Vejam bem, tenho convívio e até amizade com pretos e mulatos, não se trata de conservadorismo, até porque a douta princesa Isabel extinguiu a escravidão, mas é um absurdo que a oposição queira dar mais guarida ainda a essa gente, que já tem direitos demais desde então. Daqui a pouco vão querer usar os mesmos banheiros que nós!

Surpreendido, o líder da oposição local pede a palavra, agastado desde o princípio do discurso delirante.

- Mas o que vossa senhoria quer dizer com isso? Mas já não usam? Racismo é um absurdo. Queiram nossos governantes que um dia isso seja crime! Jamais havia escutado tamanha aleivosia neste magnânimo espaço, até então prístino!  

Inabalável, Claudelino retorquiu de imediato.

- Pois crime aqui deveriam ser considerados o samba e a capoeira, tal como já fazem na capital da nação! Se vossas senhorias não sabem, no Rio a polícia coíbe tais manifestações ditas “culturais”, que impedem que alcancemos nosso papel de novos timoneiros da cultura greco-romana, que Deus há de nos legar!

Atônitos, os demais membros do legislativo assistem calados à tagarelice que compraz Claudelino. O líder da oposição é a exceção.

- Pois saiba que aqui não há segregação por lei, como há nos Estados Unidos, nobre colega!

Claudelino não se fez de rogado.

- Essas ideologias de igualdade importadas vão destruir a família brasileira! São piores do que o nazismo e o fascismo.

Neste momento, o narrador, que apenas era observador, irrompe pelas portas da câmara, tornando-se participante, e dispara:

- Não cabe falar de nazismo aqui, estamos em 1921! Fascismo, talvez, afinal, Mussolini já apronta das suas na Itália, mas nazismo não! Trata-se de um anacronismo que está prejudicando a narrativa!

Claudelino assente e agradece a intervenção.

- Para que vossas melhorias entendam meu brilhante raciocínio, usarei um exemplo melhor, pois sou um facho de luz que vos ilumina. Quando as tropas do safardana Solano López, o bolivariano ditador paraguaio, nos atacavam, era possível ver as baionetas e balas de canhão vindo na nossa direção. Já esse novo inimigo é invisível, insidioso. Adentra nossos lares, o corrompem com a ideia de igualdade; é uma desonra para nossa sociedade, tão elevada em seus princípios.

Neste momento o narrador torna-se onisciente, o que não deixa de ser uma blasfêmia, e ciente da perversidade dos pensamentos de personagem tão ignaro, não se contém e encerra a história com a seguinte fala:

- Em primeiro lugar, tu não passas de um facho de luz na contramão que obscurece nossa visão! Em segundo lugar, mesmo que Bolívar seja tido como um herói na América Latina, está muito cedo para usar o termo bolivariano, tratando-se de outro anacronismo que conspurca essa narrativa. Por fim, todo preconceito é odioso e a totalidade do seu discurso é repugnante, digno do biltre, do sacripanta, que tu és. Daqui um século tudo isso estará superado. Não é possível que os tribunais superiores tenham que considerar crime racismo e outros preconceitos contra seres humanos que não têm nosso perfil daqui a cem anos, pois até lá a humanidade terá evoluído muito, esses reacionarismos estarão extintos, e quem os exarar terá o ostracismo que merece. Não é possível que eu esteja sendo tão ingênuo.  

O texto e o contexto. Ampliando no celular, é possível ler tudo.


Tuesday, September 21, 2021

Nêmese

Este conto foi escrito em 20 de janeiro de 2014. Revisei-o na véspera, sem alterar nada da história, para publicação no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 18 de setembro de 2021. O conto mostra o destino de um dos personagens do meu primeiro livro/plaquete, No entanto, o reescreverei radicalmente para o meu segundo livro/plaquete. 

Ecsel mira o morro que se descortina a uns quinhentos metros, quando o mormaço dos exaustores da usina eólica dissipa o sinomog abrupta e brevemente. Ecsel mira celeremente. A ex-esposa do Gerente municipal estava passeando com o pug de estimação na rua central do condomínio, tal como lhe foi minuciosamente informado pelo mandante. O silenciador da metralhadora de precisão funciona a contento. A mulher tomba com o rosto irremediavelmente desfigurado. O pug está ileso, conforme foi expressamente encomendado. Com o focinho alongado cirurgicamente com o dinheiro do mandante, Gonzo bate num poste ao correr e olhar para trás ao mesmo tempo, vítima de sua falta de noção espacial devido à intervenção do veterinário na face. O mandante, observando do escritório pela cam do seu drone, tem um esgar de arrependimento, preocupado com Gonzo, que provavelmente fraturou o excerto ósseo.

Ecsel desmonta rapidamente a metranca, enfia-a na barriga falsa coberta pelo vestido, abre a porta da casa de serviço do telhado da clínica de fertilização transgênica, desce e sai incógnito, confundindo-se com os demais grávidos.

Nas ruas esvaziadas, no entanto, Ecsel aperta o passo. Os ataques dos neoavivamentistas contra os transgêneros ou os hippocampistas tornaram-se frequentes até mesmo em cidades com meros duzentos mil habitantes. Pelejando há dois anos para sair de uma cidade pequena, Ecsel adotou a estratégia de receber apenas em avatar para evitar ser rastreado. Em dois meses fará 14 anos e atingirá a maioridade penal, mas mesmo assim quer evitar qualquer estigma. É um perfeccionista e não pretende cumprir qualquer medida socioeducativa. Já é a 17ª encomenda e, pelas suas contas, conseguirá converter os avatares em uma soma razoável de créditos reais, mesmo perdendo no paralelo; o suficiente para financiar um quarto com banheiro em Manaus e toda a faculdade de engenharia de impressão. Sem que os pais desconfiem de que é o matador de aluguel que mais assombra a concessionária de segurança pública, pois ambos creem que Ecsel ganha tudo monitorando fluxos de opinião para as campanhas eleitorais do avô, o Supervisor distrital. Basta ser discreto. Enquanto minhocava essas questões na cabeça, para seu desgosto, a circunstância estragou a discrição. Dois quarteirões adiante topa com Hugo, um colega de sala do Ciclo Básico. Pensa que talvez terá de eliminar Hugo e o cumprimenta com um sorriso contrito.

- Oxe, seu nome é Êcsel, né?

- Não, se pronuncia Écsel.

- Que diferente, de onde que veio esse nome?

- É de um cantor de uma banda da qual minha mãe gostava. – Ecsel estava pensando em atirar à queima-roupa mesmo, já tendo acionado o disruptor remoto das câmeras de segurança daquelas ruas antes de sair da clínica.

- Nunca ouvi falar.

- É coisa de velho.

O taser de Hugo estava regulado para infarto fulminante e fez dessas as últimas palavras de Ecsel. Ele achou que Ecsel havia comprado um bebê semipronto. Não o questionou, nem se questionou, só viu mais um negacionista dos cisgêneros – é assim que os neoavivamentistas os denominam. Tornou-se inconscientemente o assassino mais prolífico da cidade. Sem pensar em reconhecimento argentário, almejando apenas a benção de seu pastor.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, revisor e escritor

Meu primeiro livro/plaquete, lançado em 2019. A capa foi ilustrada pela Juliana Melo.  


Wednesday, September 15, 2021

O dia em que eu tretaria com o Brizola

 Esta crônica foi publicada na página 9 da edição 7549 do Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 11 de setembro de 2021. Eu a escrevi à queima roupa pouco antes do horário do fechamento do jornal e não passou por revisão, a não ser por mim mesmo agora, para publicação no blog. Fiz pequeníssimas modificações; a principal foi desmembrar a última frase. 

Já escrevi uma crônica sobre as eleições de 1989: para mim foram divertidíssimas. Eu sei que teve baixaria até que parecida com as de hoje, como a vergonhosa edição que a Globo fez do debate entre Lula e Collor, abordada no documentário Além do Cidadão Kane. Outra história famosa é a do sequestro do empresário Abílio Diniz por um grupo de extrema-esquerda do Chile, o MIR: quando a polícia encontrou o cativeiro e prendeu os sequestradores, os apresentou com camisetas do PT, as quais teriam sido plantadas. Enfim, era jogo sujo sem meios virtuais. Mas tudo isso estava fora do meu radar, eu era novo demais. Mesmo assim, acompanhei as eleições com relativa atenção. Apesar de ainda existir a União Soviética, esses papinhos furados de fantasma do comunismo me pareciam bem insignificantes. O ambiente era muito mais de alegria, devido à redemocratização; não era algo tão conflagrado quanto agora. Eram muitos candidatos à presidência e os debates eram muito engraçados. Eu levei na galhofa, apesar de saber da seriedade e da importância. No meu anarquismo pueril, eu queria mais era zoar todos os candidatos. O que efetivamente fiz, mas isso já contei na crônica que mencionei na primeira frase, chamada República Selvagem, publicada neste Jornal da Cidade anos atrás. Nela, conto que Brizola almoçaria na minha casa durante a campanha. Meu pai era filiado ao PDT e brizolista roxo. No entanto, minha mãe vetou a ideia, pois o apartamento em que morávamos era muito acanhado. Era num predinho do BNH, o Minha Casa, Minha Vida dos tempos da ditadura. Ela achou que não ia dar certo um monte de correligionários dele e mais equipes de TV lá. E ela estava certa, não caberia. Como já disse, achei uma pena, pois seria divertido vê-lo xingar o Collor dentro da minha casa. Mas, pensando bem, acho que acabaríamos discutindo. Sei que o Brizola foi um sujeito muito corajoso, teve vários méritos, impediu um golpe de estado em 1961. Posso até admirar isso, mas eu já o achava um populista. O jeito dele falar me irritava e os seus imitadores daqui mais ainda – meu pai não imitava o jeito dele falar, ao menos ele tinha personalidade própria. Imagina se ele entra no meu quarto e vê pôster de skate e videogame. É certeza que iríamos bater boca. Consigo visualizar ele criticando tudo, dizendo que são coisas da “juventude americana” ou algo assim. E eu retorquiria dizendo que ele era um velho gagá. E se ele visse alguma Playboy lá? Acho que teria uma síncope. Consta que ele quis ou conseguiu impedir uma parente (Neusinha Brizola, salvo engano) de posar para a revista. Acho não tínhamos mais armas de brinquedo àquela altura, mas não tenho certeza. Era capaz dele pegar e jogar no lixo. Hoje eu acho que ele está certíssimo, mas é óbvio que eu não ia engolir isso. Não, estou exagerando; ele ia criticar tudo, mas não ia dar uma dessas. Mas deveria, no final das contas seria uma ótima memória. Pena que não aconteceu essa nossa briga. Grande Brizola.

Daniel Souza Luz é jornalista, revisor, professor e escritor


Leonel Brizola pula fogueira de armas de brinquedo, que foram trocadas por livros, em 1982, no Rio de Janeiro. A foto é de Aguinaldo Ramos e não está em domínio público, mas pela leitura desse texto no blog dele suponho que ele não se importa pelo uso não comercial dela. Recomendo muito a leitura deste texto dele contando os bastidores da ocasião em que ele tirou a famosa foto. 


Wednesday, September 01, 2021

Dominatrix no pogo

Esta crônica foi publicada em 28 de agosto de 2021 na página nove do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). É uma versão ampliada e reescrita da minha Micrônica 1998, de 27 de outubro de 2017, sobre meus bons tempos dos anos noventa, a qual eu mesmo revisei mais uma vez agora, pois encontrei vários errinhos após a publicação no jornal. 

Adorava os shows no Pau-Brasil, bar de Bauru que era na verdade um sobradinho adaptado, na última década do século passado. Embaixo ficava o balcão e subindo as escadas ficava um pequeno “palco” num cômodo. Na verdade, não havia palco algum, era só o espaço ao lado da escada que fazia as vezes de um palquinho. Tinha gente que se equilibrava entre a parede e aquela espécie de mezzanino, então pra começar às vezes passava por baixo daquele bando de homens e mulheres-aranhas ao chegar para os shows. Bauru é quente como um fogão em funcionamento e aquele salãozinho era uma panela de pressão. Durante o mosh, com umas oitenta ou mais pessoas onde deveriam caber umas cinquenta, as paredes literalmente suavam. Bem, talvez eu esteja exagerando quanto ao número de presentes, afinal eram shows underground; vai ver eram apenas quarenta pessoas onde cabiam apenas vinte. Mas não estou exagerando quanto ao suor. Formavam-se gotículas no teto e quando elas caiam o chão enlameava-se com os tênis e coturnos sujos. Ficava super escorregadio para o pogo. Com certeza algum espírito de porco também derrubava cerveja, o que não ajudava em nada. De qualquer forma, punk rock sempre foi uma aventura solidária. Se você caía, alguém logo te ajudava a levantar. Mas nada de edulcorar o passado. A briga mais sanguinária que já testemunhei em show foi lá, em 1997, quando o Autoboneco, heróis locais e até hoje na ativa, estava tocando. Mas um ano depois era meio diferente e esta história de 97 já contei numa outra crônica chamada Como Sobreviver a uma Briga num Show de Punk Rock. Em 1998 vi o cara, na verdade um gorila, que provocou a treta de um ano antes, o Boy, tentar encoxar uma amiga, a Marília, durante o mosh. Ela, muito menor, deu um soco na fuça do babaca que ele até perdeu o rumo. Era o tempo das riot grrrls. No meio do hardcore se discutia muito sobre as letras do Dominatrix, banda que fazia do feminismo sua bandeira. Felizmente, isso não é mais restrito ao meio underground ou acadêmico. Pena que ainda haja muitos trogloditas por aí, talvez até mais. De qualquer forma, conversando recentemente com a Marília, rememorando esses episódios, ela me disse que se compadece do Boy, que provavelmente ele era um rejeitado até mesmo num meio inclusivo. De fato, ele não reagiu, assim como resolveu apanhar quieto um ano antes, depois de começar a briga. Alguém imagina um “cidadão de bem” tendo essa dignidade, ainda que meio torta, em 2021? Eu não.

Daniel Souza Luz é jornalista, revisor, professor e escritor


Foto que tirei do Dominatrix na Virada Cultural de São Paulo/SP, 18/05/2014. Infelizmente não fotografei o show delas que vi nos anos noventa.  


Monday, August 23, 2021

Indignação, de Philip Roth (resenha)

Esta resenha foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 21 de agosto de 2021. Já havia publicado uma versão preliminar no Good Reads cinco dias antes, a qual reescrevi para adaptá-la ao jornal, também ampliando-a. 

Conforme prometi na minha mais recente crônica para o Jornal da Cidade, aqui está a resenha de um livro do Philip Roth. Era para ser outro, mais recente, mas não faz mal. Haverá outra oportunidade. Indignação é uma obra excepcional. Roth é mesmo um mestre da narrativa. Em certos momentos ele ilude o leitor, parece que incorre na literatura fantástica, mas nada disso; Roth era um cético, com os dois pés firmes no chão, e tudo fica muito bem explicado e amarrado. E estava tudo na cara, mas ele habilmente me deixou perplexo, imaginando experimentalismos e implicações cósmicas. Já deveria saber de antemão que não era nada disso. E esse é só um dos inúmeros pontos fortes do livro. Se você não gosta de spoilers e ainda não leu esse obra-prima, pare de ler por aqui. O narrador, Marcus Messner, é um jovem ateu de origem judaica (o que me faz supor que o romance seja em parte autobiográfico, como boa parte da obra dele) que desiste de estudar na faculdade local para escapar à opressão paterna, que até um pouco antes de sua entrada na universidade não existia ou era muito tênue. Messner, aliás, é de Newark, cidade natal de Roth em Nova Jérsei. Ele então parte para outra, muito conservadora e numa cidade interiorana do reacionário Meio-Oeste dos EUA. É claro que nada de bom virá daí e suas relações com um colega de quarto homossexual e libertino, com outro obtuso e provinciano, com uma "peguete" chamada Olivia Hutton, com colegas das famosas fraternidades daquele país e principalmente com uma espécie de bedel moral da faculdade serão permeadas de tensão. Fascina-me em especial a discussão com este último, chamado Cauldwell, no qual Marcus cita o ensaio Por Que Não Sou Cristão, de Bertrand Russell, esgrimindo argumentos impecáveis e sendo retorquido por uma retórica medíocre, eivada de macartismo. Roth mostra brilhantemente como um jovem inexperiente pode ser inteligentíssimo, mas também pode ser tolhido pela inexperiência e pelo uso abusivo de micropoderes por parte de adultos tóxicos e invasivos. Chama a atenção, comparativamente, a crescente paranoia do pai de Marcus, que em parte lembra as neuroses de Portnoy, que não tinha uma relação sadia com os pais em O Complexo de Portnoy, outra das obras-primas do Roth. Marcus, pelo contrário, tinha uma boa relação e é trabalhador, estudioso e principalmente compenetrado, tendo em mente que precisava se destacar nos estudos para não ser alistado e mandado para a morte certa na cruenta Guerra da Coreia. O encadeamento de escolhas impensadas, imaturidade, reacionarismo e eventos fortuitos resultam em tragédia e na perda irreparável de cérebros - não só de Marcus, como o de Olivia, provavelmente. A final nota amarga é que Roth não deixa de observar que isso deve-se muito ao zeitgeist: a trama se passa nos anos 1950 e na libertária década seguinte espíritos arrojados e brilhantes como os de Marcus e Olivia não serão destruídos por sujeitos obtusos como Cauldwell, que perdem a importância e o poder mesmo numa instituição ultraconservadora, mas sim se destacarão na geração flower power que demoliria tabus sexuais e comportamentais.

Daniel Souza Luz é revisor, professor, escritor e jornalista



Monday, August 16, 2021

Para Philip Roth

Esta crônica foi publicada em 14 de julho de 2021 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). É uma versão retrabalhada da minha micrônica 2207, publicada em 24 de maio de 2018, dois dias após a morte de Philip Roth - soube do falecimento dele no dia anterior. Mantive a dedicatória, como se fosse um título, por pura preguiça. 

Em 1995, quando cursava o primeiro ano de Jornalismo na Unesp, no campus de Bauru, saí para um rolê no intervalo das aulas e fui parar na Banca do Itamar, que na verdade era uma livraria que ficava entre os blocos das salas de aula. Uma galera da minha turma notou que havia livros em promoção por valores irrisórios. Se bem me lembro, foi um amigo chamado William Cardoso, hoje repórter do jornal Agora, que pôs fogo em nós para que colássemos lá. Em meio à pilha de livros, não tão substanciosa assim, com preços promocionais, encontrei lá uma edição de O Complexo de Portnoy, lançada no Brasil, salvo engano, nos anos 1980. Já havia lido sobre o Philip Roth e me interessei. O livro custou apenas um real. Sempre disse que foi o melhor negócio da minha vida. Paguei com aquelas notas de real que nem existem mais. Ao contrário do que faço hoje, devorei o livro pouco depois de comprá-lo. Adorei-o. Até ler O Rei de Havana, de Pedro Juan Gutiérrez, era o melhor final que já havia saboreado na literatura. É curioso: ser um homem branco (ao menos aqui no Brasil; na gringa eu seria tido como latino) e heterossexual como Roth fez com que, até emprestar o livro para uma ex, não me desse conta do quão machista é o narrador. Embarquei na psique distorcida do protagonista e apenas me diverti ou fiquei embasbacado, mas nunca de fato chocado. O que também é fruto da minha imaturidade à época, com certeza. É uma obra-prima tão bem escrita que não li nenhum outro livro de Roth nos próximos 25 anos. Achava que nenhum estaria à altura. Ledo engano, no ano passado li Indignação e o próximo livro que encararei será o canto do cisne dele – Roth morreu em 2018. Sempre pode haver mudanças de percurso, no entanto. Mas provavelmente será. Aguardem uma resenha. Ou não.

Daniel Souza Luz é revisor, professor, jornalista e escritor


Philip Roth em 1973. Foto de Nancy Crampton, já em domínio público.