Monday, December 13, 2021

Procurando chifre em cabeça de cavalo

 Escrevi este conto em 2008. Resolvi tirá-lo da gaveta e foi publicado no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 11 de dezembro de 2021. Como o texto já tinha 13 anos, precisei reescrevê-lo para atualizar referências tecnológicas. De qualquer forma, o reescreveria mesmo em parte, pois eliminei elementos do texto original que denotavam forte influência do Bukowski, o que me irrita profundamente hoje. Mas não se enganem, ainda sou fã do Buk. 

A única música que me dava arrepios era The Carnival Is Over, mas hoje em dia não sinto quase nada. O prazer de ouvir a música é muito vago. Mas ao menos isso. Nenhum outro som me desperta algo. Ou despertava. O que tornou especialmente difícil escutar, de bobeira, Feel Good The Hit Of The Summer, que não diz nada com nada, e voltar a associar uma música a uma pessoa. A lembrança de Anna desabou sobre mim com o peso de uma banda que eu não ouvia há muito tempo e da qual nós tanto gostávamos. Só havia algo no mundo que eu gostava mais do que aquele CDzinho azul do Rated R: da Anna. Eu o perdi, a perdi. Se foi o interesse por ambos, mas não consegui bloquear a lembrança dela. Apenas a tirei de foco.

Chorei e não sou disso. Não chorava desde que tinha uns onze anos. Sempre detestei, fui ensinado a crer que era coisa de maricas. Foi foda, o impacto sonoro suspendeu o entrave mnemônico que havia me imposto. Malditos algoritmos do modo aleatório dos serviços de streaming. Encomendei uma edição especial do CD, já que o passado voltou tão veementemente. Bobagem, podia ter escutado online mesmo. Na minha mente, as faixas já se reordenaram e estão tocando na ordem certa. Já tinha tudo de cor, internalizado. Bem, não senti nada, de novo, quando tirei o CD do invólucro e pus para rodar. Se fosse só isso estava bom. Mas não. As recordações daquele tempo com Anna, de qualquer forma, me deixaram abalado em outros momentos nada musicais. Não sabia mais nada sobre ela, a não ser que tinha se mudado da casa dos pais.

Pois bem, resolvi procurar por ela nas redes sociais. Nada. Mas uma busca na web me revela o número e endereço do consultório dela. Agora ela trabalha com constelação familiar. Caramba, que picaretagem. Mas é tarde, estou obcecado.

Avalio por uma meia hora, andando de um lado para o outro e tomando café, se devo ligar ou aparecer na porta do consultório dela como se eu não quisesse nada. No fim, resolvi ligar. Ela atende, não consigo falar. Nunca fui dessas coisas, que idiota. Sou mais cretino ainda ao ligar novamente e pôr o telefone em frente ao som, sem falar nada, enquanto o Rated R está rolando no volume máximo. Depois de uns trinta segundos abaixo o som e resolvo falar um oi, mas ela já havia desligado. Será que ela entendeu o que estava acontecendo? Espero meia hora para ver se ela retorna a ligação. Largo mão de frescura: agora ligo direto pra ela, que atende com frieza. Ela tinha sacado sim que era eu. Avisa que ainda escuta muito o disco, pois o marido comprou a reedição em vinil de 180 gramas. Ah tá, entendi o recado. Depois de algum papo protocolar, tchau. Sheila está me esperando em casa, impaciente e ligando no meu celular a cada cinco minutos.

Daniel Souza Luz é professor, escritor, revisor e jornalista


A reedição em vinil do Rated R, disco do Queens of Stone Age lançado originalmente com a capa azul em 2000.


2 comments:

sid said...

Boa! qual versão da musica é a referida?


Daniel Souza Luz said...

Obrigado pela leitura, Sid. Se for The Carnival Is Over, é a música do Dead Can Dance.

https://www.youtube.com/watch?v=mPDLJ1UU2Uk