Tuesday, June 26, 2018

Juventude Sônica

Uma rixa adolescente das mais típicas é por causa de música. Deveria ser ao menos, melhor do que futebol. “Silver Rocket é mais hardcore do que qualquer música do Bad Religion”, “Inocentes nunca será tão bom quanto Cólera”, “Credo, vocês só ouvem barulho, música de verdade é Stravinsky” e por aí vai. A possibilidade de alguém sair na pancada por causa disso é muito menor também, convenhamos.
Da juventude, guardo o encanto de amar sons que me fascinavam, mas que não fazia a menor ideia do que seriam. Por exemplo, quando vi um anúncio de uma marca de skate dos anos oitenta, já extinta, salvo engano a Momento Angular, fiquei fascinado pelas belas melodias das guitarras da trilha sonora. Só quando pude gravar um CD do Sonic Youth, Daydream Nation, quatro anos ou cinco anos depois, é que descobri, por acaso e exultante, que aquela música inspiradora chamava-se The Sprawl. Ainda que já conhecesse o grupo, não desconfiei que fosse deles; mesmo no início da música não reconheci o timbre, mas quando finalmente aquelas guitarradas densas afloraram nas caixas de som fiquei extasiado ao reconhecê-las.
Atravessar a brisa, como se diz hoje, daquelas discussões e sair incólume era um pouco difícil. Era um lixo total, ainda é, aturar algum músico metido a besta dizendo que tal som é simplório, que qualquer um faz e tal, que bom mesmo é, sei lá, Rush. Aliás, quem dizia isso eram os caras que nunca compuseram nada de bom na vida e cuja utilidade, ainda nos dias de hoje, é reproduzir as músicas de outrem, quando muito, em algum barzinho em que ninguém lhes presta atenção. Eventualmente têm fazer isso com o que desprezavam antes como muito simples; músicas dos Beatles, por exemplo. Bem feito.
“Ei, Joni Mitchell é muito bom, conhece?”, “Tá viajando, Eric. Você não era radical, não gostava só de death metal? Como pode falar que Guns n’Roses é ruim se gosta desse troço hippie? Poser!”. Testemunhei diálogos mais ou menos assim, amigos patrulhando o gosto musical dos outros. O certo era tomar a providência de botar panos quentes, mas adolescente gosta mesmo é de carregar vela pra pôr fogo na lona do circo, né? E aí não havia rei da chuva para apagar as chamas da treta. Acho até engraçado ver quem é mais novo chamar os outros de posers hoje em dia, antes esse xingamento era restritos a adolescentes dos anos noventa que gostavam de hard rock dos anos oitenta.
Conforme se ganha a habilidade de se dar uns beijos, brigas musicais se tornam menos intensas, talvez. Não há verdades absolutas. A paixão, no entanto, nunca diminui. Mas é melhor ficar em casa lendo trilogias e pondo bons LPs na vitrola do que perder tempo discutindo com cabeças de bagre que não entendem que Green Day nunca será melhor do que Ramones, o que é uma verdade científica insofismável.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor
Detalhe de um show do Sonic Youth em Paredes de Coura, Portugal, 2007. Foto de Catarina Limão, via licença Creative Commons. A postagem original da fotografia pode ser vista aqui.

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 23 de junho de 2018. Era inédita até então. A escrevi no dia 21 de junho e a revisei no dia 22, acrescentando a frase "Não há verdades absolutas" e a piada da última frase (espero que entendam a ironia). O título é uma homenagem ao Sonic Youth, cujo nome já havia dado a um conto que publiquei aqui no blog em 25 de janeiro de 2015. A maior inspiração para esta crônica foi o disco Daydream Nation, de 1988; cito os nomes de todas as músicas, disfarçadamente ou não, ao longo do texto - menos os nomes específicos das partes de Trilogy; não soube como fazê-lo.  

Wednesday, June 06, 2018

Sussurros Japoneses

Há crianças que amam gatos. Que lamentam banhos. Que fazem birra para não comer salada. Cada uma com sua mania. Eu tinha medo de monstros japoneses.
Meu irmão é mais novo do que eu e adorava Ultra Seven e Spectreman, que me despertavam pavor. Não só seus inimigos, mas também os protagonistas, que para mim nada tinham de heróicos. Não sei explicar por que algo tão farsesco como esses seriados japoneses inspiravam-me medo. Achava que seria esmagado, tenho essa vaga sensação quando penso a respeito. Um desses dois heróis aí se agigantava para combater os monstros que vinham arrasar Tóquio. Talvez ambos. Só via trechos disso e saía da sala, pra mim qualquer um deles poderia pisar no prédio onde morava. Procurava não externar esse medo; deveria tê-lo feito, alguém poderia me explicar que isso só acontecia no Japão e eu poderia tranquilizar-me, igual a um amigo da pré-adolescência que não tinha medo de demônios porque os filmes mostravam que eles só possuíam pessoas nos Estados Unidos. Ele acreditava piamente nisso.
Lá pelos oitos anos esse medo passou. De bobeira, um dia, liguei a TV e estava passando Robô Gigante. Era uma família de robôs espaciais, tinha o pai, a mãe e o filho que combatiam invasores da Terra. Ah bom, de família não tenho medo. Já dos defensores dela... Bem, isso é outra história. O fato é que, ao que parece, o seriado não era assim como o descrevo, na realidade. Seria um garoto que controlaria o Robô; então tenho a memória falsa de que era uma família de robôs, ou havia um seriado concorrente de robôs gigantes, ou me induzi a acreditar que havia uma família, inclusive me lembro da Robô Gigante, maior do que filho e menor do que o marido. Prodígios da mente infantil.
Até o medo do Spectreman e do Ultra Seven acabou. Nem sei bem qual é um e qual o outro até hoje, são clássicos da TV, mas não prestava atenção. Já de Robô Gigante gostava tanto que não teve como não gostar de Círculo de Fogo, filme do Guilherme del Toro, inclusive me identificando com o medo que a personagem Mako sente ao se confrontar com suas memórias de criança. Fizeram uma continuação, mas sem o del Toro dirigindo não me animo tanto assim, por mais que adore robôs gigantes. O melhor de todos eles, aliás, é o Robert Smith, do The Cure, transmutado em um robô-borboleta num episódio do infame desenho South Park para combater uma monstruosa Barbra Streisand, transformada num robô maligno que arrasa a cidade onde se passa a história.
Todos estes seriados japoneses eram dos anos sessenta e setenta. Em meados dos anos oitenta estrearam no Brasil outras produções nipônicas, mais contemporâneas, mas tão toscas quanto suas predecessoras. Aí já não falavam mais a minha linguagem, mas o pessoal um pouco mais novo ainda gostava e a geração da minha irmã Fernanda, principalmente, adorou. Jaspion e Changeman foram grandes sucessos seguidos, salvo engano, pelo Jiraya. Na real, era Esquadrão Relâmpago Changeman; no seu quarto e no quarto acima do nosso apartamento, no apê da nossa vizinha Paulinha, Nanda e sua turminha, nossos também vizinhos Giovani Molinari e Juliana Mariano, imitavam a formação e os movimentos do esquadrão. Tinha até gente da minha idade caindo nessa. Eu já era velho demais para aquilo, achava uma bobeira. Queria mais era um beijo das meninas da minha idade, só um beijo que fosse, não tinha mais a mentalidade para aquelas criancices; afinal já era rapazinho e gostava é de videogames, filmes de terror e outras infantilidades de adultos.
Numa tarde de um sábado perdido no fim dos anos oitenta fui dar uma caminhada no centro da cidade com meu amigo Cleiber Pomárico Filho, hoje cirurgião plástico em São Paulo. Fiquei muito feliz, pois não era de andar a pé pela cidade à toa. Vimos uma movimentação em frente à locadora Click Vídeo, que há muito não existe mais, na rua Prefeito Chagas, a qual havia sido fechada para a circulação de veículos. Paramos para ver o que era e descobrimos que se tratava de uma exibição com atores representando os Changeman. Da esquina, meio de longe, vimos minha irmã e meu pai na calçada, esperando pela apresentação; eles também nos viram e deram tchau de lá. Conversando sobre garotas, absortos, fomos surpreendidos por atores vestidos como os inimigos da trupe do Changeman, uns alienígenas todos azuis, desengonçados, que sussurravam uns barulhinhos ininteligíveis. Caímos na gargalhada por nos vermos bem no meio do show.
Tempos depois ainda lembrávamo-nos do episódio aos risos. Comentando a respeito com minha irmã, há poucos anos, também me recordei que achei as vestimentas dos atores, todas, muito realistas, tendo em vista o quão irreal originalmente eram. Estavam perfeitas, era convincente. Então a Nanda me contou que, como ela era muito gurizinha, com uns seis aninhos, ela achou que era de verdade, que era mesmo os integrantes do Esquadrão Relâmpago Changeman! Achou que a luta foi real. Que bom que ela gostava; com a mesma idade, se eu tivesse visto o Spectreman na rua, eu teria saído correndo e me acabaria de chorar. Naquele dia, o que foi apenas um caso folclórico para mim quando fui para a cama, para ela foi um sonho. O sonho. Aliás, esta crônica é dedicada para a Fernanda, espero que tenha uma surpresa ao revisá-la, como usualmente faz. Minhas crônicas que saem com erros são as que não mando para ela revisar.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Sussurros Japoneses é uma crônica inspirada numa conversa com a minha irmã, meses atrás. Ao revisar a crônica, ela me disse que se emocionou e que ficou com a voz embargada ao ler o último parágrafo para o meu irmão. Tirei o título de uma coletânea de compactos do The Cure, cito todos os nomes das músicas da compilação em meio ao texto, o que me motivou muito. Enquanto escrevia, me lembrei do episódio do South Park em que o Robert Smith vira um mecha (robô gigante), veio a calhar! Foi a primeira crônica totalmente inédita que fiz para o jornal desde o início de março, quando escrevi Dispositivo da Moda; nos três meses seguintes somente reescrevi e ampliei crônicas que havia publicado anteriormente no blog. Sussurros Japoneses saiu no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) no feriado de 31 de maio de 2018. Em relação à original, apenas fiz uma alteração de estilo numa frase e também corrigi o nome do Spectreman. Na versão publicada pelo jornal grafei erroneamente como "Spectremen", que na verdade soa melhor aos meus ouvidos - o certo para mim deveria ser "Changemen" e não Changeman, então um herói com nome no plural faz um bom contraste ao Esquadrão Relâmpago.   


Print do PDF da edição do jornal no qual a crônica foi originalmente publicada; o jornal ilustrou o texto com uma foto do Spectreman.