Monday, August 29, 2022

Viver e ler

Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7826 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 27 de agosto de 2022.  

Semana passada escrevi a respeito da memória afetiva acrescida à leitura do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, pois li-o em voz alta para meu pai, que tinha dificuldade em enxergar no final da vida. Foi mais do que justo, afinal ele lia gibis do Gasparzinho, do Recruta Zero, do Brasinha, da Turma da Mônica e de alguns personagens da Disney para mim e meu irmão quando éramos criancinhas – os de super-heróis vieram quando já estávamos alfabetizados. O fato dele deixar para ler algumas histórias no dia seguinte fez com que nos apressássemos a aprender a ler, pois queríamos saber como acabavam todas as histórias de uma vez. Ele também lia algumas histórias do Pasquim para nós; as que davam para uma criança entender, claro. Graças a isso, tornamo-nos leitores de fato. E era um grande prazer ler ou reler livros para ele, o clássico do Suassuna não foi o único. Queria ter lido mais obras ainda; comprei livros do Neil Gaiman, da J.K. Rowling, do Yuval Noah Harari e de outros autores apenas e tão somente para fazer a leitura para ele, mas não deu tempo. Até daria, mas às vezes ele pedia para eu parar um pouco para darmos rolê (afinal a literatura é sobre a vida e a vida também é andar por aí à toa), outras vezes preferi deixá-lo de boa assistindo novelas globais, as quais odeio, mas que já era um hábito de anos e uma predileção que eu não tinha o direito de cancelar. Portanto, em outros horários, consegui reler, desta vez em alto e bom som, pequenas obras do Jorge Amado, do Marcos Bagno, da Cecília Meireles e vários outros autores para ele. Só houve um livro extenso que li de ponta a ponta, e esse comprei de presente para ele, não foi uma releitura: Sócrates e Casagrande, uma História de Amor, biografia escrita pelo jornalista Gilvan Ribeiro em colaboração com o próprio Casão. Foi uma leitura melhor do que esperava, pois o livro fala muito de arte e política, além de futebol, devido à intensa vida que ambos levaram. E aborda, claro, o mítico período da Democracia Corinthiana e a militância de ambos contra a ditadura militar. Tem até uma cabulosa história da repressão que desconhecia: um dos irmãos de Zico, o também jogador de futebol Nando Antunes, foi torturado por seu trabalho como educador e teve a carreira de boleiro profissional prejudicada. Infelizmente, enquanto livro-reportagem, a obra carece de uma melhor edição de texto: é repetitivo a ponto de ser enfadonho em alguns trechos. Ainda assim, as memórias de Casagrande e a apuração de Ribeiro compõem um belo painel da amizade entre Sócrates e Casão, do rompimento implícito e da reconciliação, dos amores e filhos, do calvário do vício em drogas legalizadas (Sócrates) e ilegais (Casagrande) e, também, traz muitas histórias impagáveis, dentro e fora de campo, como, por exemplo, uma do naipe de João Gilberto – sim, o pai da bossa nova – realmente tentar mudar a escalação da seleção de 1982, além de alugar Sócrates ao telefone. Para nós, que somos de Poços, o livro ainda traz o prazer extra de contar algumas das passagens de Casagrande na Caldense. Lembro bem de quando ouvi no rádio a notícia da morte de Sócrates e que os jogadores do Coringão ergueram o punho em homenagem ao seu gesto característico, na final contra o Palmeiras em 2011. Estava na estrada, dirigindo para chegar em Franca, onde trabalhava num jornal, e não fiquei emocionado como fiquei depois ao ler como tudo aconteceu. Enquanto lia para meu pai, minha voz ficou embargada. Caso eu releia, agora sem a presença do meu pai, ou leia os outros livros escritos por Gilvan e Casagrande, creio que meus olhos ficarão marejados mais de uma vez.  

Daniel Souza Luz é escritor, revisor, jornalista e professor




Monday, August 22, 2022

Memória afetiva e leitura

Este texto, um misto de crônica, ensaio, resenha e memórias, foi publicado na página 7 da edição 7821 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 20 de agosto de 2022. É uma extrapolação das minhas breves impressões sobre o Auto da Compadecida, as quais escrevi para o Goodreads logo depois de ler o livro para o meu pai, pouco mais de dois meses antes da morte dele em 2019. 

Chegou a hora de reler Ariano Suassuna. Ao menos para mim. Ao menos o Auto da Compadecida. Ao menos. Ao lê-lo, li de uma vez só. Na verdade, li-o em voz alta, para meu pai, que enxergava com dificuldade após um AVC – ao menos ele não teve outras sequelas e teve alguma qualidade de vida até falecer, em 2019. Voltando à obra-prima de Suassuna, contando o tempo de leitura do prefácio, que foi lido depois, também para meu pai, não levou mais do que três horas. Já tínhamos assistido ao filme dirigido pelo Guel Arraes numa reprise há uns dez anos, pois à época do lançamento passou batido para mim; acho que meus familiares já tinham visto até antes, quando foi exibido em forma de minissérie. O texto é muito prazeroso de ser lido em voz alta, afinal foi concebido para o teatro. O que chamou minha atenção, em primeiro lugar, foram as referências das histórias populares que Suassuna cita no preâmbulo; apesar de ele ser cristão e conservador, ele não tem pejo em usar passagens escatológicas e que me parecem que bem blasfemas, pois também abordam traição e sexo. O ótimo prefácio da edição que li, de Henrique Oscar, traça as origens disto em textos medievais, nas quais Nossa Senhora também tem papel fundamental na salvação de almas. Ou seja, pode até escandalizar fundamentalistas, mas é uma obra fundada em narrativas católicas populares que refletem a profunda religiosidade do autor. Outro aspecto que me chamou a atenção é que no livro João Grilo é mais violento e maquiavélico do que me lembro dele ser no filme; parece-me bem normal isto ter sido atenuado no roteiro, pois dificultaria a identificação do público com o personagem. De qualquer forma, é um livro divertidíssimo, rápido de ser lido e ao mesmo tempo não é uma leitura superficial; pelo contrário, também há reflexões assertivas e precisas sobre racismo e gênero, uma surpresa enorme vinda de um autor assumidamente conservador. Nunca imaginaria pegar todos esses detalhes numa leitura em voz alta: eu gosto de ler quietamente, nunca sequer balbucio uma palavra que seja. E eu precisava esperar para reler. A saudade do meu pai vai aflorar, com certeza. Talvez seja o primeiro livro que eu estranhe ler da forma como sempre li. Recordo-me de um texto de um amigo, o professor e escritor Fábio Gonçalves de Carvalho, no qual ele comentava que alguns livros marcam tanto pelo texto quanto pelas circunstâncias em que foram lidos. No caso dele, ele citava que leu O Exorcista de madrugada e num hospital. O meu caso é mais terno.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, revisor e escritor.


Ariano Suassuna em 1971. Foto de domínio público. 



Monday, August 08, 2022

Pentelhando Ziraldo

Esta crônica (ou memórias, talvez) foi publicada na página 8 da edição 7811 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 06/08/2022. Apesar do título, ressalto que Ziraldo não parecia estar nem um pouco incomodado, é bom deixar isso claro. Com certeza, ele estava acostumado com entrevistas amalucadas desde os tempos do Pasquim.  

Em 2001, formado há pouco tempo em Jornalismo e de volta a Poços de Caldas, eu tentei fazer um site com um amigo, o Elídio Júnior. Como muitos projetos em que embarquei, não foi muito pra frente. Ele nomeou o site de Bixo Grilo, fez um logotipo muito bom, mas o nome não me aprazia, nada tinha a ver comigo. O site chegou a funcionar, de qualquer forma, e encasquetei de entrevistar o Ziraldo, que viera fazer uma palestra (ou ministrar uma oficina, agora a memória me trai) na Casa da Cultura. No final do evento, eu e um jornalista local pedimos para entrevistá-lo. Recordo-me bem que o coleguinha cobria a pauta dele com a mão, parecendo incomodado com minha presença. Ora, como se eu fosse fazer as mesmas perguntas simplórias e publicá-las para ele ver. Talvez ele tenha agido assim porque eu não tinha pauta em mãos – não precisava. Batismo de fogo interiorano feito, abordei Ziraldo e disse que queria fazer uma entrevista mais longa, pois era para um site, portanto sem limitações de espaço. Ele me disse que iria fazer uma espécie de terapia alternativa com uma senhora que o aguardava, então uma moça que a acompanhava (filha dela, salvo engano) sugeriu que eu fizesse a entrevista a caminho da casa delas. Não fizemos objeções e a entrevista foi gravada no trajeto, com direito a uma parada no Mercado Municipal para Ziraldo comprar queijos. Eu me lembro que era uma senhora muito gentil essa terapeuta mística e que ela tinha um nome muito incomum: Santa Abelha. Finalizei a entrevista já na casa dela, na Cascatinha, e ela e a filha pareciam estar gostando de acompanhar o bate-papo literário. Infelizmente, perdi a gravação. Eu a transcrevi para o site, é claro, mas está em algum disquete sabe-se lá onde. Talvez já tenha desmagnetizado. E onde eu abriria um disquete? O site está fora do ar há vinte anos. No entanto, recordo-me bem de passagens marcantes da conversa. Quando falamos sobre seus livros Flicts e O Menino Maluquinho, Ziraldo citou o Dr. Seuss – se não como influência, ao menos como um autor que o marcou. Quando a conversa enveredou pela literatura contemporânea, eu disse que gostava muito do Bukowski. Ziraldo retorquiu que não era muito fã dele e dos beats, mas que uma vez foi na City Lights, a livraria do poeta Lawrence Ferlinghetti, que tinha (tem) caráter comunitário beatnik e que gostou muito de lá. E me fez uma recomendação maravilhosa: se eu era “taradão” (lembro bem dele usar esse termo) no Bukowski, que procurasse um conto chamado Viagem aos Seios de Duília, do Aníbal Machado. “É uma perfeição, sem furos”, disse-me Ziraldo. E é exatamente isso, é um dos melhores contos que li, ao lado de A Causa Secreta, do Machado de Assis, e de algumas obras-primas do Buk e dos autores de ficção científica Phillip K. Dick e Brian Aldiss. Outra passagem da conversa talvez tenha sido em off, mas é muito saborosa para eu não a relatar; além disso, prezo o registro histórico, então aí vai a suposta inconfidência: comentei que gostava de ler a coluna do João Ubaldo Ribeiro no Estadão e Ziraldo ficou indignado. Disse que o autor baiano era um “nojento”, que não suportava a empáfia dele e que ele bancava o rebelde, mas topou entrar para a Academia Brasileira de Letras, o que configurava uma hipocrisia. Escritores não têm que ser santos ou agradáveis para ser admirados, mas, de fato, anos depois vi aqui uma palestra de Ubaldo na qual ele parecia ser muito bonachão, mas deu uma resposta tão atravessada (ainda que correta) a uma pergunta ingênua que ele me pareceu ser de uma arrogância ímpar – daí me lembrei do que Ziraldo me disse. Há uns cinco anos, Ziraldo fez uma fala homofóbica numa palestra também aqui em Poços. Foi algo tipo “Fernanda Montenegro não está autorizada a divulgar lesbianismo na novela”. Justo ele, que desenhou o logo do PSOL, partido conhecido por abraçar a causa LGBTQIA+, deu uma dessas. Porém, o episódio trouxe-me à memória uma frase que ele me disse e que achei engraçada: “Uma vez disse ao Paulo Francis que escrever bem não o autorizava a escrever um romance”. O que é verdade, tentei ler livros de Francis e são intragáveis; embora ele escrevesse muito bem, o forte dele era ser polemista de esquerda e, depois, de direita. Em outubro Ziraldo fará 80 anos. Falando asneiras ou grandes verdades, espero que ele ainda fale muito. E, quem sabe, que algum dia eu recupere a íntegra dessa entrevista.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, revisor e escritor


Um jovem Ziraldo numa foto em que ele está bastante parecido com o Jaz Coleman, o vocalista do Killing Joke. A fotografia é de domínio público.