Monday, August 08, 2022

Pentelhando Ziraldo

Esta crônica (ou memórias, talvez) foi publicada na página 8 da edição 7811 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 06/08/2022. Apesar do título, ressalto que Ziraldo não parecia estar nem um pouco incomodado, é bom deixar isso claro. Com certeza, ele estava acostumado com entrevistas amalucadas desde os tempos do Pasquim.  

Em 2001, formado há pouco tempo em Jornalismo e de volta a Poços de Caldas, eu tentei fazer um site com um amigo, o Elídio Júnior. Como muitos projetos em que embarquei, não foi muito pra frente. Ele nomeou o site de Bixo Grilo, fez um logotipo muito bom, mas o nome não me aprazia, nada tinha a ver comigo. O site chegou a funcionar, de qualquer forma, e encasquetei de entrevistar o Ziraldo, que viera fazer uma palestra (ou ministrar uma oficina, agora a memória me trai) na Casa da Cultura. No final do evento, eu e um jornalista local pedimos para entrevistá-lo. Recordo-me bem que o coleguinha cobria a pauta dele com a mão, parecendo incomodado com minha presença. Ora, como se eu fosse fazer as mesmas perguntas simplórias e publicá-las para ele ver. Talvez ele tenha agido assim porque eu não tinha pauta em mãos – não precisava. Batismo de fogo interiorano feito, abordei Ziraldo e disse que queria fazer uma entrevista mais longa, pois era para um site, portanto sem limitações de espaço. Ele me disse que iria fazer uma espécie de terapia alternativa com uma senhora que o aguardava, então uma moça que a acompanhava (filha dela, salvo engano) sugeriu que eu fizesse a entrevista a caminho da casa delas. Não fizemos objeções e a entrevista foi gravada no trajeto, com direito a uma parada no Mercado Municipal para Ziraldo comprar queijos. Eu me lembro que era uma senhora muito gentil essa terapeuta mística e que ela tinha um nome muito incomum: Santa Abelha. Finalizei a entrevista já na casa dela, na Cascatinha, e ela e a filha pareciam estar gostando de acompanhar o bate-papo literário. Infelizmente, perdi a gravação. Eu a transcrevi para o site, é claro, mas está em algum disquete sabe-se lá onde. Talvez já tenha desmagnetizado. E onde eu abriria um disquete? O site está fora do ar há vinte anos. No entanto, recordo-me bem de passagens marcantes da conversa. Quando falamos sobre seus livros Flicts e O Menino Maluquinho, Ziraldo citou o Dr. Seuss – se não como influência, ao menos como um autor que o marcou. Quando a conversa enveredou pela literatura contemporânea, eu disse que gostava muito do Bukowski. Ziraldo retorquiu que não era muito fã dele e dos beats, mas que uma vez foi na City Lights, a livraria do poeta Lawrence Ferlinghetti, que tinha (tem) caráter comunitário beatnik e que gostou muito de lá. E me fez uma recomendação maravilhosa: se eu era “taradão” (lembro bem dele usar esse termo) no Bukowski, que procurasse um conto chamado Viagem aos Seios de Duília, do Aníbal Machado. “É uma perfeição, sem furos”, disse-me Ziraldo. E é exatamente isso, é um dos melhores contos que li, ao lado de A Causa Secreta, do Machado de Assis, e de algumas obras-primas do Buk e dos autores de ficção científica Phillip K. Dick e Brian Aldiss. Outra passagem da conversa talvez tenha sido em off, mas é muito saborosa para eu não a relatar; além disso, prezo o registro histórico, então aí vai a suposta inconfidência: comentei que gostava de ler a coluna do João Ubaldo Ribeiro no Estadão e Ziraldo ficou indignado. Disse que o autor baiano era um “nojento”, que não suportava a empáfia dele e que ele bancava o rebelde, mas topou entrar para a Academia Brasileira de Letras, o que configurava uma hipocrisia. Escritores não têm que ser santos ou agradáveis para ser admirados, mas, de fato, anos depois vi aqui uma palestra de Ubaldo na qual ele parecia ser muito bonachão, mas deu uma resposta tão atravessada (ainda que correta) a uma pergunta ingênua que ele me pareceu ser de uma arrogância ímpar – daí me lembrei do que Ziraldo me disse. Há uns cinco anos, Ziraldo fez uma fala homofóbica numa palestra também aqui em Poços. Foi algo tipo “Fernanda Montenegro não está autorizada a divulgar lesbianismo na novela”. Justo ele, que desenhou o logo do PSOL, partido conhecido por abraçar a causa LGBTQIA+, deu uma dessas. Porém, o episódio trouxe-me à memória uma frase que ele me disse e que achei engraçada: “Uma vez disse ao Paulo Francis que escrever bem não o autorizava a escrever um romance”. O que é verdade, tentei ler livros de Francis e são intragáveis; embora ele escrevesse muito bem, o forte dele era ser polemista de esquerda e, depois, de direita. Em outubro Ziraldo fará 80 anos. Falando asneiras ou grandes verdades, espero que ele ainda fale muito. E, quem sabe, que algum dia eu recupere a íntegra dessa entrevista.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, revisor e escritor


Um jovem Ziraldo numa foto em que ele está bastante parecido com o Jaz Coleman, o vocalista do Killing Joke. A fotografia é de domínio público. 


4 comments:

Jornalismo Cidadão Digital said...

Qie delícia de texto. Deve ter sido ainda mais delícia fazer esta entrevista, assim como foi.

Daniel Souza Luz said...

Foi muito bacana! Obrigado pela leitura!

Anonymous said...

Que delíciaaaaa!! Ai de mim por não ter sido a abelhinha número dois a presenciar esta entrevista...uiuiui..😍

Daniel Souza Luz said...

Muito obrigado pela leitura!