Tuesday, February 26, 2019

Gatinha

Paula lambia-se como se fosse uma gata. Metaforicamente ela é, mas também, neste caso, literalmente. Sabia que não tinha lógica, mas é um hábito de criança do qual não consegue se livrar. Finalmente em casa, depois de um banho e do almoço, morrendo de sono em frente à TV, sol a pino e sabendo-se privilegiada por estar naquele quarto fresco, todo bege e bem ventilado, Paula lambe-se e arrepia-se consigo mesma, sua melhor companhia, ainda que não considere dispensáveis as demais. 
Contorce-se na medida do possível, estendendo a língua onde aprendeu que era bom pô-la, até que se aconchega no edredom e, antes de apagar, pensa brevemente em ser contorcionista de verdade. Quando acorda, ao fim da tarde, o sol já amigável, ela espreguiça-se pacientemente e sai para caçar.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor


Gatinha foi publicada no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 23 de fevereiro de 2019. É uma versão retrabalhada de um conto de mesmo nome, publicado aqui no blog em 10 de setembro de 2007. É conto lascivo, mas não chega a ser literatura erótica, creio. Esta versão difere também da versão que saiu no jornal, pois a revisei e corrigi um erro de conjugação verbal.

Gatinha foi publicado no meio da página oito, à esquerda, da edição 6985 do Jornal da Cidade.

Thursday, February 21, 2019

Zelo

A ideia tornou-se recorrente. Tudo o que vem acontecendo deixa-me mais desgostoso. Nada permanece. A maioria dos meus livros, que guardei com tanto zelo durante todos estes anos, foram roídos por traças, carunchos, sei lá. Trabalhei demais, tornei-me um workaholic ao longo do ano passado. Nem me senti pressionado a fazer isso por patrões ou colegas, mas sentia-me tão angustiado ao chegar no horário certo em casa, com tantos projetos em mente e tão pouco tempo para viabilizá-los, que passei a dar uma de rapaz responsável. Não conseguia escolher um dos meus sonhos para concretizá-los, deixava tudo pela metade.
Por acaso, encontro-a na rua. Irritado com o abandono e com tudo o mais, disse o que sempre dizia nas antigas. Que estava com vontade de morrer. “Não fala isso, você é tão novo, tanta gente queria ter sua saúde”, blábláblá. Conhecia a velha ladainha. Desta vez falei com sinceridade. Antes dizia isso para que ela me acalentasse depois do esporro. Mas todos temos uma imagem a gelar agora. Sim, gelar. Não há nada mais a zelar. Seremos apenas isso, congelados até o fim, porque nossas escolhas foram encerradas, agora temos que vivê-las e não há volta. Ao menos, ela me aquece com um café, mas, enquanto conta-me as travessuras da filha e as noias do corno que a sustenta, não consigo deixar de pensar de que preferia quando ela se esgueirava debaixo das minhas cobertas para sumir assim que eu adormecia.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Zelo saiu no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 16 de fevereiro de 2019. É uma versão levemente retrabalhada de um conto meu de mesmo nome, publicado aqui no blog em oito de janeiro de 2007.

Zelo saiu no canto esquerdo inferior da página oito da edição 6980 do Jornal da Cidade.


Tuesday, February 12, 2019

Será que dá tempo?

Nada do que ela disse me impressionou mais do que confessar que já teve um relacionamento com outra mulher. Ela sempre foi muito conservadora. E me diz algo assim com a maior naturalidade. Tão arrogante, tão provinciana, tão preocupada em aparecer nas colunas sociais da sua cidadezinha. Adorava figurar ao lado das velhas carolas, “damas de caridade”, ciosas de seu marketing pessoal. Ela expulsou a filha de casa porque a menina tinha assumido o namoro com uma menininha ainda mais nova. Tentei tomar as mãos dela entre as minhas para alentá-la, mas ela já havia levantado para atender a ligação do marido. O celular tinha um toque específico, uma música do Franz Ferdinand, Michael, que identificava o número dele. Guiada pela coleira eletrônica, desabou escada abaixo. Imediatamente vestiu sua máscara, para nunca mais tirá-la.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Será que dá tempo? foi publicado no dia nove de fevereiro de 2019 no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG). É uma versão retrabalhada do primeiro conto publicado neste blog, em três de janeiro de 2007. Mesmo em relação à versão publicada no jornal, fiz uma pequena alteração aqui, substituindo a palavra "aparelho" por "número" na frase em que falo do toque no celular, o que também foi uma mudança que fiz no original: incluí a citação da música do Franz Ferdinand, pois é um som que caracteriza bem aquela década e que de quebra ainda forneceu o nome de um personagem.


Será que dá tempo? conforme saiu no Jornal da Cidade, no cantinho esquerdo inferior da página oito da edição 6975. Ao lado saiu um texto que fala de poesia, erroneamente creditado a mim, e com o mesmo título, por engano também.



Thursday, February 07, 2019

Memento Mori

Com o tempo se aproximando, sentiu-se petrificado. Não conseguia se mover. Vivendo fora do tempo, isso soa natural, mas não é. Ele ganhou algumas semanas de existência fugaz para compensar os dez anos de quase olvido. Dez anos existindo apenas durante as noites e madrugadas, por alguns poucos segundos, no máximo minutos. Enquanto ela sonhava. Surpreso, às vezes via-se consciente aos sábados ou domingos durante as tardes. Uma vez ela caiu doente e encontraram-se às onze e pouco da manhã de uma terça-feira, por meros quatro segundos, enquanto ela cochilava. Ele prolongava os sonhos dela sempre que podia, conversando, convencendo-a, ou tentando convencê-la, de que era real. Enquanto isso seu corpo envelhecia, mas ele era o mesmo de dez anos antes no fluir etéreo. Finalmente despertou do coma. Mudo e paralisado, não consegue explicar para ela que era tudo verdade. Ele espera que ela note sua ausência onírica.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Memento Mori foi publicado no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em dois de fevereiro de 2019. Já o havia publicado aqui no blog em 09/06/2008, mas o reescrevi para publicá-lo no jornal, porque o original me pareceu ruim ao relê-lo, embora a ideia que tive, tangenciando a literatura fantástica, continue aprazendo-me. Em relação à publicação no jornal, nesta versão ainda grafei por extenso o numeral 4, algo que não consertei a tempo antes do enviá-lo ao editor João Gabriel Pinheiro Chagas.  


Memento Mori saiu no canto inferior esquerdo da página oito da edição 6970 do Jornal da Cidade