Sunday, March 29, 2015

Baco Doesn't Rule Anymore (heresia contra Baco), um miniconto de Fernando Lellis

Deus Baco desgraçado, não vou mais te adorar, maldito!!! Só porque você é um deus do balaco-baco que promove intensos bacanais, bebedeiras e sessões de espancamentos, não necessariamente nessa mesma ordem, isso não significa que eu tenho que te achar foda e te adorar. Você é um filho da puta de proporções gigantescas, um baita machista, egoísta, presunçoso, que desperdiça seu poder divino com prazeres carnais, vazios e doentios. Você ainda vai se afundar na sua própria lama, seu lazarento: tomara que Zeus te lance no inferno e Hades solte o cão Cérbero pra comer seu pingolim com uma de suas cabeças e seu cérebro com a outra, miserável filho de uma fêmea de unicórnio!!!

Fernando Lellis, Jornal Bacanal 2.3, seis de junho de 2001

Publico pela primeira vez um texto que não é meu aqui. Fernando Lellis era um ouvinte do Programa Pirata, que eu produzi junto com amigos nos meus tempos de universitário na Rádio Unesp FM de Bauru, na segunda metade dos anos 1990; ele mandava cartas para o programa pedindo músicas (entre as que me lembro, do Dominatrix e Pin Ups) e fazendo sugestões. Um dia ele abordou a mim e a minha namorada à época num show do Autoboneco/Bonequinho em um fliperama abandonado na Avenida Rodrigues Alves. Gostamos muito dele e da conversa. Ele se parecia um pouco com o Thom Yorke, era tímido, solitário e muito inteligente. Apesar da timidez, nos shows ele era uma figuraça: participava das rodas de pogo e imitava ataques epiléticos, mas não era uma imitação literal do Ian Curtis, ele tinha o próprio estilo. Na coluna que ele mantinha no site do Street Bulldogs (banda da cena punk hardcore dos anos noventa) e em especial nesse fanzine dele, o Jornal Bacanal, ele falava abertamente sobre sua solidão. Troquei alguns emails com ele depois que me mudei de Bauru, mas o último e-mail que enviei, em 2003, não teve resposta. Apenas recentemente descobri que ele morreu de leishmaniose (úlcera de Bauru) em meados da década passada. Fiquei chocado. É injusto demais. Fica aqui minha homenagem a alguém tão legal, espero que a família não se importe em reproduzir o texto dele, pois não tenho nenhuma intenção comercial; revisei este texto, uma espécie de miniconto/desabafo, e espero que seja lido por muito mais gente, nesta época de redes sociais, do que na época dos fanzines e zines online (e o site do Street Bulldogs nem existe mais...). Agradeço muito à minha amiga Tico (Ana Paula Benini), que me cedeu uma foto do seu acervo pessoal para enriquecer esse pequeno texto de memória.
Daniel Souza Luz, 29 de março de 2015.

Roda de pogo no show do Bonequinho no festival Octoberfezes 2001. Fernando Lellis é o de óculos. Foto: Nô Benini.

Sunday, March 22, 2015

Velhas tardes de domingo

André lustrava o carro, passando uma segunda mão de cera, no capricho, como sempre gostou. Vermelho Ferrari - ao menos na cabeça dele. Não bebia nessa hora, jamais. Estava com uma camisa pólo, começou a passar calor ao conversar com Carlos, seu vizinho de muitos anos. Carlos sempre foi cheio dos xavecos e convenceu André a participar da manifestação contra a corrupção. Disse que era contra a ditadura, mas a favor do impeachment. André pois-se a pensar; nunca acompanhara política, só achava que era corrupção demais, nunca ouviu falar tanto nisso, mas sempre ouviu falar.
Tá bom, tá bom. Topou. Foi em casa e trocou de roupa; pôs uma camisa da Ferrari, com o cavalinho discretamente empinado no peito. Se não era a favor da ditadura, que mal teria?
- Falaí, Carlinhos! - foram recepcionados com umas brejas que estavam em isopores na parte de trás de uma Hilux; estava muito quente.
André aproveitou pra encher o caneco. Notou que estava cheio das gatinhas e rolando bastante som. Parecia uma rave, quando amanhece, e no dia seguinte de um jogo do Brasil. Perfeito, se deu bem demais.
Perdeu-se de Carlos e, já bem alto, tanto quanto o som, começou a jogar ideia numa loirinha. Ela foi até que educada, ele insistiu, logo um sujeito ligeiramente maior que ele chegou intimando. Era o namorado dela.
- Olha aqui um comunista no meio da gente, o cara tá infiltrado, provocador!
Não houve tempo de explicar que a camisa era vermelha porque era da Ferrari. O sangue, de um vermelho conspurcante, corria pela rua.

Sunday, March 15, 2015

Sobre o que falávamos mesmo?

Bolinha de gude.
Ele ainda se apegava a essa lembrança, o seu Rosebud. Ela, alheia ao desconhecido ao lado, lia mensagens no celular e ria de memes. Lembrou-se de quando leu uma matéria sobre memética, sobre como era um assunto sério e lhe pareceu tão interessante e cheio de possibilidades. Agora era só uma piada, como a vida dela, obsoleta.
No ponto de ônibus havia mais seis ou sete pessoas, exprimidas, aguardando enquanto a chuva apertava. A garganta dele apertou também, lembrando-se do futuro que acalentava como se fosse um bebê sorridente, que lhe balbuciava promessas em palavras ainda mal articuladas, mas plenamente reconhecíveis.
Quando o ônibus chegou, esbarraram-se. Ele ofereceu-lhe o caminho com a mão; ela agradeceu com um leve aceno de cabeça, desacompanhado de qualquer esboço de sorriso. A meia dúzia esperando atrás e o motorista jamais saberão que eles namoraram por um ano e meio. A história já os apagou e portanto não abarca mais a estória deles, essa palavra arcaica, da qual ela jamais gostou e na qual ele ainda se segura como um destroço à beira do redemoinho do presente, esperando ser tragado para o passado abissal como um anacronismo do qual alguém ainda se lembre com algum saudosismo.

Wednesday, March 11, 2015

Nova Bizâncio

Açudes tremendos na cidade fazem os cidadãos tremerem. O frêmito espalha-se com a notícia de que as barragens se romperam com os atentados terroristas. Por quê? Quem?
Pura maldade. Enquanto buscam por sentido e não pelas saídas, morrem discutindo, afogados pelas águas, medos, especulações e dúvidas.
Nas poucas saídas, morrem pisoteados, esmagados, comprimidos.
Os poucos sobreviventes não olham para trás, temerosos de antigos mitos.

Sunday, March 01, 2015

Tão longe e muito perto

Lembrou-se com carinho dela, mesmo a odiando e vice-versa. Embora não saiba o porquê dela ter manifestado tanto ódio, a simples manifestação odiosa dela bastou para acender uma chama de raiva que não há tempo que debele. Há lufadas de ar que a extinguem por alguns minutos, para o ódio renascer com tanta força que queima quem está nas cercanias.
Há os pertences jamais devolvidos. Esquecidos. Há anos. Para devolvê-los quando fosse conveniente. Uma desculpa para puxar um papo furado para se acertar em cheio numa roleta russa.
No dia seguinte o ódio queimou todo seu combustível e eclipsou-se sobre si mesmo. Obliterando todas as lembranças, boas e ruins.

Foi um sonho. É só literatura. Não é assim, nunca é assim.