Sunday, September 06, 2009

Adendo pós-parada forçada por D.O.R.T.

Também escrevo contos e minicontos em inglês. Por ora dá para continuar com estes últimos:
http://writinginahurry.blogspot.com/

Sunday, August 30, 2009

Diário de um condenado

Estou com uma D.O.R.T. (Doença Ocupacional Relacionada ao Trabalho) , ou seja, lesão por esforço repetitivo nos dois antebraços. Não dá para ficar escrevendo muito. Vou parar com este blog e só o retomarei quando o melhorar de vez. Poucos notarão, se é que alguém notará. Então o twitter é o ideal para mim agora, estou escrevendo nanocontos (ou microcontos) diários. Minha idéia é que estes microcontos componham um painel ou diário, um pequeno romance cujos pedacinhos vão sendo escritos diariamente. Não era minha idéia no começo, mas se alguém ler na sequência vai perceber quando começa a história. Bem, aqui está: twitter.com/danielsouzaluz


Sunday, August 23, 2009

Enfim o fim

Em uma comunidade de extrema-direita, deram conta do sumiço inexplicável do velho, que tinha até um perfil no orkut, quem diria. Mas eles especulavam se não teriam sido membros do governo que teriam dado cabo dele. Velhos gagás. Queriam sair por aí batendo nesses caras em comícios, tal qual o velho clamava em seu perfil no orkut. Mas não relacionavam seu desaparecimento ao aparecimento da ossada. Isso foi o fim de tudo. Quando mostrei isso ao meu irmão, ele perdeu todas as esperanças. As tentativas governamentais de localização das ossadas, com ajuda do exército, eram patéticas, claro. Toda a investigação, tudo que ele havia investido, em nada sossegou seu desejo de enterrar meu pai em solo apropriado, católico. Para mim, no entanto, é como se o tivesse enterrado no dia em que acabamos com o velho. Está bom assim.

Sunday, August 16, 2009

Enfim parte 20

Fizemos o que tínhamos que fazer. No entanto, sabíamos que isso traria demasiada atenção. As manchetes nos jornais a respeito da primeira ossada identificada há muitos anos ressaltavam o seu aparecimento misterioso. O velho mendaz talvez tivesse se confundido, pensando bem. Mas se quis nos sacanear, impondo-nos uma vitória além-túmulo, ao menos fez a alegria de uma família que há muito queria enterrar o seu morto. Eu compartilhava da alegria deles. Meu irmão não. Cabisbaixo, dizia-me pelos cantos que temia que alguém fizesse a conexão do desaparecimento do velho e a súbita aparição da ossada. Ao menos na imprensa escrita não foi feita nenhuma menção. Nós havíamos escolhido bem, eu lhe repetia, mas não havia necessidade de reforçar isso. Ele mesmo tinha me convencido de que seria um empreendimento seguro ao fazer a investigação dele: o velho sabia muito, estava só, isolado, ninguém se importava com ele.
Mas resolvi fazer uma busca na internet. Não achei nada. Aí procurei no sistema de busca do orkut. Alguém tinha se dado conta do sumiço dele.
Continua.

Sunday, August 09, 2009

Enfim parte 19

Meses após

Não chegariam mesmo a nós. Feito o teste de DNA, descobrimos que aquele esqueleto não era de papai. O velho canalha tinha o poder de ser traiçoeiro mesmo além-túmulo. Jogamos a ossada no quintal do presidente da comissão de desaparecidos, na capital. No bilhete, expliquei que provavelmente era de um guerrilheiro. Era mesmo. Estava estampado na manchete dos jornais, duas semanas depois. Um trotskista sem ligação com o grupo de meu pai.

Continua...


Sunday, August 02, 2009

Enfim parte 18

Depois de um bom tempo revolvendo a terra, Júnior o acha. Ele vai guardando os ossos dentro de um saco preto. Com suas luvas amarelas, mira o crânio por uns instantes antes de guardá-lo com um certo carinho, por mais estranho que isto possa ser. Observo tudo sentado contra a parede, com a tremedeira das mãos já controlada. As pernas, entretanto, permanecem trêmulas ao me levantar para ajudá-lo a pôr o corpo do velho na cova reaberta. O rosto está quase irreconhecível, amassado, o nariz torto. Enquanto ele começa a jogar a terra de volta, diz calmamente:

- Não se preocupe, o silenciador funcionou bem. Ninguém vai nos pegar. Moramos a milhares de quilômetros da família dele, pegamos ele sozinho na praia, estamos a centenas de quilômetros de lá. Não chegariam a nós, mesmo que achem o corpo.

Continua...

Sunday, July 26, 2009

Enfim parte 17

Refeito, Júnior me tira de cima dele. Deito do assoalho, todas as cores que enxergo balançam. Não controlo a tremedeira das mãos, só consigo virar a cabeça para ver Júnior esmurrando sem parar a face do velho. Um pouco mais calmo, ele vem até a mim.

- Obrigado, sempre soube que podia contar com você se houvesse um imprevisto. Deixe tudo por minha conta de agora em diante.

Continua.

Sunday, July 19, 2009

Enfim parte 16

Golpeio a mão que estava segurando a coxa. Tentei por força suficiente no golpe para decepá-la, mas só fiz um corte fundo. Ele se vira, segura o jorro de sangue com a outra mão, mas meto o falcão nela também. Ele mal protesta ou geme, logo volta a se deitar de costas, parece conformado em se esvair em sangue. Como se fosse um privilegiado por só sofrer isto.

Ajoelhado sobre ele, tenho que fazê-lo. Tomo impulso, seguro o cabo com ambas as mãos, sobe ao peito meu estômago, que se revira. Amargando nojo enterro o facão em sua garganta. Seus olhos saltados antes fixados nos meus escondem-se atrás das pálpebras.

Continua...

Sunday, July 12, 2009

Enfim parte 15

- Não pensei que um bostinha como você tivesse coragem de atirar.

Isto que é empáfia. Estancando o sangue que flui da coxa com a mão esquerda toda ralada, completamente detonado, o velho torturador ainda mantém do desprezo de quem domina a situação.

Ponho Júnior sentado, ele respira com dificuldade. Volto ao velho.

- Nunca me achei capaz também. O Júnior planejou tudo, ele é quem sempre teve em mente acabar com você. Apenas o segui. Mas você vai se foder é na minha mão.

- Um dia me encontrarão, vocês não podem encobrir todos os rastros, eles vão te pegar... vão descobrir tudo.

Continua..

Sunday, July 05, 2009

Enfim parte 14

- Você cava - ordena Júnior, liberando os braços do velho. O facão e o 38 que só agora trouxe ficam em minha posse. O velho começa o trabalho vagarosamente.

- Porra, isto não é uma escavação arqueológica, nós não vamos limpar artefatos e esqueletos com uma escovinha, anda com isso.

Subestimamos o preparo do velho. Ele se vira e acerta em cheio o peito de Júnior com a pá. Estupefato, vejo ele avançar sobre mim com os olhos saltados. Disparo três vezes, dois projéteis enterram-se no chão, o terceiro aloja-se na coxa do velho, que tomba na terra do buraco que fizemos. Chuto a pá assim que posso.

Continua...

Sunday, June 28, 2009

Enfim parte 13

- Aqui está. Debaixo destes assoalhos. Se você tiver palavra, deixe meu neto em paz, pelo amor de Deus.

- Ah, pode ter certeza que ele vai concluir a academia e chegar a sua patente, como você sonha. – Júnior rebate friamente.

Arrancamos as tábuas aos golpes de facão, amassando-as com o pé, atirando-as longe. Júnior pede para que esperemos um pouco. Encaro o velho, que não abaixa o olhar momento algum. Não trocamos uma palavra. Júnior foi célere, logo volta com a pá que havíamos esquecido, porém, senti muito mais que todo o tempo da minha vida passar por aquele breve instante.

Continua...

Sunday, June 21, 2009

Enfim parte 12

- Você acha que sou comunista? Viu o jipe em que nós te trouxemos aqui? Deixa eu te dizer uma coisa então: obrigado por manter o país livre do comunismo, pois pude enriquecer. E você, como é o único animal aqui, e admito que você é um animal de certa estirpe, então vai nos levar onde papai está, pois é isto que os animais da sua espécie fazem: obedecem e rastreiam.

Mal se mantendo em pé, trôpego, pela primeira vez o velho me parece frágil. O tom de voz é quase suplicante, mas sua expressão se mantém feroz, mesmo quando ele cospe, ou vomita, não sei, uma considerável quantia de saliva tingida de vermelho.

Continua...

Sunday, June 14, 2009

Enfim parte 11

- Você não tem moral para falar nada sobre minha mãe, ela é um ser humano, pode errar, como qualquer ser humano. O único animal aqui é você, que não acha errado as selvagerias que praticou. Olha para mim. Olha para mim!
Para um senhor com idade relativamente avançada, o velho ainda era muito corpulento, manteve sua postura ereta, indicativa de força. Mesmo assim, Júnior o levantou de uma vez só, passando o facão em seu braço. O corte é nítido, mas sangue só começa a descer quando o discurso de meu irmão se encerra.
Ainda continua...

Sunday, June 07, 2009

Enfim parte 10

Meto uma bica nas costas do desgraçado. Quando ia repetir o gesto, meu irmão pede para me conter. Nem assim, o velho se cala.

- Ah, você! Os caçulas sempre são mais nervosinhos. Sabia que o irmãozinho daquela vagabunda amiga do seu pai quase conseguiu me chutar quando viu a gente comendo ela?

O mano recobrou a calma. Ele pisa calmamente no pescoço do velho.

- Se o que você disse a respeito da minha mãe é verdade, isto só demonstra a grandeza do caráter do meu pai...

- Comunista não tem caráter, são uns animais. Comunista sujo, seu pai era um comunista sujo, um porco. Foi destripado como todo porco, como o animal que era. Aposto que vocês são uns comunistas de merda também. Filho da puta.

Uma risada nervosa precede o derradeiro ato paciente do meu irmão para com aquele escroto.

Continua...

Sunday, May 31, 2009

Enfim parte 9

- O que foi? Tá bravinho por quê? Tinha furos suficientes no saco para você respirar bem até tiramos as caixas de som do tampo para você ficar em um ambiente bem ventilado você não fazia o mesmo por seus cativos... tudo isto ainda é POUCO – berra meu irmão com um fôlego só, caracteristicamente jorrando palavras e titubeando ao fim.
Finalmente, o silver tape é retirado da boca do traste, que não se faz de rogado.
- Filho da puta, filho da puta. Você é mesmo um, literalmente, seu filho da puta. FI - LHO DA PU - TA. Nós descobrimos, enquanto investigávamos seu pai, que sua mãe se envolveu com ele já grávida de um caixeiro viajante que desapareceu. Por que você acha que a data do casamento deles só precede em seis meses o seu nascimento?
Meto uma bica nas costas do desgraçado. Quando ia repetir o gesto, meu irmão pede para me conter. Nem assim, o velho se cala.
Continua...

Sunday, May 24, 2009

Enfim parte 8

Eu abro o nó. É só. Júnior toma todas as demais iniciativas. Retira-o do saco. Remove as cordas dos pés e pernas, mantendo as mãos amarradas. O velho arfava muito enquanto embalagem. Agora, parece mais calmo, respirando pausadamente, fitando-nos desafiadoramente com apenas um olho. O outro está semicerrado, banhado em sangue. O supercílio deve ter sido aberto em meio aos pulos da jornada. Os braços estão com alguns hematomas, e as pernas, pelo que observei, estão roxas. Ele pode ver apenas os braços, nos quais acaba de pousar os olhos.
Continua...

Sunday, May 17, 2009

Enfim parte 7

Não precisei esperar muito. A sede da mineração. Não há mais como prosseguir de carro. Um enorme tronco se interpõe entre nós e a entrada. Prosseguiremos a pé.
Lá está o saco de estopa no porta malas. Fico olhando para os lados, o tampo traseiro aberto. Fomos precipitados. Júnior dá uma volta, faz o reconhecimento da área, verifica que o local está realmente abandonado.
Não tenho coragem de carregar o saco. Júnior o arrasta como se fosse um cobertorzinho sujo, sem qualquer consideração, se preocupando mais com o facão na outra mão, admirando o seu corte. Quase sinto pena. A casinha ainda tem a placa da mineradora, entretanto submergiu na vegetação, crescente entre os assoalhos.
Continua...

Sunday, May 10, 2009

Enfim parte 6

Agora sigo no banco de carona. Já tive muito braço de chegar aonde cheguei. Meu irmão tem mais. A velha estrada parece mais impenetrável, mas ele vai mais célere do que eu. Chacoalho ininterruptamente; peixes de aquário rodopiando em um tornado e sendo socados contra o vidro conheceriam a sensação. O que me faz lembrar da nossa carga. Pergunto se não deve chegar inteira até nosso destino. Ele permanece impassível, concentrado nos obstáculos. Responde um minuto depois.
- É melhor que não chegue intacta, pense bem.
Não discuto. Só espero que conservemos sua utilidade.
Continua...

Sunday, May 03, 2009

Enfim parte 5

A mesma cena se repete desde que tínhamos uns dez e onze anos, respectivamente. Uma orca sobe o chão e me puxa para o fundo antes que esta presa fácil possa esboçar uma reação. Uns socos na banha acabam por ter efeito de cócegas. Damos risadas batendo os queixos.

- Se movimente na água, não pare de nadar.

Obedeço por uns minutos, até quando deixa de ser divertido.

- O que foi?

- Estava pensando em todos os momentos que podiam ser como este, e que nos foram roubados.

Hora de prosseguir. Ele enfia bruscamente as toalhas encharcadas de volta na mochila. Sinal de que devo pôr de volta, e o mais rápido possível, as roupas suadas.

Continua...

Sunday, April 26, 2009

Enfim parte 4

Os filetes de suor que escaldavam meu rosto são subitamente envolvidos pela água do gélido filete que cai ao lado da cachoeira, e no qual me enfiei ainda de roupa. Que burrada. Meu irmão já está nadando só de cueca nas águas translúcidas do regato que segue diante da pequena queda d’água. Recolho-me assim que enfio o pé descalço n’água.

- Entra de uma vez, será que você nunca vai aprender?

Continua...

Sunday, April 19, 2009

Enfim parte 3

Deixo o motor morrer ao tentar transpor um cupinzeiro inconveniente, crescido bem no lado esquerdo em um trecho estreito da estrada. Pensei que seria recriminado, mas meu irmão abre um sorriso. Em alta rotação constante naquele pedaço difícil, não havíamos percebido o arrulhar manso das águas. Argumentei que estávamos um pouco atrasados devido ao terreno acidentado. Entretanto, ele já abria a porta. “Já prevíamos isto, não é mesmo?”, rebateu desnecessariamente, pois já rumava para a cachoeira, mochila nas costas. Desço atrás, me segurando em galhos que se partem com facilidade, mas me apóio aqui e ali.

Continua...

Sunday, April 12, 2009

Enfim parte 2

Os arbustos vão se quebrando no mata-burro. Em meio aos solavancos, os troncos partidos guincham ao raspar no assoalho. A trilha logo aparece. Está quase coberta pelo mato, mas é nítido o caminho em meio às árvores. A estrada para a antiga mineradora.

Iniciantes não percorreriam 200 metros. Em um atoleiro, perdemos um bom tempo fazendo um calço e guinchando o jipe a uma árvore. Depois tivemos que usar os facões para derrubar dois arbustos que inadvertidamente cresceram no meio do caminho. Avançamos lentamente, escorregando no limo, perigando tombar em desníveis escondidos pela vegetação, mal nos mantendo na estrada já quase indistinta da mata e que nos é delineada pela trilha da cachoeira.

Continua...

Sunday, April 05, 2009

Enfim - parte I

A rua de terra batida morre em uma borracharia quase inacessível devido à lama frente ao portão de madeira. Sobre a pintura azul descascada das tábuas mal ajambradas está rascunhado porcamente com tinta preta: “Nao fazemos fiado”. Não há sinal de atividade. Batemos palmas. Ninguém aparece. Empurro o portão rangente. De dentro, sai um senhor calvo. Olhos vermelhos, barba rala branca, botinas cheias de barro, a roupa toda esgarçada. Não precisava chegar perto, mas ao se aproximar tivemos certeza que estava alcoolizado.

- Pois não? - é o sentido que parece ter o bafo de cachaça aspergido pelo ar que ressoa aos ouvidos e se insinua desagradavelmente narinas adentro. Gotículas de saliva pousam na minha bochecha.

Explicamos que ouvimos dizer que há uma antiga estrada que prossegue atrás da borracharia, e que gostaríamos de conhecê-la. Ele franze a testa e balança, parecendo se perguntar o que está fazendo ali. Depois levanta os olhos, mantendo a mesma expressão apalermada, dirigindo-os ao meu irmão. Por que estávamos querendo saber de uma estrada abandonada? Para fazer reconhecimento para um rali. E por que faríamos isso domingo de manhãzinha? É nosso hobby, um grande prazer, somos da federação de automobilismo off-road.

Contorno o galpão com o jipe. O espelho esquerdo raspa no muro; o espaço é muito estreito. Vagarosamente, evitando pedras pontiagudas enterradas na terra, dirijo paralelamente às árvores do fundo até um pequeno declive, onde há uma vegetação rasteira. O tiozinho explica que ali a estrada fazia uma curva, e que era só descer um pouco até uma trilha que eventualmente é usada por alguns moleques que nadam em uma cachoeira no meio da mata. Dou um dinheirinho para ele; abre-se um sorriso de dentes amarelados.

- Então vamos? – quase suplica meu irmão, ansioso.

O velhinho se espanta, mesmo ciente de nossas intenções desde que chegamos. “Vocês vão descer mesmo?”. Claro, é uma quatro por quatro, estamos acostumados. Nos despedimos, e ele, estranhamente, bate continência. Olho para meu irmão, que ignorou o gesto, mantendo o olhar fixo na descida. Ótimo, precisamos de foco.

Comecei esse conto mais longo em meados de 2004 e, apesar de a trama ainda avançar muito, deixei-o pela metade. Espero conseguir terminá-lo agora.

Sunday, March 29, 2009

Devaneio

Queria dormir e acordar no dia em que você nasceu. Ciente do retorno, lobotomizado quanto ao sofrimento inútil que passei, que passamos, e, mais importante, que te fiz passar. Com dez anos, não podia sair de casa. Com malícia, mais tarde, sairia correndo da escola, no meio do recreio, fugiria e iria ao berçário te ver. Você é careca, vermelha, feia, todo neném é feio, chorona, mas eu já te amo, te amo tanto que estou aqui, agora, com a alegria de viver intacta, olhando pelo vidro riscado, e me perguntam se vim ver meu irmãozinho e digo que sim, e meu pai está lá embaixo e vou lá chamar ele. Quando disse malícia, me entenda bem, não é a malícia que meu amigo Evandro, que nem conheci ainda, falava que queria ter se pudesse voltar no tempo e pudesse pensar como um adolescente sendo criança, não, eu não ia ficar folgando nas menininhas, fazendo elas de bobas. Não, só vou ser mais esperto, vou fingir que sou criança e vou a todos os lugares que queria ir e não podia, porque tinha medo, punham medo em mim, não sei, nem me ensinaram a andar de ônibus, bicicleta ou skate, aprendi a fazer isto quando era muito mais velho, nunca saía de perto de casa, a menos se fosse junto aos meus pais, mas agora não, não vou ter medo de andar na rua, de jogar no fliperama barra-pesada que eu sempre quis jogar. O que quero mesmo dizer é que vou ser puro, vou esperar você crescer, te vendo de longe, e um dia vou pegar na sua mão e te pedir em namoro, e a gente vai ficar junto desde bem novinhos, e tudo será melhor. Desço a rua do hospital direto para o fliperama, mas um desgraçado pega o meu braço e diz “acorda!”, ele parece ser um comissário de menores, um daquela época, só podia ser. Você não está do meu lado, e as fotos daquele tempo bom, que até tinham o cheiro gostoso das manhãs de 1986, aquele cheiro das bolachas de chocolate redondinhas que não existem mais, estão rasgadas ao lado da cama, picadinhos esmaecidos e malcheirosos.

27/05/2005

Sunday, March 15, 2009

O primeiro amor

Sábado à noite. Na cadeia, em um corró reservado para a garotada, para que eles não fossem currados pelos demais presos, ele pensa nela. Ela caiu da ponte que não ligava as duas margens, deixada pela metade, sem dizer uma palavra, ou demonstrar qualquer reação, chapada pra caralho. Seu nome era Paula, ao menos foi o que ela disse dez minutos antes de morrer depois de lhe fazer uma chupeta, a primeira da vida dele, por uma pedra. WJQ, as iniciais dele, estilizadas como sempre, estavam escritas à caneta no pescoço dela. Os policiais já sabiam, já as tinham visto pichadas e eles o odiavam. Ele começou a chorar, quinze anos, abandonado pela família, imaginando o encontro no motel, agora mesmo. Ela poderia ter sido sua namorada.

15/03/2009 – escrito originalmente em inglês e ampliado.

Sunday, March 08, 2009

Pseudônimo à revelia

Não consigo lembrar onde foi que li. Era uma matéria sobre escritores brasileiros que foram funcionários públicos. Não me lembro bem do conteúdo, nem quem eram eles, à exceção de Carlos Drummond de Andrade. Só não me esqueci que a ociosidade do serviço público permitiu que eles escrevessem e desenvolvessem seu estilo durante o expediente.

Eis que um dia me vi enfiado neste desgraça. “Presta concurso, presta concurso!”, toda sua família contra você. Esgoto cheio de ratazanas, ninho de cobras, escolha a imagem que mais lhe aprazer. Não tem nada pior do que ser enfiado neste covil de medíocres. Casamento marcado, estabilidade no emprego, prisão perpétua.

Juro que queria trabalhar muito para justificar o suado imposto do povo. De cara vi que só tinha vagabundo. Serviço jogado nas minhas costas. Tentei me livrar, só que é aquilo: os vagabundos velhos acham que o serviço deles é sua obrigação. Um dia cansei de bancar o garoto trabalhador. Virei vagabundo novo. Inventei que meu serviço mesmo era outro, devolvi a papelada a quem de direito, e fui à caça do idílio literário.

Tomei no cu. Em uma repartição pública, o trabalho mais importante é o de espionagem. O que está fazendo, a que horas, com quem. Ninguém é carente emocionalmente, pois todos se preocupam uns com os outros. Três dias para escrever e depurar uma crônica caprichada, e vejo-a publicada em um pasquim local. Porém, assinada por uma “jornalista” que eu não conheço. Amiga do chefe do setor. Que não vai com minha cara. E, entre um café e outro, mexe no meu computador quando não estou.

Três dias. Serviram para que o embrulho do peixe não fosse branquinho. Para tanto, podia ser apenas um. Mas com tanta gente falando na sua cabeça o tempo todo, é impossível concentrar-se.

Serviço de rua. A salvação.


Esse miniconto é de 2003 ou 2004. Achei no meu computador velho. Não consigo entender porque não o curti na época.

Sunday, March 01, 2009

Calor Humano

- Pai, o senhor pode voar igual ao Super Homem?
- Posso.
- Então voa.
- Não quero.
- Por quê?
- As pessoas podiam ficar com inveja, e não quero que elas saiam voando por aí. Pior do que um invejoso, só um invejoso voador.
Nunca menti para meu filho. Mas toda vez que sou sincero com minha esposa, chamas envolvem o meu estômago.
- Amanhã ele vai à missa comigo.
- Você vai transformá-lo em um robô.
- Não somos idiotas, e nem seu filho – nosso filho! – será...
- Ele deveria escolher se quer ir, ou não, quando for adulto.
- Mas...
- Não sei porque casamos. Um par de coisas fundamentais não se encaixa entre nós.
Minha língua funcionou como um lancha-chamas. E ela se queimou mesmo. Não devia deixar algo tão abrasivo escapar. Estávamos todos de mau humor, e mais cedo ou mais tarde ela inventaria uma desculpa qualquer para sair pelo mundo. Nós berramos desvairadamente naquela noite. Tanto o vizinho de cima quanto o debaixo reclamaram na portaria.
- Você não pode gritar com seu filho! Nem se ele gritar. Nunca!
Me levou tudo e deixou apenas uma foto. Um carola casou com ela. A guarda do garoto foi dada à mãe. Os três acabaram dentro de um ônibus, em um precipício, quando iam para Aparecida.
Tentei fazer uma escultura de nós três, a partir da foto. Pelo menos teria mais uma lembrança material. Pareceríamos tão feios se a concluísse que nem chorei ao rebentá-la contra a parede. Fiquei é sem ar. Novamente me deparei com a imagem de Júnior decapitado.
A vida ficou fora de controle.
Ponho meio corpo fora da janela, puxando o mormaço para dentro dos pulmões. Como se estivessem sendo compactados pela atmosfera, enquanto o tórax entra em combustão.
Há anjos desenhados no playground. O céu é lá. Encontrarei minha mulher, meu filho. Hora de voar. Não me preocuparei mais com os invejosos.

Esse miniconto foi publicado no número 11 do jornal PapoArte, há três anos, e já o havia reproduzido no meu blog Humano Obsoleto pouco dias depois da publicação. Foi apenas um exercício para uma oficina de literatura ministrado para a escritora Ana Miranda, mas creio que é um dos melhores textos que já consegui escrever e um dos meus favoritos. Lembro-me de duas reações ao conto que me agradaram: uma amiga leu o jornal, me encontrou na rua e disse-me que adorou; um amigo me disse que amigos dele que eram muito carolas não gostaram.

Sunday, February 22, 2009

Melhor assim

Sempre confuso, ele também parecia precisar da aprovação de amigos que ele julgava melhor conhecedores de algo que em que ele se metia. E isto era um problema para todo mundo, pois ao mesmo tempo em que todos tinham o seu ego inflado por serem considerados bons em alguma coisa, nós éramos pessoas normais com aptidões comuns. E ele levava muito a sério as nossas opiniões. Todos nós sempre nos arrependíamos de termos lhe dado trela. Uma vez ele mandou-me um e-mail assim:

“JANO

Talvez seja, ela não gostava de mim. Eu nunca pensei que pudesse olhar para um canto escuro e nada vir a minha cabeça. Se eu fosse o personagem de Dan Akroid no primeiro Caça-Fantasmas, aquele homem de marshmellow gigante não teria aparecido. Eu queria ligar esta porra de televisão, mas não posso, ela é uma amiga de certa forma. Meu corpo se manifesta de várias maneiras, mas esse negócio de escrita automática não é tão legal no computador.

Foi o máximo que consegui escrever dessa forma. Sempre quis fazer escrita automática, mas deveria ter escrito a caneta mesmo. Teria dado mais certo. Que porra era aquele título, Jano? De onde tirei isto? De algum livro de história que li quando era pequeno, provavelmente. Até o meu subconsciente gosta de dar uma de besta. Só sei que nunca mais animei em dar uma de dadaísta. Eu não digito tão rápido, e isto me tirou o tesão do negócio.

O que você achou? Ficou muito ruim? Sinceramente? Você sabe que eu sempre quis fazer isto. Escrevi isto há muito tempo. Eu queria ser bom nisso, mas sabe, desanimei mesmo. Sabe onde está escrito “Eu queria ligar esta porra de televisão...”? Bem, eu queria ter escrito “Eu queria desligar esta porra de televisão...”, mas digitei errado. Não faz sentido, não é mesmo? Eu queria desligar, mas não podia, porque a TV era uma boa amiga naquela época, em que estava muito sozinho, você sabe. Se bem que de repente até que ficou legal, né? Por ter ficado esquisito, sabe como é que é?”

Eu só respondi isso:

“Você escreve bem, é um dom, mas acho que qualquer um o pode fazê-lo treinando.”

Nunca mais ele olhou na minha cara.


Escrevi este miniconto em 2003 ou 2004, revisei hoje.

Sunday, February 15, 2009

Balada Errada 2

A luz negra realça o seu vestido branco. Ela joga os cabelos para os lados, os braços para cima, ensaia uns passinhos de samba. Drum n'bass brasileiro. Como todo mundo que que havia descoberto isso ontem, tinha os quadris duros. A lábio e o requebrado ainda hão de funcionar. Aproximo-me, deixo solto meu lado Dudu Nobre, ela sorri.

- Na minha quebrada, você não enganaria ninguém.

Berro isto três vezes. Vale a pena. Ela começa a rir, a cara enfiada no meu ombro, as mãos apoiadas em meu peito enquanto mexe aqueles tênis brilhantes. Começa o poperô. Eu não quero ficar no meio daquela tenda cheia de barro. Ela quer. Ainda agüento três “músicas”. Tsi, tum, tsi, tum, tsi, tum.

Desisto, não estou com paciência pra ficar mimando madame criada por FMs. Olho para a casa perdida no meio do mato, faço menção com a cabeça de que vou pra lá, e saio abrindo caminho em meio ao povinho fashion. Chegando perto da janela, me viro e só vejo os clubbers de sempre. Hora de vazar. Ao encostar-me na parede para descansar um pouco, vejo uma ruiva empurrando uns agroboys. Ela me seguiu.

A porta da frente está trancada. O único jeito de entrar é pelo buraco do cachorro da porta de trás. Quando ela engatinha pela portinhola, eu penso na minha adolescência, no banheiro de azulejo rosa, e me pergunto por que nunca fantasiei isto antes.

Só havia luzes vermelhas bem fraquinhas no corredor. Os cômodos são insondáveis. Não consigo ver nenhum dos famosos sofás para amasso que tanto havia ouvido falar. Ela ri do meu desconforto, e, tropeçando nas próprias pernas, arranca uma lanterna da bolsa. Gargalha ao apontar o facho para um quarto. Têm quatro, cinco pessoas por sofá. Todos homens, acho. Subindo correndo as escadas, ela gargalha ainda mais.

Tomo a lanterna de sua mão. Mas ela tem uma idéia pior. Acende a luz de um dos quartos. Ninguém acredita. Vários casais seminus naqueles sofás e... Tony em cima de um magricela com a cara enfiada em almofadas. Ambos com as calças arriadas. Pô, Tony.

- Apaga a luz agora, o que você está olhando?! – Estou olhando ele fechar o zíper, e agora me sinto duplamente otário.

- Porra Negão, justo você, me fazer este papelão - Tony arfava indignado.

E ela ri alto, mais ainda enquanto Tony nos puxa pelos braços através do corredor. Ele nos joga com toda força em um banheiro. Tem um sofá! E nele caímos. Ela me pergunta quem era meu amigo. “Segurança da rave”. Seus risos ficam ainda mais histéricos.

Acendo a luz. Boca borrada de batom, maquiagem pesada escorrendo junto ao suor, faróis acesos. Senhorita roubada, o que vamos fazer?

- Quer tomar essa pílula azulzinha? Um sorriso sacana é esboçado.

- Não preciso disso.

- Nem eu - e ela engole aquilo. Portanto, apago a luz. Era a deixa.

Tony e outro segurança entram com os fachos das lanternas em nossas caras. Vingança. É justo. Somos arrastados pra fora da casa. Saio atrás dela, e não acredito no que ouço:

- Amor, onde você estava?

Mesma roupa, mesmo cabelo. É o rapazinho magrela do Tony. Com a minha mina. Abraçando-a. Dois pombinhos. Saem de mãos dadas. Nenhum deles olha pra trás. Tony, ao meu lado, parece mais resignado.

- A vida é assim. Negão... escuta, a galera do bairro, eles não precisam saber...

- Saber do quê? Não sei de nada.

A casa treme. São os graves do som estourado, ou... Esquece. Não volto lá para descobrir.



Pensando bem, acho que esta é a versão deste conto publicado na revista Ops! e a versão que publiquei aqui no ano passado é a versão original, mais longa, que pensei que havia perdido. Depois preciso achar a revista para confirmar isso, mas é 99,99% de certeza.