Monday, November 28, 2022

Passageira, de Lua Ferreira (resenha)

Este artigo foi publicado na página 8 da edição 7866 no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 26 de novembro de 2022. Eu mesmo revisei o texto, portanto posso ter deixado passar alguns erros.

Recentemente Lua Ferreira passou por Poços de Caldas e não tive o prazer de conhecê-la. Ainda bem para ela e outros convidados de uma festa de halloween a qual acabei não indo, pois, poucos dias depois, pela primeira vez, tive Covid-19, atingido por essa maldita nova onda que ora se avulta. De qualquer forma, descolei um exemplar de seu livro de estreia, Passageira, lançado pela Crivo Editorial em agosto deste 2022 que se finda. Ela é uma poeta de Além Paraíba (MG) e tem um perfil muito popular de poesia no Instagram (@soul_de_lua), com quase 180 mil seguidores. A contemporaneidade é a marca da sua poesia, portanto: é concisa, adequada para a publicação naquela plataforma/aplicativo, algo reforçado já na epígrafe que abre o livro, uma citação da poeta Marceli Andresa Becker (que encurta seu nome artístico para Mar Becker, tal como Luanna Ferreira, a Lua), outra potência da poesia brasileira contemporânea, a qual conheci lendo-a, claro, nas redes sociais. Passageira divide-se em duas partes. A primeira é denominada Ponto Morto e o tema preponderante, numa primeira leitura, é a ruptura, impressão já dada no primeiro poema. Poucos têm título, alguns possuem apenas uma frase, avizinhando-se, portanto, dos aforismos. “O que não vivemos é tudo que nos falta.” é a totalidade de um, outro resume-se a “encontrar uma sombra na espera”. É o que basta, a autora é uma mestra na concisão. Tanto que alguns poemas mais longos perdem o impacto ao ganhar narratividade. Numa releitura, essa primeira parte não parece tão melancólica. Há poesias espirituosas, como a que faz alusão ao mito de Ícaro: “minhas asas/sua beleza/sol e cera”. Há brincadeiras jogando com as palavras e paradoxos: “Tem gente que se acha/Eu me perco”. Uma das poucas poesias que foram tituladas, Bloco de notas, embaralha os sentidos: “segurar a onda e evitar/desnecessárias ressacas”. O alívio lúdico dá equilíbrio a essa primeira parte. A segunda chama-se Cinesia, que vem ser a capacidade de movimentar-se (tive que consultar um dicionário, desconhecia a expressão). Faz sentido: aqui o mote é a paixão e as descobertas oriundas da convivência. Vem como um bálsamo, mas não é tão impactante quanto a primeira parte – ou, melhor dizendo, impactou-me menos. A subjetividade de cada leitor que pesará isto, mas são dois movimentos complementares. O tom muda, algo que a poesia que abre essa parte também prenuncia. A singeleza de alguns poemas resvala na obviedade, infelizmente, mas também há pérolas: “você na multidão/é a multidão”, “Teus desertos/Me dizem/Oásis”, “pintei meu abismo de céu e subi”. Bastava cortar algumas páginas na edição e haveria um todo muito robusto.    

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor




Monday, November 21, 2022

Jacques, a Lenda

Esta crônica foi publicada na página 7 da edição 7881 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). O texto foi revisado pela Juliana Gandra antes da publicação.

Jacques Rodrigues de Carvalho morreu aos 92 anos em 17 de novembro de 2022. Era uma pessoa boníssima, uma figura popular, conhecido como principal nome da filantropia na cidade, além de ser protético. Isso todo mundo em Poços de Caldas sabe. Quando eu era criança, no entanto, não sabia nada sobre ele e morava muito perto do Pronto-Socorro de Assistência Social Jacques. Cresci no bairro Marçal Santos, colado no Jardim do Ginásio, onde fica a rua Comandante Ary Lopes Buono, endereço da famosa instituição filantrópica mantida lá por décadas pelo Jacques. Bem, conforme fui crescendo, como toda criança, comecei a me aventurar cada vez mais longe de casa para brincar. “Longe” às vezes era uma rua abaixo, fora da vista dos meus pais. Nos anos 1980 (não sei se o hábito permanece), noto agora que havia um método de pais em geral, não só os meus, de tentar assustar crianças com histórias de loucos violentos pelas ruas, com o intuito de evitar que fôssemos longe. Lembro disso, de forma mais pronunciada, na vizinha Botelhos, cidade de meus avós maternos, onde havia o “Joaquim Louco”, um sujeito que vagava a esmo pelas ruas. Diziam sempre que ele ia nos pegar – para fazer o que, eu não sei. Sei que a PM uma vez bateu no pobre Joaquim na porta da casa dos meus avós; não esqueço da poça de sangue, do cheiro forte de ferro e de ver dois dentes caídos na calçada. Quando contei isso para meu tio Helinho, recordo-me bem dele dizer “Infelizmente tem gente que nasce apenas para sofrer”. Por que narro isso? Porque o Jacques, como é de conhecimento geral, tinha para si a missão de ao menos dirimir um pouco o sofrimento dessas pessoas. E muitas delas, ao procurá-lo, passavam na rua Berilo, a rua abaixo da minha, que sai em frente ao Pronto-Socorro Jacques. Nos politicamente incorretíssimos anos oitenta, claro, pais do meu bairro tentavam dissuadir seus rebentos de brincar na rua com essas histórias de malucos que iam nos atacar. De fato, uma vez uma pessoa em andrajos nos xingou gratuitamente quando jogávamos bola lá e depois rumou em direção ao Jacques. Foi só isso, inofensivo. Sempre via gente muito humilde, pessoas em situação de rua, às vezes descalços, caminhando na rua Berilo e depois os via na porta do Jacques. Isso me atiçou a curiosidade, perguntei sobre ele para meu pai, que me disse que Jacques era um protético espírita que ajudava muita gente. Na minha imaginação infantil, achava que ele era francês, por causa do nome. E que era alguém muito alto, forte, que carregava desvalidos nos braços. Passei a jogar futebol até mesmo na rua Nico Duarte, quase ao lado do Jacques, e nada de vê-lo. Vai ver o vi, mas como ele não se encaixava na minha imaginação, passou batido. Veio a adolescência, fui morar fora, voltei adulto. Tinha quase 30 anos e um dia me toquei que não fazia a menor ideia de como era o Jacques. Dei um jeito de inventar uma pauta só para marcar uma entrevista com ele. E que surpresa! Era um senhorzinho franzino, vestido todo de branco, simpático e que parecia sempre estar com pressa. Ressalto que não era estressado ou ríspido. Precisava fazer algo ou ajudar alguém, justificou. Então aquele era o lendário Jacques. Um dos raros casos que a realidade era melhor do que a lenda.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, escritor e revisor

Jacques Rodrigues de Carvalho em dezembro de 2021. A foto foi tirada por Tokinho Carvalho, sobrinho dele, que me autorizou a reproduzir a foto aqui. 


Monday, November 14, 2022

O Menino do São Benedito e outras crônicas, de Luis Nassif (resenha)

Esta resenha foi publicada na página 7 da edição 7878 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 12 de novembro de 2022. A base do artigo foi um texto que escrevi para o Good Reads sobre o livro; aproveitei o gancho da censura determinada pelo prefeito Sérgio Azevedo para atualizá-lo e ampliá-lo. 

No aniversário de 150 anos de Poços de Caldas veio à tona um rumoroso caso de censura, imposta pelo prefeito, da qual foram vítimas os realizadores de um documentário sobre a cidade e o jornalista poços-caldense Luis Nassif, que ressaltou ser autor de dois livros sobre a história de Poços. Pergunto-me, entretanto, quem os leria na medíocre bolha dos gabinetes onde se tomam decisões estultas. Por acaso, resolvi ler um deles em meados deste ano: O Menino do São Benedito e outras crônicas, um calhamaço de 456 páginas que, na verdade, não se aprofunda tanto assim na história do município. Foi uma boa leitura, mas tenho alguns senões. O grosso da obra é composto de crônicas sobre música, especificamente MPB, estilo sobre o qual não tenho conhecimentos profundos. Procurei para ouvir na web várias das canções que Nassif cita, uma facilidade que tenho agora, mais de vinte anos após o lançamento do livro. Deu o que fazer para achar algumas músicas, pois os nomes estão errados nos textos. Há muitas imprecisões, mas, ao menos, em boa parte das vezes há o uso de marcadores como "acho que", "se não me engano" e por aí vai. Isso, no entanto, não se aplica aos nomes das canções: parece que ele nunca conferia os títulos. De qualquer forma, descobri várias pérolas graças à leitura das dezenas de crônicas sobre artistas tanto famosos quanto obscuros. Há muito ufanismo nos textos que refletem mais sobre a realidade socioeconômica do Brasil, um exagero completo mesmo, e a crença dele num país que progrediria civilizadamente esbarra no tecnicismo econômico tucanoide - o mesmo que ele tanto critica e o que nos jogou e continua nos jogando na barbárie, agora agravada pela extrema-direita abraçada pelos censores de plantão. As leituras mais prazerosas são das crônicas sobre música, esporte e a respeito de Poços de Caldas. A mania dele de estabelecer um panteão pessoal de grandes personalidades, porém, me encheu o saco, pois é contraditória - tem uns três melhores discos da MPB de todos os tempos, muito acima dos outros, dependendo da crônica. E, sendo poços-caldense, não engulo muito esse culto a lideranças locais; tenho claro para mim que, em grande parte, não eram nada além de coronéis extremamente autoritários. A leitura dos textos, aliás, confirma que eu sempre estive certo sobre a empáfia e o mandonismo desses sujeitos. Essa tradição deplorável acabou resultando no que mesmo para o autor, aliás? E eu não quero saber quem comeu quem, outra aparente obsessão ao tratar desses fulanos e de outros poderosos, que aliás eram uns talaricos escrotos, a se julgar pelos relatos que Nassif faz candidamente. O que gostei mesmo é da crônica que dá título ao livro, a respeito da infância de Nassif. Sempre estou ali por perto da praça da igreja do São Benedito e, mesmo tendo conhecido uma paisagem muito alterada, consigo visualizar todas as cenas descritas. Por fim, os textos sobre Walther Moreira Salles são um primor. Mesmo não tendo grande curiosidade sobre a trajetória de um banqueiro, atiçaram minha vontade de ler a biografia que Nassif recentemente lançou sobre Moreira Salles – o outro livro dele que aborda a história de Poços de Caldas, a qual a vida do fundador do Unibanco está intrinsicamente ligada.

Daniel Souza Luz é escritor, jornalista, professor e revisor