Monday, March 28, 2016

Gang of Four (memória sobre skate e tretas na virada dos anos 80 para os 90)

A primeira pista de skate da minha cidade não existe mais. Três de nós quatro também não.
Gostávamos de chegar lá de manhãzinha. Pois no meio da manhã já estava o maior crowd, como dizíamos à época. Ou seja, lotada. Não vejo ninguém mais novo ainda usar o termo. Antes que aqueles tempos chegassem a termo e a pista passasse a ficar vazia, era a hora em que usávamos para aprender a andar direito, para não fazermos feio na frente dos outros. Era só um half pipe e mais nada. A pista de street construída em volta só tomaria forma em meados dos anos noventa.
Isso foi no fim de 1989, provavelmente. Já andávamos na rua fazia tempo, mas a experiência de andar no vertical era (quase) nova. Já havíamos ido andar nas pistas de cidades vizinhas, São João da Boa Vista e Varginha, mas nossos pais sempre faziam com que fôssemos embora logo, eram apenas pequenas concessões que faziam durante viagens. Em Varginha havia um bowl e até hoje me lembro da sensação mágica de andar brevemente numa pista assim. Em SJVB andei pela primeira vez em um half pipe e me apaixonei pela primeira vez, acho. Tinha uma local chamada Beth que era uma menina linda. Ela era linda MESMO (anos depois um amigo que fiz lá me disse que ela ser tornara modelo), desbocada e simpática – ela me falava oi e eu quase caía do skate. Muito diferente das meninas bonitas que eu conhecia, quase todas umas idiotas (as que ainda encontro pela vida, aliás, continuam cretinas, mas não são mais gatas). Andava bem e era mais velha, já devia ter uns 18 anos. Ela era alta e chegava alto na pista. Inatingível.  
Depois de algum tempo aprendendo o valor de acordar cedo e nos dedicarmos a algo – mas algo que valia a pena – já andávamos bem o suficiente para ficarmos em meio a todo mundo. Mas mantivemos o hábito de ir cedo, para andarmos mais à vontade, sem trombarmos sem querer em ninguém. O que podia dar treta. No entanto, ficávamos na pista até tarde, quase todo dia. Era bom ficar conversando, de qualquer forma, quando estava tão cheio de gente que tínhamos que ficar negociando de quem era a vez. Sempre tinha algum fominha, mas nada que gerasse maiores atritos. Mas era gente demais e celeumas surgiram, meses depois.
Surgiram rumores de que um moleque que andava bem, o Purga, estava com o skate novo porque havia roubado-o de alguém. Eu sempre vi o skate como um esporte honrado – hoje diria ético –, sem a estupidez do futebol, com suas faltas e ceras, desonestidade, tiração de sarro e brigas que iam se tornando cada vez violentas conforme fomos deixando de sermos crianças. Bem diferente de nós no skate, que torcíamos um pelos outros e nos incentivávamos. Utopia adolescente, claro. Com o passar do tempo, havia umas quase brigas lá. Uma tensão muda, uma guerra não declarada de carrancas no lugar de sorrisos. Talvez isso já tenha sido em 1991, pois me lembro de uma tarde em que sarcasticamente chamei o Purga de Collor, insinuando que ele fosse ladrão; não tenho certeza se os malfeitos do então presidente já eram tão evidentes em 1990. Ele ficou quieto. Meus amigos riram. Acho que um cara um pouco mais velho, o Juba, deve ter tomado as dores. O Purga deve ter contado para ele depois. Eu sei que esse Juba, que até então era alguém que só me cumprimentava e com quem eu mal havia trocado algumas palavras, e somente sobre skate, passou a me encarar quando eu chegava na pista. Nunca mais falou comigo. Eu só ia para lá com meu irmão e meus amigos mais próximos, o Maurício, o Evandro, o Paulo e o Márcio. Não me sentia mais à vontade. Mas não queria parar de andar na pista.
O clima, no entanto, pesou muito. As conversas eram cada vez mais “ganguistas”, embora não houvesse nenhuma gangue de fato. Voltamos a fazer mais street e a ir menos à pista. Andávamos em outros bairros e nas ruas do nosso mesmo, como antes, onde estávamos seguros. Não me esqueço, no entanto, de uma tarde. Nunca me esquecerei. Todo mundo resolveu fazer alguma outra coisa, jogar War, videogame, algo assim. Eram férias, meio de semana. Eu e o Maurício decidimos passar a tarde andando de skate e fomos, skate de baixo do braço, andar no bairro ao lado, interessados em uma transição de uma nova garagem. Enquanto caminhávamos distraidamente pela rua Berilo, a rua mais abaixo do bairro, perto de uma casa que existe até hoje, com duas estátuas de cachorro no portão, demos de cara com o Purga e o Juba, que vinham também conversando animadamente e com os skates debaixo do braço, como nós. Eles, com certeza, também toparam inesperadamente conosco e ficaram tão atônitos e mudos como nós. Achei que teria que, pela primeira vez, usar o skate para acertar algo que não fosse uma manobra. Cruzamos olhares atentos. Antes éramos, senão grandes amigos, amigos, de certa forma. Nada foi dito. Nada aconteceu. Seguimos nossos caminhos, incólumes. Éramos, francamente, uns meros moleques, todos assustados e nada durões. Não olhamos para trás. Eles talvez sim; nunca saberei.
Hoje, se os encontrasse, perguntaria sobre o episódio, mas não tenho como saber. O Purga morreu de AIDS, segundo me disseram, em 1992 ou 1993. Um conhecido me disse que ia visitá-lo no hospital e me chamou para ir junto. Contei o que aconteceu, ele insistiu para eu ir, fazer as pazes, mas eu era muito imaturo, disse que não. Nem achei ele iria morrer, mas na semana seguinte esse conhecido, o Alisson, me disse que ele havia falecido. Em 1995, já na universidade, quando vim passar um feriado em casa, meu irmão questionou-me se eu me lembrava do Juba. “Sim, aquele babaca”, respondi, atrelado à imagem do passado, ao que meu irmão retorquiu: “Pô, eu o encontrei há um mês mais ou menos, ele perguntou como você estava. Ele morreu ontem na estrada, indo para uma festa em Andradas”. Fiquei sem palavras. O Maurício não tem como confirmar minha história. Ele morreu em 1997, fazendo rafting.
Em 1999, com meros 24 anos, tive minha primeira crise de meia-idade, mesmo sendo muito jovem. Numa tarde, sei lá o porquê disso, lembrei-me do episódio da rua Berilo e dei-me conta de que era única pessoa que o vivenciou e que ainda estava viva. Não há descrição para a sensação de melancolia e de estranhamento que me abateu.
Um quarto de século depois daquela tarde da qual só eu restei para contar a história, a vida segue. Há uma frase de Jay Adams, lenda do skate, também já falecido, muito famosa. “Você não para de andar de skate porque fica velho. Você fica velho porque para de andar de skate”. Como os três daquele entrevero que não aconteceu de fato e do qual sou único sobrevivente, jamais ficarei velho.

Monday, March 21, 2016

Violeta de Outono

Corremos de volta para casa. Depois da aula havia pressa de viver. Normalmente andávamos rápido – às vezes devagar, falando alto grandes bobagens que irritavam os adultos que passavam por perto, despertando-os da indiferença maquinal – para chegarmos logo e almoçarmos. Já estava ficando frio e a mata que margeava a avenida pela qual voltávamos bafejava seu hálito frio sobre nós.
Após o almoço quase ninguém havia tomado banho. Nem suamos muito.
Indecisão. O que fazer? Truco valendo grana. E se a polícia ou o comissariado de menores passasse na rua? – alguém aventa essa possibilidade, logo desprezada.
Ninguém sabia jogar pôquer. Então vai truco mesmo. O dinheiro apostado: notas amassadas de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e principalmente Machado de Assis, que não valia quase nada nas nossas carteiras e mentes. Essas tinham carimbo de cruzado novo. As outras eram valiosas demais para nós, pirralhos que éramos. Mal sentamos na calçada e somos interrompidos.
 O síndico do prédio, burocrata desalinhado, saindo do almoço, indo para o trabalho, passa e olha com reprovação.
- Jogo de azar dá cadeia. Ou vocês somem daqui da frente ou chamo a polícia.
Rimos da cara dele. Então o Fred conjetura que se a polícia vier, talvez todos perdêssemos o dinheiro. Então meu irmão e eu convidamos todos para jogarmos em casa. Uma dupla espera, as outras duas jogam, vamos começar o jogo de novo; esse não valeu.
Eu e Fred estamos contra o meu xará Daniel e o Paulo. Tá meio que pau a pau, mas abrimos vantagem. Inventamos de fazer sinais falando alto nomes de personagens da Marvel, daí sabíamos as cartas que o outro tinha. Meu xará e o Paulo não eram de ler quadrinhos. Mas eles deram aperto e numa seizada caímos que nem Tio Patinhas, devido à ganância injustiçada. Afinal, havíamos decidido, antes de começar a jogar, já fora do perigo da rua, que o jogo não vale dinheiro. Não tem que ter sentido não, não tem essa. Desistimos de perdermos grana e boa, vai que dá briga.
Ficou 14 a 13. Eles podiam namorar as cartas um do outro. Eu e meu parceiro estamos inconformados com a virada. Eles decidem ir. O Fred só me diz Thanos. Ou seja, não tem nada. Eu balbucio um Homem-Aranha. Ou seja, só tinha um mísero ás.
- Já saquei o código deles, eles só têm um ás – sacaneia Paulo, rindo com desdém. Ele era esperto.
Fomos para o abatedouro. Conseguimos segurar até a terceira rodada, a primeira deram para nós de graça, forçando-me a matar o rei deles com meu ás.
- Falei! – zomba Paulo.
Então acontece o inacreditável. Meu xará solta um truco com gosto, grita e sobe na cadeira, triunfante, assim que ganham a segunda.
- Perdeu! – Fred não perdoa.
Meu irmão e o Márcio caem na gargalhada; olhavam a partida com certo desinteresse, até então. Eu e Paulo ficamos atônitos. O meu xará não. Até repete.
- Truco!
- Você não pode trucar! Tá com quatorze!
- Ai, esqueci! - murchando.
O Paulo levanta da mesa, abre a porta e vai embora, sem dizer uma palavra. Está furioso. Mas todos sabem como ele é avesso a brigas. Todos estamos gargalhando a ponto de faltar ar, menos meu xará, que, derrotado, também abre a porta e vai embora chorando.
Ninguém quis jogar mais, embora tivesse outra dupla. Depois dessa, pra quê?
Fomos pra casa do Evandro. Já tinha menos sol. O chamamos para jogar bola. Depois de fazer algum cu doce, como de costume, ele topa. Falta um. Já íamos à casa do Rodrigo, mas ele aparece espontaneamente na rua, justo quando estamos de volta.
Dois na linha e um no gol. Já basta.
- Mas você tem que dar chutão?
Jogamos na minha rua mesmo, que é uma DESCIDA. A bola sempre vai longe, na rua de baixo. Alguém sempre se fode pra buscar. O par ou ímpar para ficar com o gol do lado de cima é vida ou morte.
Mas é só vida mesmo. O tempo passa rápido quando nos divertimos, todos sabem. Mas a tarde está passando devagar. Tarde eterna, fundindo-se a outras tardes nas quais as regras não escritas foram apreendidas por todos nós, ali. Por isso não gostávamos quando alguém de fora vinha jogar, a menos que fosse algum amigo muito amigo de alguém, que logo pegasse todas as regras etéreas de cabeça. Às vezes isso acontecia. Ninguém aparece.
Dou outro chutão. A bola cai mais longe desta vez, dentro do jardim da casa da esquina. Cai justo no canteiro das flores. A senhora que morava lá, mal encarada, com uma voz rascante que intimidava-nos, na verdade era boazinha e sempre deixava que nós pegássemos as bolas que caiam lá dentro. Desta vez, pulo a cerca e pego a bola sem dizer nada. Uma pulada de cerca inocente. Matei todas as flores dela. Restou uma violeta. Que nem sei se é uma violeta. Até hoje.

Monday, March 14, 2016

The Smiths, uma minicrônica à guisa de poesia

Escrevi uma poesia chamada The Smiths.
Provavelmente não a publicarei.
Talvez algum dia a leia em algum sarau. Se isto acontecer, preste atenção. Será a única chance.