Monday, March 21, 2016

Violeta de Outono

Corremos de volta para casa. Depois da aula havia pressa de viver. Normalmente andávamos rápido – às vezes devagar, falando alto grandes bobagens que irritavam os adultos que passavam por perto, despertando-os da indiferença maquinal – para chegarmos logo e almoçarmos. Já estava ficando frio e a mata que margeava a avenida pela qual voltávamos bafejava seu hálito frio sobre nós.
Após o almoço quase ninguém havia tomado banho. Nem suamos muito.
Indecisão. O que fazer? Truco valendo grana. E se a polícia ou o comissariado de menores passasse na rua? – alguém aventa essa possibilidade, logo desprezada.
Ninguém sabia jogar pôquer. Então vai truco mesmo. O dinheiro apostado: notas amassadas de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e principalmente Machado de Assis, que não valia quase nada nas nossas carteiras e mentes. Essas tinham carimbo de cruzado novo. As outras eram valiosas demais para nós, pirralhos que éramos. Mal sentamos na calçada e somos interrompidos.
 O síndico do prédio, burocrata desalinhado, saindo do almoço, indo para o trabalho, passa e olha com reprovação.
- Jogo de azar dá cadeia. Ou vocês somem daqui da frente ou chamo a polícia.
Rimos da cara dele. Então o Fred conjetura que se a polícia vier, talvez todos perdêssemos o dinheiro. Então meu irmão e eu convidamos todos para jogarmos em casa. Uma dupla espera, as outras duas jogam, vamos começar o jogo de novo; esse não valeu.
Eu e Fred estamos contra o meu xará Daniel e o Paulo. Tá meio que pau a pau, mas abrimos vantagem. Inventamos de fazer sinais falando alto nomes de personagens da Marvel, daí sabíamos as cartas que o outro tinha. Meu xará e o Paulo não eram de ler quadrinhos. Mas eles deram aperto e numa seizada caímos que nem Tio Patinhas, devido à ganância injustiçada. Afinal, havíamos decidido, antes de começar a jogar, já fora do perigo da rua, que o jogo não vale dinheiro. Não tem que ter sentido não, não tem essa. Desistimos de perdermos grana e boa, vai que dá briga.
Ficou 14 a 13. Eles podiam namorar as cartas um do outro. Eu e meu parceiro estamos inconformados com a virada. Eles decidem ir. O Fred só me diz Thanos. Ou seja, não tem nada. Eu balbucio um Homem-Aranha. Ou seja, só tinha um mísero ás.
- Já saquei o código deles, eles só têm um ás – sacaneia Paulo, rindo com desdém. Ele era esperto.
Fomos para o abatedouro. Conseguimos segurar até a terceira rodada, a primeira deram para nós de graça, forçando-me a matar o rei deles com meu ás.
- Falei! – zomba Paulo.
Então acontece o inacreditável. Meu xará solta um truco com gosto, grita e sobe na cadeira, triunfante, assim que ganham a segunda.
- Perdeu! – Fred não perdoa.
Meu irmão e o Márcio caem na gargalhada; olhavam a partida com certo desinteresse, até então. Eu e Paulo ficamos atônitos. O meu xará não. Até repete.
- Truco!
- Você não pode trucar! Tá com quatorze!
- Ai, esqueci! - murchando.
O Paulo levanta da mesa, abre a porta e vai embora, sem dizer uma palavra. Está furioso. Mas todos sabem como ele é avesso a brigas. Todos estamos gargalhando a ponto de faltar ar, menos meu xará, que, derrotado, também abre a porta e vai embora chorando.
Ninguém quis jogar mais, embora tivesse outra dupla. Depois dessa, pra quê?
Fomos pra casa do Evandro. Já tinha menos sol. O chamamos para jogar bola. Depois de fazer algum cu doce, como de costume, ele topa. Falta um. Já íamos à casa do Rodrigo, mas ele aparece espontaneamente na rua, justo quando estamos de volta.
Dois na linha e um no gol. Já basta.
- Mas você tem que dar chutão?
Jogamos na minha rua mesmo, que é uma DESCIDA. A bola sempre vai longe, na rua de baixo. Alguém sempre se fode pra buscar. O par ou ímpar para ficar com o gol do lado de cima é vida ou morte.
Mas é só vida mesmo. O tempo passa rápido quando nos divertimos, todos sabem. Mas a tarde está passando devagar. Tarde eterna, fundindo-se a outras tardes nas quais as regras não escritas foram apreendidas por todos nós, ali. Por isso não gostávamos quando alguém de fora vinha jogar, a menos que fosse algum amigo muito amigo de alguém, que logo pegasse todas as regras etéreas de cabeça. Às vezes isso acontecia. Ninguém aparece.
Dou outro chutão. A bola cai mais longe desta vez, dentro do jardim da casa da esquina. Cai justo no canteiro das flores. A senhora que morava lá, mal encarada, com uma voz rascante que intimidava-nos, na verdade era boazinha e sempre deixava que nós pegássemos as bolas que caiam lá dentro. Desta vez, pulo a cerca e pego a bola sem dizer nada. Uma pulada de cerca inocente. Matei todas as flores dela. Restou uma violeta. Que nem sei se é uma violeta. Até hoje.

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