Wednesday, September 29, 2021

O Facho

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 25 de setembro de 2021. Foi revisada atentamente pela Renata Chan. É uma sátira política inspirada no Machado de Assis, John Boyne (no final) e principalmente no grande Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. E, claro, nos transfóbicos políticos da terrinha, em especial naquele que se acha o lídimo representante da liberdade de expressão - desde que seja a dele, senão não procuraria interditar a discussão da identidade de gênero. 

1921. Na modorrenta Poções de Cura, cidade interiorana que passara da condição de vila no começo do século, a pequena população foi chacoalhada por um intrépido vereador, que trouxe, para o júbilo do seu proponente, um debate então inaudito à câmara e que logo ganharia repercussão nas ruas e até fora da província. Em moção de apoio a Arthur Bernardes, que então ocupava a chamada Presidência do Estado de Minas Gerais e que no ano seguinte ocuparia a presidência de fato do Brasil, o nobre edil Claudelino Marcel Queiroga Neves Pazuello de Carvalho saiu-se com o seguinte discurso, tido por muitos como um disparate, mas que encheu de orgulho o bravo orador, maravilhado com a própria oratória:

- Faz muito bem nosso grande líder desse Estado em vetar os projetos apresentados pela oposição. Vejam bem, tenho convívio e até amizade com pretos e mulatos, não se trata de conservadorismo, até porque a douta princesa Isabel extinguiu a escravidão, mas é um absurdo que a oposição queira dar mais guarida ainda a essa gente, que já tem direitos demais desde então. Daqui a pouco vão querer usar os mesmos banheiros que nós!

Surpreendido, o líder da oposição local pede a palavra, agastado desde o princípio do discurso delirante.

- Mas o que vossa senhoria quer dizer com isso? Mas já não usam? Racismo é um absurdo. Queiram nossos governantes que um dia isso seja crime! Jamais havia escutado tamanha aleivosia neste magnânimo espaço, até então prístino!  

Inabalável, Claudelino retorquiu de imediato.

- Pois crime aqui deveriam ser considerados o samba e a capoeira, tal como já fazem na capital da nação! Se vossas senhorias não sabem, no Rio a polícia coíbe tais manifestações ditas “culturais”, que impedem que alcancemos nosso papel de novos timoneiros da cultura greco-romana, que Deus há de nos legar!

Atônitos, os demais membros do legislativo assistem calados à tagarelice que compraz Claudelino. O líder da oposição é a exceção.

- Pois saiba que aqui não há segregação por lei, como há nos Estados Unidos, nobre colega!

Claudelino não se fez de rogado.

- Essas ideologias de igualdade importadas vão destruir a família brasileira! São piores do que o nazismo e o fascismo.

Neste momento, o narrador, que apenas era observador, irrompe pelas portas da câmara, tornando-se participante, e dispara:

- Não cabe falar de nazismo aqui, estamos em 1921! Fascismo, talvez, afinal, Mussolini já apronta das suas na Itália, mas nazismo não! Trata-se de um anacronismo que está prejudicando a narrativa!

Claudelino assente e agradece a intervenção.

- Para que vossas melhorias entendam meu brilhante raciocínio, usarei um exemplo melhor, pois sou um facho de luz que vos ilumina. Quando as tropas do safardana Solano López, o bolivariano ditador paraguaio, nos atacavam, era possível ver as baionetas e balas de canhão vindo na nossa direção. Já esse novo inimigo é invisível, insidioso. Adentra nossos lares, o corrompem com a ideia de igualdade; é uma desonra para nossa sociedade, tão elevada em seus princípios.

Neste momento o narrador torna-se onisciente, o que não deixa de ser uma blasfêmia, e ciente da perversidade dos pensamentos de personagem tão ignaro, não se contém e encerra a história com a seguinte fala:

- Em primeiro lugar, tu não passas de um facho de luz na contramão que obscurece nossa visão! Em segundo lugar, mesmo que Bolívar seja tido como um herói na América Latina, está muito cedo para usar o termo bolivariano, tratando-se de outro anacronismo que conspurca essa narrativa. Por fim, todo preconceito é odioso e a totalidade do seu discurso é repugnante, digno do biltre, do sacripanta, que tu és. Daqui um século tudo isso estará superado. Não é possível que os tribunais superiores tenham que considerar crime racismo e outros preconceitos contra seres humanos que não têm nosso perfil daqui a cem anos, pois até lá a humanidade terá evoluído muito, esses reacionarismos estarão extintos, e quem os exarar terá o ostracismo que merece. Não é possível que eu esteja sendo tão ingênuo.  

O texto e o contexto. Ampliando no celular, é possível ler tudo.


Tuesday, September 21, 2021

Nêmese

Este conto foi escrito em 20 de janeiro de 2014. Revisei-o na véspera, sem alterar nada da história, para publicação no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 18 de setembro de 2021. O conto mostra o destino de um dos personagens do meu primeiro livro/plaquete, No entanto, o reescreverei radicalmente para o meu segundo livro/plaquete. 

Ecsel mira o morro que se descortina a uns quinhentos metros, quando o mormaço dos exaustores da usina eólica dissipa o sinomog abrupta e brevemente. Ecsel mira celeremente. A ex-esposa do Gerente municipal estava passeando com o pug de estimação na rua central do condomínio, tal como lhe foi minuciosamente informado pelo mandante. O silenciador da metralhadora de precisão funciona a contento. A mulher tomba com o rosto irremediavelmente desfigurado. O pug está ileso, conforme foi expressamente encomendado. Com o focinho alongado cirurgicamente com o dinheiro do mandante, Gonzo bate num poste ao correr e olhar para trás ao mesmo tempo, vítima de sua falta de noção espacial devido à intervenção do veterinário na face. O mandante, observando do escritório pela cam do seu drone, tem um esgar de arrependimento, preocupado com Gonzo, que provavelmente fraturou o excerto ósseo.

Ecsel desmonta rapidamente a metranca, enfia-a na barriga falsa coberta pelo vestido, abre a porta da casa de serviço do telhado da clínica de fertilização transgênica, desce e sai incógnito, confundindo-se com os demais grávidos.

Nas ruas esvaziadas, no entanto, Ecsel aperta o passo. Os ataques dos neoavivamentistas contra os transgêneros ou os hippocampistas tornaram-se frequentes até mesmo em cidades com meros duzentos mil habitantes. Pelejando há dois anos para sair de uma cidade pequena, Ecsel adotou a estratégia de receber apenas em avatar para evitar ser rastreado. Em dois meses fará 14 anos e atingirá a maioridade penal, mas mesmo assim quer evitar qualquer estigma. É um perfeccionista e não pretende cumprir qualquer medida socioeducativa. Já é a 17ª encomenda e, pelas suas contas, conseguirá converter os avatares em uma soma razoável de créditos reais, mesmo perdendo no paralelo; o suficiente para financiar um quarto com banheiro em Manaus e toda a faculdade de engenharia de impressão. Sem que os pais desconfiem de que é o matador de aluguel que mais assombra a concessionária de segurança pública, pois ambos creem que Ecsel ganha tudo monitorando fluxos de opinião para as campanhas eleitorais do avô, o Supervisor distrital. Basta ser discreto. Enquanto minhocava essas questões na cabeça, para seu desgosto, a circunstância estragou a discrição. Dois quarteirões adiante topa com Hugo, um colega de sala do Ciclo Básico. Pensa que talvez terá de eliminar Hugo e o cumprimenta com um sorriso contrito.

- Oxe, seu nome é Êcsel, né?

- Não, se pronuncia Écsel.

- Que diferente, de onde que veio esse nome?

- É de um cantor de uma banda da qual minha mãe gostava. – Ecsel estava pensando em atirar à queima-roupa mesmo, já tendo acionado o disruptor remoto das câmeras de segurança daquelas ruas antes de sair da clínica.

- Nunca ouvi falar.

- É coisa de velho.

O taser de Hugo estava regulado para infarto fulminante e fez dessas as últimas palavras de Ecsel. Ele achou que Ecsel havia comprado um bebê semipronto. Não o questionou, nem se questionou, só viu mais um negacionista dos cisgêneros – é assim que os neoavivamentistas os denominam. Tornou-se inconscientemente o assassino mais prolífico da cidade. Sem pensar em reconhecimento argentário, almejando apenas a benção de seu pastor.

Daniel Souza Luz é jornalista, professor, revisor e escritor

Meu primeiro livro/plaquete, lançado em 2019. A capa foi ilustrada pela Juliana Melo.  


Wednesday, September 15, 2021

O dia em que eu tretaria com o Brizola

 Esta crônica foi publicada na página 9 da edição 7549 do Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) em 11 de setembro de 2021. Eu a escrevi à queima roupa pouco antes do horário do fechamento do jornal e não passou por revisão, a não ser por mim mesmo agora, para publicação no blog. Fiz pequeníssimas modificações; a principal foi desmembrar a última frase. 

Já escrevi uma crônica sobre as eleições de 1989: para mim foram divertidíssimas. Eu sei que teve baixaria até que parecida com as de hoje, como a vergonhosa edição que a Globo fez do debate entre Lula e Collor, abordada no documentário Além do Cidadão Kane. Outra história famosa é a do sequestro do empresário Abílio Diniz por um grupo de extrema-esquerda do Chile, o MIR: quando a polícia encontrou o cativeiro e prendeu os sequestradores, os apresentou com camisetas do PT, as quais teriam sido plantadas. Enfim, era jogo sujo sem meios virtuais. Mas tudo isso estava fora do meu radar, eu era novo demais. Mesmo assim, acompanhei as eleições com relativa atenção. Apesar de ainda existir a União Soviética, esses papinhos furados de fantasma do comunismo me pareciam bem insignificantes. O ambiente era muito mais de alegria, devido à redemocratização; não era algo tão conflagrado quanto agora. Eram muitos candidatos à presidência e os debates eram muito engraçados. Eu levei na galhofa, apesar de saber da seriedade e da importância. No meu anarquismo pueril, eu queria mais era zoar todos os candidatos. O que efetivamente fiz, mas isso já contei na crônica que mencionei na primeira frase, chamada República Selvagem, publicada neste Jornal da Cidade anos atrás. Nela, conto que Brizola almoçaria na minha casa durante a campanha. Meu pai era filiado ao PDT e brizolista roxo. No entanto, minha mãe vetou a ideia, pois o apartamento em que morávamos era muito acanhado. Era num predinho do BNH, o Minha Casa, Minha Vida dos tempos da ditadura. Ela achou que não ia dar certo um monte de correligionários dele e mais equipes de TV lá. E ela estava certa, não caberia. Como já disse, achei uma pena, pois seria divertido vê-lo xingar o Collor dentro da minha casa. Mas, pensando bem, acho que acabaríamos discutindo. Sei que o Brizola foi um sujeito muito corajoso, teve vários méritos, impediu um golpe de estado em 1961. Posso até admirar isso, mas eu já o achava um populista. O jeito dele falar me irritava e os seus imitadores daqui mais ainda – meu pai não imitava o jeito dele falar, ao menos ele tinha personalidade própria. Imagina se ele entra no meu quarto e vê pôster de skate e videogame. É certeza que iríamos bater boca. Consigo visualizar ele criticando tudo, dizendo que são coisas da “juventude americana” ou algo assim. E eu retorquiria dizendo que ele era um velho gagá. E se ele visse alguma Playboy lá? Acho que teria uma síncope. Consta que ele quis ou conseguiu impedir uma parente (Neusinha Brizola, salvo engano) de posar para a revista. Acho não tínhamos mais armas de brinquedo àquela altura, mas não tenho certeza. Era capaz dele pegar e jogar no lixo. Hoje eu acho que ele está certíssimo, mas é óbvio que eu não ia engolir isso. Não, estou exagerando; ele ia criticar tudo, mas não ia dar uma dessas. Mas deveria, no final das contas seria uma ótima memória. Pena que não aconteceu essa nossa briga. Grande Brizola.

Daniel Souza Luz é jornalista, revisor, professor e escritor


Leonel Brizola pula fogueira de armas de brinquedo, que foram trocadas por livros, em 1982, no Rio de Janeiro. A foto é de Aguinaldo Ramos e não está em domínio público, mas pela leitura desse texto no blog dele suponho que ele não se importa pelo uso não comercial dela. Recomendo muito a leitura deste texto dele contando os bastidores da ocasião em que ele tirou a famosa foto. 


Wednesday, September 01, 2021

Dominatrix no pogo

Esta crônica foi publicada em 28 de agosto de 2021 na página nove do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). É uma versão ampliada e reescrita da minha Micrônica 1998, de 27 de outubro de 2017, sobre meus bons tempos dos anos noventa, a qual eu mesmo revisei mais uma vez agora, pois encontrei vários errinhos após a publicação no jornal. 

Adorava os shows no Pau-Brasil, bar de Bauru que era na verdade um sobradinho adaptado, na última década do século passado. Embaixo ficava o balcão e subindo as escadas ficava um pequeno “palco” num cômodo. Na verdade, não havia palco algum, era só o espaço ao lado da escada que fazia as vezes de um palquinho. Tinha gente que se equilibrava entre a parede e aquela espécie de mezzanino, então pra começar às vezes passava por baixo daquele bando de homens e mulheres-aranhas ao chegar para os shows. Bauru é quente como um fogão em funcionamento e aquele salãozinho era uma panela de pressão. Durante o mosh, com umas oitenta ou mais pessoas onde deveriam caber umas cinquenta, as paredes literalmente suavam. Bem, talvez eu esteja exagerando quanto ao número de presentes, afinal eram shows underground; vai ver eram apenas quarenta pessoas onde cabiam apenas vinte. Mas não estou exagerando quanto ao suor. Formavam-se gotículas no teto e quando elas caiam o chão enlameava-se com os tênis e coturnos sujos. Ficava super escorregadio para o pogo. Com certeza algum espírito de porco também derrubava cerveja, o que não ajudava em nada. De qualquer forma, punk rock sempre foi uma aventura solidária. Se você caía, alguém logo te ajudava a levantar. Mas nada de edulcorar o passado. A briga mais sanguinária que já testemunhei em show foi lá, em 1997, quando o Autoboneco, heróis locais e até hoje na ativa, estava tocando. Mas um ano depois era meio diferente e esta história de 97 já contei numa outra crônica chamada Como Sobreviver a uma Briga num Show de Punk Rock. Em 1998 vi o cara, na verdade um gorila, que provocou a treta de um ano antes, o Boy, tentar encoxar uma amiga, a Marília, durante o mosh. Ela, muito menor, deu um soco na fuça do babaca que ele até perdeu o rumo. Era o tempo das riot grrrls. No meio do hardcore se discutia muito sobre as letras do Dominatrix, banda que fazia do feminismo sua bandeira. Felizmente, isso não é mais restrito ao meio underground ou acadêmico. Pena que ainda haja muitos trogloditas por aí, talvez até mais. De qualquer forma, conversando recentemente com a Marília, rememorando esses episódios, ela me disse que se compadece do Boy, que provavelmente ele era um rejeitado até mesmo num meio inclusivo. De fato, ele não reagiu, assim como resolveu apanhar quieto um ano antes, depois de começar a briga. Alguém imagina um “cidadão de bem” tendo essa dignidade, ainda que meio torta, em 2021? Eu não.

Daniel Souza Luz é jornalista, revisor, professor e escritor


Foto que tirei do Dominatrix na Virada Cultural de São Paulo/SP, 18/05/2014. Infelizmente não fotografei o show delas que vi nos anos noventa.