Sunday, March 29, 2009

Devaneio

Queria dormir e acordar no dia em que você nasceu. Ciente do retorno, lobotomizado quanto ao sofrimento inútil que passei, que passamos, e, mais importante, que te fiz passar. Com dez anos, não podia sair de casa. Com malícia, mais tarde, sairia correndo da escola, no meio do recreio, fugiria e iria ao berçário te ver. Você é careca, vermelha, feia, todo neném é feio, chorona, mas eu já te amo, te amo tanto que estou aqui, agora, com a alegria de viver intacta, olhando pelo vidro riscado, e me perguntam se vim ver meu irmãozinho e digo que sim, e meu pai está lá embaixo e vou lá chamar ele. Quando disse malícia, me entenda bem, não é a malícia que meu amigo Evandro, que nem conheci ainda, falava que queria ter se pudesse voltar no tempo e pudesse pensar como um adolescente sendo criança, não, eu não ia ficar folgando nas menininhas, fazendo elas de bobas. Não, só vou ser mais esperto, vou fingir que sou criança e vou a todos os lugares que queria ir e não podia, porque tinha medo, punham medo em mim, não sei, nem me ensinaram a andar de ônibus, bicicleta ou skate, aprendi a fazer isto quando era muito mais velho, nunca saía de perto de casa, a menos se fosse junto aos meus pais, mas agora não, não vou ter medo de andar na rua, de jogar no fliperama barra-pesada que eu sempre quis jogar. O que quero mesmo dizer é que vou ser puro, vou esperar você crescer, te vendo de longe, e um dia vou pegar na sua mão e te pedir em namoro, e a gente vai ficar junto desde bem novinhos, e tudo será melhor. Desço a rua do hospital direto para o fliperama, mas um desgraçado pega o meu braço e diz “acorda!”, ele parece ser um comissário de menores, um daquela época, só podia ser. Você não está do meu lado, e as fotos daquele tempo bom, que até tinham o cheiro gostoso das manhãs de 1986, aquele cheiro das bolachas de chocolate redondinhas que não existem mais, estão rasgadas ao lado da cama, picadinhos esmaecidos e malcheirosos.

27/05/2005

Sunday, March 15, 2009

O primeiro amor

Sábado à noite. Na cadeia, em um corró reservado para a garotada, para que eles não fossem currados pelos demais presos, ele pensa nela. Ela caiu da ponte que não ligava as duas margens, deixada pela metade, sem dizer uma palavra, ou demonstrar qualquer reação, chapada pra caralho. Seu nome era Paula, ao menos foi o que ela disse dez minutos antes de morrer depois de lhe fazer uma chupeta, a primeira da vida dele, por uma pedra. WJQ, as iniciais dele, estilizadas como sempre, estavam escritas à caneta no pescoço dela. Os policiais já sabiam, já as tinham visto pichadas e eles o odiavam. Ele começou a chorar, quinze anos, abandonado pela família, imaginando o encontro no motel, agora mesmo. Ela poderia ter sido sua namorada.

15/03/2009 – escrito originalmente em inglês e ampliado.

Sunday, March 08, 2009

Pseudônimo à revelia

Não consigo lembrar onde foi que li. Era uma matéria sobre escritores brasileiros que foram funcionários públicos. Não me lembro bem do conteúdo, nem quem eram eles, à exceção de Carlos Drummond de Andrade. Só não me esqueci que a ociosidade do serviço público permitiu que eles escrevessem e desenvolvessem seu estilo durante o expediente.

Eis que um dia me vi enfiado neste desgraça. “Presta concurso, presta concurso!”, toda sua família contra você. Esgoto cheio de ratazanas, ninho de cobras, escolha a imagem que mais lhe aprazer. Não tem nada pior do que ser enfiado neste covil de medíocres. Casamento marcado, estabilidade no emprego, prisão perpétua.

Juro que queria trabalhar muito para justificar o suado imposto do povo. De cara vi que só tinha vagabundo. Serviço jogado nas minhas costas. Tentei me livrar, só que é aquilo: os vagabundos velhos acham que o serviço deles é sua obrigação. Um dia cansei de bancar o garoto trabalhador. Virei vagabundo novo. Inventei que meu serviço mesmo era outro, devolvi a papelada a quem de direito, e fui à caça do idílio literário.

Tomei no cu. Em uma repartição pública, o trabalho mais importante é o de espionagem. O que está fazendo, a que horas, com quem. Ninguém é carente emocionalmente, pois todos se preocupam uns com os outros. Três dias para escrever e depurar uma crônica caprichada, e vejo-a publicada em um pasquim local. Porém, assinada por uma “jornalista” que eu não conheço. Amiga do chefe do setor. Que não vai com minha cara. E, entre um café e outro, mexe no meu computador quando não estou.

Três dias. Serviram para que o embrulho do peixe não fosse branquinho. Para tanto, podia ser apenas um. Mas com tanta gente falando na sua cabeça o tempo todo, é impossível concentrar-se.

Serviço de rua. A salvação.


Esse miniconto é de 2003 ou 2004. Achei no meu computador velho. Não consigo entender porque não o curti na época.

Sunday, March 01, 2009

Calor Humano

- Pai, o senhor pode voar igual ao Super Homem?
- Posso.
- Então voa.
- Não quero.
- Por quê?
- As pessoas podiam ficar com inveja, e não quero que elas saiam voando por aí. Pior do que um invejoso, só um invejoso voador.
Nunca menti para meu filho. Mas toda vez que sou sincero com minha esposa, chamas envolvem o meu estômago.
- Amanhã ele vai à missa comigo.
- Você vai transformá-lo em um robô.
- Não somos idiotas, e nem seu filho – nosso filho! – será...
- Ele deveria escolher se quer ir, ou não, quando for adulto.
- Mas...
- Não sei porque casamos. Um par de coisas fundamentais não se encaixa entre nós.
Minha língua funcionou como um lancha-chamas. E ela se queimou mesmo. Não devia deixar algo tão abrasivo escapar. Estávamos todos de mau humor, e mais cedo ou mais tarde ela inventaria uma desculpa qualquer para sair pelo mundo. Nós berramos desvairadamente naquela noite. Tanto o vizinho de cima quanto o debaixo reclamaram na portaria.
- Você não pode gritar com seu filho! Nem se ele gritar. Nunca!
Me levou tudo e deixou apenas uma foto. Um carola casou com ela. A guarda do garoto foi dada à mãe. Os três acabaram dentro de um ônibus, em um precipício, quando iam para Aparecida.
Tentei fazer uma escultura de nós três, a partir da foto. Pelo menos teria mais uma lembrança material. Pareceríamos tão feios se a concluísse que nem chorei ao rebentá-la contra a parede. Fiquei é sem ar. Novamente me deparei com a imagem de Júnior decapitado.
A vida ficou fora de controle.
Ponho meio corpo fora da janela, puxando o mormaço para dentro dos pulmões. Como se estivessem sendo compactados pela atmosfera, enquanto o tórax entra em combustão.
Há anjos desenhados no playground. O céu é lá. Encontrarei minha mulher, meu filho. Hora de voar. Não me preocuparei mais com os invejosos.

Esse miniconto foi publicado no número 11 do jornal PapoArte, há três anos, e já o havia reproduzido no meu blog Humano Obsoleto pouco dias depois da publicação. Foi apenas um exercício para uma oficina de literatura ministrado para a escritora Ana Miranda, mas creio que é um dos melhores textos que já consegui escrever e um dos meus favoritos. Lembro-me de duas reações ao conto que me agradaram: uma amiga leu o jornal, me encontrou na rua e disse-me que adorou; um amigo me disse que amigos dele que eram muito carolas não gostaram.