Monday, October 25, 2021

Nêmesis, de Philip Roth (resenha)

Esta resenha foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 23 de outubro de 2021. 

O lançamento deste livro pela TAG, em parceria com a Companhia das Letras, foi muito oportuno: em março, salvo engano, quando a pandemia estava acelerando no Brasil a níveis absurdos. Com UTIs com 100% de ocupação e pessoas morrendo na fila de espera, não tive coragem de seguir na leitura. Quem foi mais racional e prosseguiu, com certeza pôde refletir profundamente e compreender melhor o ponto em que chegaríamos agora neste segundo semestre. Roth é dos raros autores a incorporar a Filosofia à Literatura de forma orgânica, sem pedantismo, numa narrativa fluída na qual questões contemporâneas são esmiuçadas sob o ponto de vista de discussões de pensadores do século XX. Este livro, no entanto, é de 2009 e é seu canto do cisne. É ambientado, mais uma vez, na sua cidade natal, Newark. No entanto, a trama passa-se em 1944 e a doença sem cura, também provocada por um vírus, é a poliomielite. Há muitos pontos de contato com o que o mundo vem passando desde o fim de 2019. Mas também há diferenças marcantes: a doença não atacava tanto pessoas na terceira idade ou mesmo adultas, mas sim crianças. E, principalmente, não havia uma política genocida de um governo de extrema-direita para que ela fosse irresponsavelmente espalhada para que se alcançasse imunidade de rebanho. É justamente esse o ponto de tensão que permeia a história: as pessoas não queriam que a doença se espalhasse. No entanto, no fraturado caldeirão étnico dos EUA, um grupo de arruaceiros italianos decide ir ao bairro judeu para dar cusparadas em direção a crianças judias, dizendo abertamente que queriam contaminar judeus. O romance não se foca no antissemitismo, no entanto. Roth conta a tragédia de um professor de Educação Física, Eugene “Bucky” Cantor, jovem judeu muito forte e míope, frustrado por não poder lutar na Segunda Guerra Mundial, através do seu ponto de vista filtrado por um narrador que é na verdade um personagem secundário, numa manobra narrativa muito interessante – por vezes, esquece-se disso e pensa-se estar diante de um narrador onisciente, mas isso é esclarecido no capítulo final, no qual se compreende que as poucas lacunas da história são justo as que Cantor estava relutante em contar. Não é à toa: admirado na comunidade, especialmente após enfrentar absolutamente sozinho os filhos de imigrantes italianos que ameaçavam seus amados alunos, ele passa também a ser malvisto conforme as crianças que ele treina vão adoecendo e morrendo. Desacorçoado e impotente, ele entra num processo de fuga perene e degradação impensável para alguém tão autoconfiante. O reencontro com o narrador, Arnie Meniskoff, também vítima da pólio, é o que proporciona reflexões mais aprofundadas, pois Cantor não consegue elaborá-las. São especialmente fortes as sobre culpa e sobre sequelas que talvez podem até se agravar anos depois, arruinando planejamentos para a vida – aí sim temos outro ponto de contato com a atualidade. O ateísmo de Roth não é tão pronunciado nesta obra, mas ele não deixa de apontar como processos aleatórios e fora de controle são determinantes para os indivíduos tentados a racionalizá-los ou espiritualizá-los, sempre em vão. Por fim, sempre me perguntei por que Roth se aposentou dos romances, embora ainda tenha vivido quase mais uma década, depois de uma carreira tão profícua. Sempre pode haver mais algo a ser escrito. Mas talvez ele tenha contemplado as quatro últimas páginas deste livro, assim que as escreveu, e pensado: é isso. É compreensível, são um primor.   

Daniel Souza Luz é professor, revisor, jornalista e escritor



Monday, October 18, 2021

O Nobel

Este conto foi publicado no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 16/10/2021. Era inédito, foi escrito no dia anterior. 

Um espasmo de ódio sacode Spaticano, sempre cioso de sua organização. Os livros expostos na vitrine não estão de acordo com a lista dos mais vendidos desta semana e as exigências das editoras. É um trabalho artístico essa arrumação. Ele jamais deveria ter delegado a um empregado. Até porque alguns pedidos jamais devem ser atendidos. Os livros comemorando o centenário de Paulo Freire nunca deveriam estar em destaque. Algo assim ele só aceitaria, muito a contragosto, se ele entrasse na lista dos dez mais vendidos. É verdade que a revista na qual sempre se fiou não é mais sua favorita. Spaticano se revolta ao ler alguns dos artigos hoje. O novato, ainda no contrato de experiência, não entende. “É que eles cederam na guerra cultural. Você não compreenderia, é novo demais. Precisa fazer os cursos que fiz para entender”, explica Spaticano, suspirando. “O senhor leu muitos livros nesses cursos?”, pergunta, ingenuamente, o novato. “Vi os vídeos. Não tenho tempo de ler, tenho tarefas demais”, justifica Spaticano. Agora ele está à procura do empregado mais antigo. Está sedento por justiça. Dá aquele esporro e arremata: “Na minha livraria não!”. Depois procura nos catálogos das editoras se o novo laureado pelo Nobel de Literatura já foi editado no Brasil. Não foi. “Quem deveria ganhar um Nobel de Literatura era eu”, resmunga. O novato, querendo entender a dinâmica da livraria, pergunta o que ele disse, pois não escutou bem. Irritadiço, Spaticano repete a frase com certa brutalidade: “Quem deveria ganhar um Nobel de Literatura era eu”. Diante da cara de incredulidade do pobre-diabo, ele complementa: “Quem faz de verdade os livros somos nós que os vendemos. E eu sou o melhor vendedor. Não é justo isso. Vou escrever um livro sobre vendas de livros, especificamente”. Agora quem está incrédulo e largou seus afazeres é o empregado das antigas, leitor voraz que bem sabe como o patrão é iletrado. Notando que já conquistou sua audiência, afinal duas pessoas prestando atenção é o começo da trajetória do vencedor, Spaticano discursa triunfante. “Livro é igual salsicha, eu fui gerente de vendas uma fábrica de salsichas, é tudo a mesma coisa. É só uma mistura de papel e umas merdas. Vou escrever o meu! É só saber chegar nas pessoas certas da sociedade para ser um sucesso”. Um cliente entra na loja, alheio ao espetáculo. O novato vai atendê-lo. O velho empregado não resiste: “Você esqueceu do sangue”. Spaticano está tão fascinado por seu próprio rompante que sequer escutou.       

Daniel Souza Luz é professor, revisor, jornalista e escritor




Wednesday, October 13, 2021

Gerô e Cris

Este conto foi publicado no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 09/10/2021. Eu o escrevi no dia sete de outubro e por coincidência no dia seguinte viralizou nas redes sociais um vídeo de uma mesa de debate sobre racismo na qual o Demétrio Magnoli censurou a manifestação de negros e permitiu que apenas brancos falassem. O conto não foi escrito tendo em mente o Magnoli, mas sim em sujeitos que são muito parecidas com ele. 

Coça a papada com a mão macilenta em frente ao espelho. Encara-se, incomodado. O fixo toca. Ninguém liga mais nesse número. Estranha, mas atende.

- Fala, Gerô!

- Cris! Há quanto tempo! Que surpresa boa. O que você conta de bom?

- Ah, nada de especial. Pandemia, tudo parado. Estou escrevendo bastante, ao menos. E você?

- Quem me dera... Jornalismo desconcentra. Escrevo bastante também, mas só para imprensa. Mas tudo bem, ao menos nunca saio de casa, estou fazendo um isolamento rigoroso.

- Eu também! Estou acompanhando tudo, rapaz. Assinei a revista nova, tenho lido sua coluna online. Impecável, como sempre.

- Muito obrigado, meu caro!

- Precisa voltar para a Literatura, Gerô! São poucos que ainda a honram. Se existisse essa besteira de lugar de fala, esse é o seu.

- Ah, estou tão desanimado... Foi um fiasco esse último. Mais um. Eu sei, você sabe.

-  Não é assim também...

- Foi. Nem o esquema da revista deu certo. E deu tão certo pro Marião... Ainda bem que saí de lá.

- É, nem sua crítica ao meu livro fez ele bombar. Mas não é culpa sua. A revista que já estava em decadência, não é como antes.

- Sim, mas ao menos você vende sempre. O incrível é que a sua crítica ao meu, que eu tinha tanta certeza que faria um barulho, não atraiu ninguém. Nada. Queria ganhar meus trocados.

- O meio cultural daqui que não está preparado pra sua sofisticação, Gerô. Está vendo que horror essa tentativa de transformar a Carolina Maria de Jesus em escritora? Em escritora de respeito! Esse país não tem jeito. É uma terra de parvos.

- E esse preto que ganhou o Nobel agora? Nunca ouvi falar. Não suporto mais o politicamente correto, Cris. Um dia ainda vão nos proibir de ler os clássicos apenas porque são europeus.

- Nem me fale. Mas, deixa eu te falar, faz tempo que a gente não conversa e fiquei preocupado com algo... Aquele povo festeiro percebeu nosso esquema de nos elogiar na revista? Deu certo esperar umas semanas para que não notassem? Você sabe, não tenho redes sociais.

- Passou batido, fica tranquilo! Mas não sei se foi porque armamos direito. É que eles inflavam a circulação, distribuem vários exemplares gratuitamente pelo país todo. Ninguém mais lê a revista; você está certo, entrou em declínio.

- É, por isso não vendemos mais. Mas e agora, daria certo fazer outro esquema pra promover meu livro que estou terminando aqui?

- Não, não. Ficam em cima. Não me deixariam escrever a respeito.

- Ah, pena.

-Bem, sendo bem Poliana, ninguém parece ter percebido que foi tudo combinado. Às vezes foi melhor ter passado batido. Se fosse naquela época que tentei esmagar a petistada nas letras... Teriam caído matando.

- Era o meu temor. Imagina se alguém percebesse? Iam fazer aqueles textos nos estereotipando como elitistas, racistas, pedantes, esnobes e sabe-se lá mais que outro delírio.

- Pois é, imagina só! Que falta de imaginação. Esse povo não sabe de nada. São sempre esses personagens caricatos, planos.

- Não sabem como valorizamos o diálogo democrático.

- E sofisticado.

- Pois é. Bem, tenho que desligar, o alarme do SUV disparou aqui. Abraço!

- Vai lá! Vou terminar de bebericar meu Chateau Petrus. Abraço!

 

Daniel Souza Luz é professor, revisor, jornalista e escritor

Thursday, October 07, 2021

Raimundos Versus Pin Ups (eu era muito feliz há 25 anos)

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade em 04/09/2021. Originalmente chama-se Raimundos Versus Pins Ups (eu era muito feliz há 21 anos), pois a escrevi e publiquei como a Micrônica 1996 em 25/10/2017. Premido pela falta de tempo e outras tarefas, esqueci de alterar o título quando a mandei para o jornal, de última hora. O texto que foi publicado nele é mera transcrição daquela micrônica escrita à mão. Agora corrigi o título, observando a passagem do tempo, para essa publicação e resolvi fazer várias alterações, acrescentando muita mais informação ao texto e eliminando muita repetição de termos e palavras. Esta versão publicada aqui, portanto, é a definitiva.  

Sempre gostei de contar esta história, mas nunca a escrevi. As bandas que mais vi shows ao longo dos anos noventa foram os Raimundos, os Pin Ups e o Autoboneco. Em Bauru, onde fiz a universidade, o Autoboneco, cujo nome na verdade é um símbolo como o do Prince e na época era conhecido como Bonequinho, era a banda que mais gostava na cena underground e naturalmente foi que mais vi ao vivo. Raimundos era zoeira adolescente com a qual me identifiquei assim que ouvi Puteiro em João Pessoa, antes do primeiro disco sair, em 1994. Vi um trecho num show exibido na MTV; um amigo de Ribeirão Preto, o Vítor, gravou pra mim. Em 1995 consegui ver o primeiro de vários shows deles que eu viria a assistir. Pin Ups conheci antes ainda, quando o Luiz Gustavo, o vocalista, cujas HQs eu gostava demais, ainda estava à frente do grupo. No entanto, só vi shows depois que a baixista Alê Briganti se tornou a vocalista. Por mim tudo ótimo com ela no vocal de 1996 em diante, minha música favorita deles era Witkin, a única que ela cantava antes (se não se levar em conta o projeto acústico do grupo, o Gash). Com a Alê à frente, o Pin Ups tornou-se a voz do feminismo no rock brasileiro e o Raimundos era a face das letras machistas, mas eu levava no bom humor. Entrevistei tanto ela quanto o Rodolfo, à época ainda à frente dos Raimundos, para o meu TCC, no final daquela década. Ambos foram legais ao me receber, em especial ela, ao encontrá-la por acaso em Santos – eu ainda marcaria a entrevista em São Paulo, mas fizemos a entrevista no improviso, o que não foi nenhum problema, pois eu já tinha a pauta na cabeça. Apesar de não ter gostado de algumas perguntas, ele me tratou educadamente e não precisei pedir para assessoria de imprensa antes e nem nada assim, simplesmente me apresentei, disse que era para um trabalho da faculdade, que iria ao ar na rádio universitária, e ele me concedeu a entrevista imediatamente, sem qualquer formalidade. E os conflitos de hoje espelham o que ambos diziam.

 

Daniel Souza Luz é jornalista, escritor, revisor e professor


Meu exemplar do vinil do Scrabby?, o segundo LP do Pin Ups (sem contar o projeto acústico Gash, de 1992), lançado em 1993 pela gravadora independente Devil Discos. Tirei esta foto em 21/10/2012 e a publiquei originalmente no meu perfil do Twitter, naquela data. 


Wednesday, October 06, 2021

Ramones

Esta crônica foi publicada no Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em dois de outubro de 2021. É uma versão reescrita e um pouco ampliada da minha Micrônica 1976, de cinco de outubro de 2017. Tal como o som dos Ramones, é rápida e simples. 

Estava andando de skate com meu irmão Eurico e meus amigos no centro. Estávamos em 1988, havia skatista para tudo que é canto da cidade. Na esquina das Rio Grande do Sul e Prefeito Chagas encontramos um amigo, o Helinho. Trocando ideia, ele me fala sobre os Ramones. Digo que nunca ouvi e ele fica espantado: “Como assim, você anda de skate e não conhece Ramones?”. No dia seguinte o Helinho, que curiosamente hoje pouco vejo e é um amigo distante, apareceu na rua de casa e trouxe uma fitinha do Ramones para me emprestar. Eu nem pedi, pelo que me lembro foi generosidade dele. Hoje, relembrando a sequência das músicas, sei que era uma gravação da coletânea Ramonesmania, então recém-lançada. Recordo-me bem do som que meu pai havia acabado de mandar fazer: era um toca-fitas de carro acoplado a caixas de som pequenas, instalado no quarto que eu dividia com meu irmão. Pus a fitinha pra tocar e aconteceu o mesmo momento mágico que ocorreu com milhões desde o primeiro contato com Ramones: daí em diante minha vida mudou pra sempre.

Daniel Souza Luz é professor, revisor, jornalista e escritor



Estátua em homenagem a Johnny Ramone. Foto de Scott Beale/Laughing Squid (laughingsquid.com), compartilhada aqui via licença Creative Commons