Tuesday, October 30, 2018

Os Meninos do Brasil

O seu cachorrinho acompanha-a, quietinho. Ele empurra uma bicicleta. Nunca ouviu I Wanna Be Your Dog.
Vegano, pose de bonzinho. O passado de playba maquiado com visual riponga, coque samurai e muita aula de yoga. Espancava um moleque na escola que gostava de Shelter. Fazia bullying com quem ele teoricamente, imaginaria quem o visse vestido daquela forma, pensaria de forma semelhante anos depois. O garoto humilhado, hoje hare krishna, sequer reconheceu o seu antigo antagonista, que caminhava de cabeça baixa atrás da companheira. Sorte dele. O fascista zen, como diria Jello Biafra, sorriu cinicamente, encarando o chão com saudades de pisar em alguém. Muitas saudades.
Chegaram em casa e puseram um vinil da Janis Joplin. Fumaram um banza, brisaram por uma meia hora e treparam. Logo depois ele vestiu uma camisa da seleção e correu para a manifestação com um cartaz, belamente desenhado, pedindo mais repressão. Sua companheira ficou estupefata. Lembrou-se do velho ditado que tanto ouvia do pai, um velho punk – never trust a hippie.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Os Meninos do Brasil foi publicado no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) no dia 27 de outubro de 2018. Como foi no final de semana do segundo turno das eleições presidenciais, veio a calhar aproveitar meu conto 108, publicado aqui em 27 de abril de 2015, e adaptá-lo para a ocasião, afinal ele já era originalmente um conto politizado. Mudei o título, que antes homenageava uma banda de hardcore straight edge, inspirado pela audição da música The Boys From Brazil, do grupo pós punk The Pop Group. O nome da música já é referência a outra obra, um filme inspirado num livro de mesmo nome, e quem o(s) conhece perceberá o porquê da citação. 


Wednesday, October 24, 2018

Metal Perfumado

Jairo e Juliano chegam à casa de shows, na verdade mais conhecida por abrigar arrasta-pés na cidade interiorana, cujo calor derrete quem está à beira da piscina e ainda mais os dois e todos os que estão na porta do lugar, um deserto de asfalto e concreto. Ambos vestem preto e logo identificam seus pares.
- Aqui que é o Tijuana Bar? Não tem placa...
- Opa! Vamô quebra tudo com uns déti metal com nóis.
Apresentações feitas, simpatia imediata.
- Então, nós somos da banda de fora.
- Qual banda? Eu sou um dos organizadores. Não lembro de banda de fora...
- Do Virgin's Immolation.
- Ah é! Mal aí, já virei um tubão. Cadê os equipos d’ôces?
- Vamô lá pegar.
Pardal não perde as piadas no caminho. Sugere que Jairo e Juliano seria um bom nome para uma dupla caipira e que não era para eles tocarem viola no show não. Os dois riem, mas ficam putos por dentro.
- Ô Fabinho, abre o portão aí pros meninos do Virge Amolação montar o palco – brinca Pardal. É o jeito dele, pensam.
A cena parece um hospital de campanha. Vários desfalecidos deitados no chão, vomitados. E o show nem havia começado.
- Falaí, seus poser!
Era Zé, o único contato de Jairo e Juliano na cidade.
- Cê que é um comedor de sucrilhos!; vociferam de volta, em uníssono.
Sentindo-se mais à vontade, os dois enchem-se de expectativa. A bateria eletrônica é plugada e devidamente programada. Eles não têm mais paciência com baterista; está todo mundo velho, os amigos não dão mais conta de tocarem rápido.
Sobem ao palco. Serão os primeiros a tocar, para poderem pegar estrada e voltar cedo. Todo mundo trabalha na segunda de manhãzinha. Antes do primeiro acorde, chega a polícia. Já era.
Estava cheio de adolescentes bêbados e o comissariado não perdoou. O comissário ficou horrorizado. Disse que nunca havia entrado num lugar que cheirasse tão mal. Com o calor, o cheiro de cecê vazava pelas janelas. Jairo e Juliano venderam uma demo em fita, como antigamente. Coisa do demo. Voltam felizes, apesar de tudo; missão cumprida.
Daniel Souza Luz é jornalista e revisor
Foto que tirei do Infects Humanity no parque Vitória Régia, em Bauru/SP, em meados de 1999. Minha inspiração para este conto foram mais os shows que vi na primeira década do século 21, mas também não me esqueço do calor do interior paulista nestas ocasiões.

Este conto foi publicado no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) no dia 20 de outubro de 2018. É uma versão levemente reescrita do meu conto Os Verdadeiros Guerreiros da Verdade do Verdadeiro Metal, publicado aqui no blog em 26 de abril de 2015. O novo título é uma homenagem ao grupo pós punk Chrome, que tem uma música chamada Perfumed Metal, que nada tem a ver com heavy metal. O conto é inspirado em memórias de shows underground de metal que vi em Varginha, Mogi Mirim, Bauru e em especial no primeiro endereço do bar Califórnia e no Bailão do Toninho Norato (acho que era este o nome), ambos no centro de Poços de Caldas, ao longo da década passada.

Tuesday, October 16, 2018

Sindicato dos Sonhos

O jornal é de ontem, mas o texto não é mais o mesmo. Havia sido alterado. Como? Não havia jeito, é papel, não há como aparecer um “atualizado às 18:48”, por exemplo. No entanto, o acróstico desabonador não consta mais na matéria.
É que as letras na verdade são pessoas. Elas haviam sido substituídas por jornalistas mais novos, contratados como PJs, pois todos os sindicalizados foram mandados embora. Entretanto, os jornalistas demitidos entram no texto, diante dos meus olhos, e empurram para fora seus substitutos. Não obstante, o acróstico ainda está falho. Resta uma letra trocada. Eu a localizo. É uma menininha de vestido verde, não um adulto.
Rumo ao encontro dela, dentro da página. Ao contrário dos jornalistas mais novos, que saíram de seus postos, ela permanece no lugar. O início do parágrafo é um pequeno morro; ao me aproximar, noto que ela se torna translúcida. Espectral. Entro dentro dela. Uma voz doce ecoa na minha mente:

- Foi você que me possuiu. Você é o fantasma.

Daniel Souza Luz é jornalista e revisor

Sindicato dos Sonhos saiu no Jornal da Cidade (Poços de Caldas/MG) no dia 12 de outubro de 2018. É uma versão levemente reescrita do meu conto Dream Syndicate, publicado aqui no blog em 19 de julho de 2015. À época havia lido sobre um jornalista que ao sair da Folha de S. Paulo escreveu num obituário o acróstico "Chupa Folha". Acabei sonhando com isso, mas num contexto etéreo e confuso. Aproveitei  para escrever um pequeno conto surrealista de inspiração onírica. Esta versão que reescrevi agrada-me muito mais. O título é uma homenagem à banda angelena, referência nos anos oitenta quando se falava em paisley underground.   

O conto na versão impressa do jornal.