Sunday, December 28, 2008

Puto e com sono

Vando estava redigindo um longo romance baseado misturando o imaginário batido de mundos fantásticos de um passado idealizado da humanidade, semelhante a todos estes subprodutos que outros jogadores de RPG e viciados em Tolkien escrevem, com uma forte influência de policial noir, em especial Raymond Chandler. Não tem pé nem cabeça, mas ele está crente que está para revolucionar a história da indústria editorial.
Gordo, branquelo e com a voz pastosa de mocorongo, ele investe horas e sono nisto, crente na força de vontade que vai tirá-lo do cartório de notas e ofícios. Tem sorte de ser grandão e por isso mesmo não é tão zoado. Está demorando demais. O computador trava e é desligado com um chute na torre.
De manhã, levanta uma hora mais cedo do que cotidianamente acorda, reconecta os cabos na torre e liga o computador. O arquivo recuperado não tinha um trechinho fundamental, o último que foi digitado. Foi quando desistiu do livro e sua vida e a dos seus semelhantes melhoraram muito.

Sunday, December 21, 2008

Heroína

Safo. Ele acha que essa palavra se aplica a ele, lhe define bem, pelo o que entendeu da aula de literatura. O dicionário está na estante, à sua frente, mas não o pegou para confirmar o significado; nem sequer teve coragem de abrir as apostilas do cursinho na escrivaninha, ao seu lado. Sentado na cama, sem forças nem vontade para fazer nada além de ouvir Dead Fish e Millencollin, pensa como é sortudo e deita-se de novo, só de cueca e pedalando uma bicicleta imaginária. Agora que se afastou da marijuana tudo o que quer é emagrecer e fazer algo por Maria Joana. A coincidência de nomes desagradável pra caralho joga na cara a sua pusilanimidade durante todo o tempo de vigília e em alguns sonhos, ainda que estes sejam bons. Havia e há pouco que ele pode fazer, mas ele não faz bosta nenhuma. Na verdade, tem feito demais, ele que nunca fez nada na vida lava a louça, varre a casa, limpa os banheiros, passa a roupa, os pais admirados por ele ser tão prestativo em um momento em que eles não podem mais ter uma empregada. No entanto, preocupados por estarem gastando tanto com colégio particular e ele não estar particularmente estudioso. Procrastinação. A única outra coisa que aprendeu este ano foi esta palavra e dessa ele tinha certeza do significado. Era a exata definição do que fazia há algumas semanas, embora jamais a tenha escutado sentia-a pesar sobre a consciência. Quem ainda injetava em 2008? Só ela mesmo. Paralisado pela culpa de não ajudá-la, nem se ajudar, nem ajudar de verdade seus pais, ficou na cama esperando todas as duas discografias em MP3 se esgotarem até as duas da tarde, quando se levantou para ir à cadeia visitar pela primeira vez a menina que o salvou da virgindade e do desejo de morrer.

Sunday, October 26, 2008

Não foi dessa vez

Não consegui processar a informação na hora e ainda não absorvi bem o que aconteceu. Foi mais ou menos assim. Ela fumou um e saiu elétrica. O legal é que ela ficou ligadaça e não largada, naquele esquema de ficar rindo de tudo. Como ela nunca havia fumado antes encanou que a polícia a seguia e que a enquadraria – uma menininha daquele tamanho. Correu então para casa e achou melhor escrever o livro com o qual sempre sonhou antes que ela morresse. Porque ela ficou com a certeza de que morreria na viagem que a mãe a obrigou a fazer. No dia seguinte teria que visitar a avó no Paraná, afinal não aparecia por lá há dois anos. E elas iriam de fusquinha. Então ela escreveu o livro durante toda a noite e varou a madrugada. Eu o recebi por e-mail – ela estava preocupada de ter todo aquele trabalho e nunca ser lida. Infelizmente era uma porcaria e não tive coragem de dizer isso para ela. Quando ela chegou sã e salva – teve que ir dirigindo sem dormir, mas disse que ainda foi dirigindo bem – cheguei junto e mesmo assim, mais uma vez, ouvi um não.

Sunday, October 19, 2008

A nova estrela da MPB

O site não tinha nenhuma menção sequer a ele e dois dias já haviam se passado. Manuel apertava o botão de atualização do navegador insistentemente, sem conseguir estudar, ouvindo o início das músicas do seu próprio CD por alguns segundos enquanto aflitamente comia batatas fritas trazidas por “Nanata, a empregada mulata”. Assim ele a chamava de brincadeira quando ela lhe fazia algum agrado. Correu no banheiro, lavou as mãos, pegou o livro de geografia e tentou decorar como seria o relevo da Ásia, seus desertos, pradarias e as cordilheiras irrompendo à força de movimentos tectônicos ao sul e leste. Dois minutos depois atualizou mais uma vez a página e lá estava a foto na seção de notícias. Seu sobrenome estava errado. Putaço, pediu para o seu pai ligar para o dono do site. Além de corrigir o erro, que também mandasse embora o jornalista responsável, de preferência.
Trilha sonora sugerida para a leitura deste conto: Porque Não, Replicantes.

Sunday, October 12, 2008

Hoje à tarde

Escuto meu nome, como se uma velhinha que estivesse sendo estrangulada gritasse por mim desesperadamente, com o que resta de suas forças. Apesar da chuva e do vento frio que empurra as gotas contra minha cara e meu quarto, abro a janela e me deparo com ela, segurando uma bicicleta na mão e ainda insistindo em tocar o interfone quebrado, ao mesmo tempo em que me chama mais uma vez, sem notar que abri a janela logo à sua frente. Peço que espere, desço as escadas correndo e abro a porta e corro até o portão. A chuva fina incomodava relativamente pouco, mas a ventania gelada lembrou-me do sentimento irracional que nutria por aquela menina, afinal se fosse qualquer outra pessoa teria pegado uma blusa antes. É, normalmente sou egoísta, todos adoram jogar isso na minha cara. Mas ela não sabe disso.

Sunday, October 05, 2008

É...

O monitor engordurado e empoeirado lhe inspirava asco e torpor, o teclado em estado semelhante não o ajudava a se concentrar, tampouco. Foi assim que, dominado pela modorra, Jairo viu-se dispensado em favor de um garoto com menos demandas salariais e trabalhistas.

Sunday, September 28, 2008

Não foi por querer

Era deliberado. Não tinha graça, mas ele ria e tentava contaminar todos com as gargalhadas forçadas, só que ninguém o levava a sério (mesmo que isso pareça paradoxal). Ele achava que o pessoal me protegia, pois eu não participava das brincadeiras do escritório, no entanto acho que era por isso mesmo que me respeitavam: eu não zoava ninguém.
Isso só aumentava o despeito do sujeito. Ninguém tinha que ser intocável, na visão dele. Óbvio que ele estava certo, mas não dou a mínima para isso, principalmente quando eu sou o alvo em potencial. Como ele era o saco de pancadas, era como se o grande trunfo que ele poderia alcançar seria justamente deixar de ser o foco das atenções negativas empurrando-me para o picadeiro corporativo que ele ocupava.
A voz dos “ataques preventivos” era muito engraçada. Ele falava com voz de choro, sempre; um velhinho moribundo gemendo enquanto pedia compaixão. A insegurança era patente. No entanto, em situações em que procurava encaixar alguém em algum estereótipo, sua emissão vocal era forte como a de um barítono. Com o passar do tempo, notaram o que eu havia percebido há meses. Mantive-me quieto este tempo todo, mas quando o fato tornou-se notório, passaram o dia inteiro fingido que estavam zoando um aos outros com aquela voz sem noção – e às vezes até tripudiavam uns aos outros mesmo. Ele, no entanto, foi particularmente detonado. Dizem que pegou o ônibus chorando.

Sunday, September 21, 2008

Quarta-feira, cinco e meia da manhã

- Estanque o sangramento.
- Por que você não a leva ao hospital?
- A culpa é sua. Você é o doutor aqui, e eu não quero mais sujeira para o meu lado. Era só não se meter no nosso lance.
- Mas...
- Faça um curativo nela. Você já pegou nos peitos dela antes, vamos lá. Não ouse me dizer que você não tem nada a ver com isso. Anda logo, porque hoje estou a fim de socar quem me encher o saco.
É o mesmo modo ameaçador de sempre. Desde nossa adolescência é assim. O mesmo tom de voz, a mesma frase, o mesmo fedor de álcool, e ainda mais corpulento. Sua pretensão de me fazer seu eterno serviçal vem sendo minada pela minha dedicação ao muay thai, mas resolvo obedecer. Ela me importa, sempre desejei domar aquela insensatez sexual. Quando deslizo a mão em seu pescoço, pressionando a jugular, a pele macia morna, percebo que minhas chances de ser um homem realizado foram extirpadas.
- Deixe-a como está, ela está morta, pode sangrar à vontade.
É curioso notar, machões não passam de crianças mimadas. Logo se desmancham em choro convulsivo e sussurros negatórios. Não há bom senso que explique por que ela o admirava. Ligo para o 190 e saio para dar comida ao gatinho dela, Laerte, que, espero, me ficará de companhia.

28/04/2005 – 21/05/2005

Sunday, September 14, 2008

Suicídio Passional

Traído pelo inconsciente, fiz com que ela percebesse que ainda estava preso ao passado que renegava. Na noite em que finalmente começou a rolar, após muito insistir até que ela se ligasse em mim, entrei na rua errada. Mania idiota de pegar atalhos. Era a rua da Camila. Ela perguntou por que virei no rumo oposto da rua dela. Disse que me distraí, que a conversa estava tão boa e que estava tão feliz que nem estava prestando atenção no que fazia. Acho que até colou. Meia volta e três quarteirões depois, a força do hábito fode tudo de novo. Entrei na rua da Mariana, que era vizinha na rua de cima. Ela sabia sobre nós com certeza, foi mais recente. Desta vez ela não disse nada a não ser um tchau ao descer. O beijo foi na testa. Não atendeu o celular no dia seguinte. Uma semana depois me tratou com frieza, depois voltou a me tratar bem, o que foi irritante. Nunca mais falamos sobre nós ou sobre isso. Parei de olhar na cara dela e foi o fim daquilo.

Sunday, September 07, 2008

Zine

Há três anos, recebi a última carta de um fanzineiro, pedindo para trocar zines e tal. Escrevi um e-mail, falando para ela (era uma fanzineira, na verdade) mandasse um exemplar do zine dela. Recebi, esqueci onde o coloquei e acabei lendo apenas uma entrevista. Sequer lembro quem era o entrevistado. Não devia ser nada importante. Aquela cara que mandei foi a última pois não mandei um Descanse em Paz – este era o nome do meu zine – para a menina.
Eu me mudei para outra cidade e minha família comprou uma casa, conseguindo enfim zerar o aluguel. Mesmo assim, não consigo entender como essa menina descobriu meu endereço novo. Seu nome é Valéria e só me lembrei dela devido ao zine que ela mandou e que eu desprezei. Achei que ela ia me cobrar exemplares, mas o pior foi o que li depois. Era uma carta de suicídio. Na hora desacreditei. Passaram-se alguns dias e não conseguia mais pensar no trabalho, estava assombrado por aquela folha, preenchida frente e verso com mágoas, decepções e rejeições. Era sobre pessoas que não conhecia, mas não conhecia entender como elas os conhecera, se eram namorados, amigos, irmãos, sei lá. Com aquilo na cabeça, viajei até o endereço constante na carta. Verifiquei nos meus arquivos que ela era de Goiás, mas aquela carta era de Porto Velho. Pedi uma semana de folga que estavam me devendo e fui para lá. Ao chegar, a mãe me disse que ela havia morrido fazia dois anos. Foi suicídio, mas a mãe queimou a carta original. A que eu recebi era psicografada e me foi enviada por Júlia, uma amiga de Valéria, que a enviou em seu nome e com o endereço da sua mãe. Para quê isso eu não sei, mas a viagem foi legal e ao voltar acabei o zine que havia deixado parado e enviei uma cópia para a mãe dela.
06/05/2005

Sunday, August 31, 2008

Estagnação

Emprego novo e colegas das antigas. Não dá para acreditar; é 2008 e mais uma vez retrocedeu nesse esquema arcaico. O escritório é pior do que o outro, fedendo a cigarro. A empresa mudou de nome, mas o modus operandi é o mesmo. Todos são os mesmos. E o ranço é o pior possível. Até os nomes são do tempo do onça: Praxedes, Antenor e Guilhermina. Quem na faixa dos 25 anos se chama assim? Todos trabalhando juntos. Muito bizarro.
É nojento, mas antes fazer isso com alguém do que um escroto aprontar uma dessas com ele, tenta justificar-se sem convicção. Ligam para o caboclo, como eles gostam de dizer ali, e fazem um recrutamento para uma indústria da região. Detalhe: o pessoal tem que pagar adiantado pela entrevista de emprego. Ele e seus colegas ficam uns dois meses por ali e somem. Todos eles são de cidades longínquas.
O engraçado é quem trabalha nisso, com asco de si mesmo, faz de tudo para cair fora. Mas os três viajam pelo Brasil, como empregados do boçal do Antunes (outro nome embolorado) ainda por cima, só fazendo isso. Sem criar raízes. Sem família. A Guilhermina é a pior, ô mulher sem coração. Todos eles tentaram comê-la e não conseguiram, ele não sabia deste detalhe. Eles se odeiam e saem juntos sempre, porque são tão detestáveis que ninguém mais os suporta. Solteiros encaminhando-se para tornarem-se solteirões e solteirona. Talvez ele seja pior dentre todos, não consegue evitar de pensar: foi o único que voltou a se juntar a trupe. E a fila dos otários que entregam seus parcos trocos não pára, não pára.

Sunday, August 24, 2008

Ensaio Utópico

A civilização, tal como a conhecemos, deveria ser extinta. O tráfico – seja de influência, drogas, armas ou imigrantes ilegais – seria extirpado pela raiz. Toda e qualquer autoridade seria ignorada. A propriedade seria abolida e, ato contínuo, os males decorrentes desta instituição cairiam em desuso. Esta idealização da anarquia, no entanto, depende da tomada de consciência de que é necessário que não nos reproduzíssemos. Havendo menos gente, a necessidade de competição cai por terra. Porém, isso não pode ser imposto pela traição da manipulação, ou pelo fio da espada, ou pela rajada da metralhadora. A tomada de consciência deve ser voluntária. A natureza, desgastada pela estupidez humana, não é mais uma cornucópia que nos abastecerá indefinidamente, poupando-nos da labuta, mas sem o estímulo ao consumismo basta reciclar as quinquilharias supérfluas do capitalismo em bens essenciais. Se houver menos gente, elas sobrarão, de qualquer forma. Pena que o trabalho persistirá. Preciso me ocupar com modo de destruí-lo, pois, segundo a máxima do Barão de Itararé, “quem inventou o trabalho não tinha mais o que fazer”.

Outro texto que achei perdido no meio das minhas coisas. Foi feito para uma oficina literária ministrada pela escritora Ana Miranda em maio de 2004. Pelo o que me lembro ela não gostou do texto, pois o devolveu sem fazer nenhum comentário, após elogiar um conto que produzi nesta oficina: Calor Humano, que foi publicado no jornal PapoArte. Tem um link para esse conto neste blog (na verdade o reproduzi em outro blog, o Humano Obsoleto). Já este Ensaio Utópico teve como base a proposta de se produzir um texto tendo como base um ensaio clássico – só que não me lembro qual, pois não estou achando todas as minhas anotações da oficina. Segui o conselho da Ana Miranda e cortei alguns trechos do texto, de qualquer forma. Em parte o texto é nonsense bem-humorado, mas o sentimento pessoal no qual ele é alicerçado é verdadeiro.

Sunday, August 17, 2008

Estrela

A semana caiu quando ela o encontrou. Os compromissos já firmados e os pretendidos encontros ainda pendentes de detalhes a ser resolvidos em sua cabeça espatifaram-se no lodo da vergonha, estampada em um rubor que deu força à expressão maçãs do rosto. O sábado e domingo de reencontro, no entanto, transformaram seus olhos em diques para as lágrimas. Naquela segunda de manhã, pisando leve no chão acarpetado daquele corredor sem janelas, não esperava subir a escada e ainda encontrar o marido àquela hora, olhando-a de cima, afetando uma expressão de superioridade, logo desfeita quando ele passou arqueado por ela, descendo enquanto tenta conter os soluços, sem lhe dirigir o olhar.
Após o luto guardado no apartamento depenado, já no domingo seguinte, não há nada interessante na TV para fazê-la esquecer de que está sozinha. Após passar a manhã toda procurando algo, definitivamente irritada quando com um seriado de luta logo após o almoço, ela decide que a próxima segunda de manhã seria diferente. Começou com um telefonema. O produtor concordou. A Esposa do Carola faria mais um filme. Desta vez seu rosto seria revelado ao público. Mas seus fãs ficaram na dúvida. Ela filmou de roupa, pois estava se achando gorda. Ela havia raspado os pêlos pubianos. Discutia-se se sua famosa pintinha não havia sido reproduzida em outra mulher. E os gemidos não eram mais aqueles. Mas que ela era bonita, ela era. O vídeo e o DVD venderam bem.

Achei um rascunho deste miniconto enquanto fazia uma faxina. Lembro que o escrevi no segundo semestre de 2004, após uma aula particular de alemão com a falecida Ursula Beith. Acrescentei alguns detalhes e o revisei hoje. É um predecessor da premissa do meu miniconto Nilky, embora tenha me esquecido totalmente dele nestes quase quatro anos.

Sunday, August 10, 2008

Discurso de boteco

Sobe na mesa. Bêbado, mas com o discurso decorado: "Senhoras e senhores, preciso da atenção de vocês. Existe algo tão chato quanto neguinho metido a politicamente correto: os malas do politicamente incorreto. Burros, todos eles. Os primeiros não reconhecem uma das maiores qualidades de nós, seres humanos, que é a capacidade de sermos contraditórios. Vejam bem, não estou dizendo que é legal ser hipócrita, apenas estou dizendo que se não fosse assim não suportaríamos a angústia. Não rola, esse mundo é filho da puta demais. Não, peraí, eu vou falar, tô à pampa aqui, fica de boa aí também, é rapidinho. Então, os segundos são metidos a espertinhos e para disfarçar a falta de escrúpulos e seus preconceitos escrotos dão uma de rebeldes, clamando contra a opressão do politicamente correto, enquanto na verdade querem que tudo seja a mesma merda que sempre foi. Fazer o contrário para fazer o que sempre se fez. É muita cretinice. Peraí, já vou descer. São esses estereótipos ambulantes que existem. Esses são os que acham que pensam, mas tem nojo dos livres pensadores como eu. Os outros gostam de patrulhinhas mesmo, é verdade. A palavra viado, por exemplo. Viado pra mim é sinônimo de babaca, quando eu era um ninquinho de gente eu chamava os outros de viado porque era um xingamento legal, nunca ia imaginar que viado era o que é! Podem vaiar. Não é por mal nem por preconceito. Enfim, tem alguma gostosa aía fim de levar um papo legal?" Dito isso, ganha uma latinha de cerveja cheia na testa.

Fiz este miniconto para um fanzine chamado Embrulho de Banana em julho do ano passado. Na real, é uma adaptação de um velho continho meu, pois estava sem tempo naquela época e já tinha feito dois textos especialmente para o Embrulho. Infelizmente os dois outros continhos não puderam ser aproveitados porque estouraram o limite de caracteres. Este conto deveria ter saído na edição número 14, mas pelo que eu sei o projeto ficou em estado de suspensão. O site do zine é
www.embrulhodebanana.org

Sunday, August 03, 2008

Adolescência tardia

Elas confiam em mim. Não deveriam. Fico apreensivo e erro; erros que podem se tornar tragédias. Visualizo. Olhos vazados, ossos quebrados, talvez intestinos perfurados. Mesmo quando erro e o skate zune próximo a elas, no máximo levantam-se, recuam brevemente e logo voltam para perto de mim. Tranco-as dentro de casa, mas não adianta muito, a gatinha mais nova sempre dá um jeito de escapar e ficar ao meu lado. Gosto demais dela. Tanto por preguiça minha em alertá-la novamente para sair de perto de mim, quanto por preguiça dela, que adora ficar refestelada ao sol acompanhando-me, ollies particularmente altos aterrissam estalados ao lado das pernas dela, que não se assusta com o barulho – ela nem sequer se mexe. Solto as cachorras e deixo que todas me façam companhia, bem-vinda ao fim das contas. Vou afastando-as, elas voltam, e assim vai. Deixei de ficar nervoso ao ser observado e torno-me um skatista melhor. O skate, às vezes, escapa e rasga o ar a milímetros delas. As bordas desgastadas estão parecendo facas, sem muito corte, é verdade, mas é o suficiente para talharem a minha pele mesmo quando batem de leve. Nada nunca acontece com elas, na real, mas não é que não possa acontecer. É que não quero sair de perto de casa. JFA, Minor Threat, Brujeria, Poison Idea, Mzuri Sana, Parteum, Paura, Bad Brains, Jesu, Nação Zumbi, Zeni Geva, Toasters, Alice Donut, Citizen Fish, Crass, sempre alto, um atrás do outro, no fim de tarde, sol fraco e bom, tomando suco de laranja e bem acompanhado. Lendo as velhas Chicletes com Banana em um ou outro intervalo em que a respiração fica pesada, rindo do Furio Lonza falando mal de skate. Os moleques do quarteirão ao lado aparecem com skates debaixo do braço e começamos a montar uma rampinha para subirmos no muro de casa. Nenhum namoro nunca foi tão bom assim. É que elas não confiam em mim. Deveriam. Também só as conduziria a fazermos essas fitas da hora. E outras mais ainda, claro. Só que elas teriam que confiar em mim. De qualquer forma, gosto de todas elas. Principalmente das gatinhas e das cadelas. É uma pena que não dá para mantê-las em casa.

Sunday, July 27, 2008

Encanação

Ela se chama Jocasta. As amigas devem achar muito estranho, penso enquanto ela embrulha o presente para Mariana. Deve ter uns 19 ou 20 anos, embora pareça ser um pouco mais velha do que isso. Mas só pode ser, quando é que foi? Foi em 1988. A Vera Fischer e o Felipe Camargo era o Édipo – era Felipe Camargo o nome daquele cara? Fodam-se essas merdas, eu não sou o Marcelo Mirisola... pra que perder tempo pensando nisso? Mas que nome idiota para se pôr na filha. Será que a mãe leu o Édipo Rei alguma vez? Eu também não, nem acho que vá ler. Não deveria ficar pensando mal de alguém que é paga pau de novela. Jocasta passa um laço caprichosamente no alto do pacotinho com as blusinhas e me diz, sorrindo, para eu pegar o pacote no caixa com uma mina lá. Demoro o olhar nela um pouco mais do que devia até deixá-la um pouco desconcertada. Percebo a besteira, digo obrigado e saio rápido de perto daquele balcão. Dia dos namorados de 2008. Deveria compartilhar um pouco mais, mas não rola. Ela deve estar sozinha. Não é justo, mas vai ficar assim.

Sunday, July 20, 2008

Você tem cinco minutos

Você se foi atirando-me acusações, todas rebatidas, ponto por ponto, aos gritos e por e-mails que não foram respondidos. Não a reconheço ao perceber que está adulando os esquerdistas ora no poder, os mesmos que você sempre criticou e desprezou, para desespero dos seus pais sindicalistas. Os mesmos políticos nos quais sempre votei e nos quais não pretendo renovar meu legado de confiança através do meu voto, de resto inútil, pois agora não confio em mais ninguém. Graças a você. Seus pais ao menos devem estar contentes. Pronto, não precisei mais do que cinco minutos para redigir este bilhete e pensando bem não quero tomar chá de cadeira antes de entrar na sua sala. Para que ver sua cara novamente? Para enfeitiçar-me de novo, voluntariamente. Melhor não.

OBS: Este blog ficou mais de um mês sem atualização e ninguém reparou, fazendo jus ao seu nome. Legal, faz muito sentido. A quem interessar possa: a partir de agora atualizarei aos domingos. Ando sentindo-me inspirado, gostei do conto acima e ando escrevendo contos maiores que têm me satisfeito.

Monday, June 16, 2008

No future for you, já dizia John Lydon

Nada de relevante de novo. Esta é de 2006:

NUNCA MAIS

Você nada me contou. Permanecerá deitada até que um dia a alcance. Sempre que algo assim acontecia, nos detestávamos por alguns dias. No entanto, nos odiaríamos inelutavelmente se eu soubesse desta. Deveria não me importar contigo, mas sinto muita saudade e só consigo pensar coisas boas a seu respeito. Grato pela omissão.

Monday, June 09, 2008

Memento Mori

Com o tempo se aproximando, ele sentiu-se petrificado. Não conseguia se mover. Vivendo fora do tempo, isso soa natural, mas não é. Ele ganhou dez anos de existência fugaz para compensar os cinco de olvido. Dez anos existindo apenas durante as noites e madrugadas, por algumas poucas horas. Enquanto ela sonhava. Surpreso, às vezes via-se consciente sábados ou domingos durante as tardes. Uma vez ela caiu doente e ele se encontrou às onze horas de uma terça-feira, por meros 4 minutos, enquanto ela cochilava. Ele prolongava os sonhos dela, conversando, convencendo-o que era ela real. Enquanto isso seu corpo envelhecia, mas ele era o mesmo de 15 anos antes no fluir etéreo. Finalmente ele desperta do coma. Mudo e paralisado, não consegue explicar para ela que era tudo verdade. Ele espera que ela note sua ausência no sono.

Monday, June 02, 2008

Nostalgia é um veneno, já dizia Jello Biafra

Outra semana em que não escrevi nada de relevante.
Já que falei da Ops!...
Segue abaixo link para a crônica que foi publicada.
A reproduzi originalmente em meu primeiro blog:
 
http://humanoobsoleto.blogspot.com/2006_01_01_archive.html

Monday, May 26, 2008

171

Não escrevi nada decente semana passada. Foda-se. Fiquem aí com um link para um conto que escrevi em 2004 e que foi publicado em 2005 em um fanzine eletrônico legal. O conto chama-se 171, esse eu curti reler:

http://paginas.terra.com.br/arte/zinekaos/umseteum.htm

Monday, May 12, 2008

Detestável

Todos pararam de ligar para Jonathan depois que ele agarrou bestialmente a Melina diante de todos, inclusive de Nando. E ele nem estava bêbado para se justificar. Apenas andava parecendo quase moribundo naqueles dias, mas todos já haviam se acostumado com a sua mudança. Desde que se tornou taciturno tornou-se uma companhia mais agradável, pois era uma mala do caralho, só suportado porque era namorado da Guta. Ela o abandonou e passou a andar com outra galera, deixando-o como um legado maldito. Ele passou a fazer boas piadas e a ficar na dele, mas todos só se ligaram que ele era um estorvo quando, transtornado, ele se jogou sobre ela como uma hiena que não tem a menor chance de abocanhar a presa do leão.

Ela socou tão fortemente o orangotango que dispensou Nando de qualquer outra participação, mas mesmo assim todos o tiveram que o segurar, dado o seu tamanho oriundo do uso de bombas; com exceção do Fraldinha, que empurrou Jonathan para fora do bar, pois ele ainda teve a pachorra de tentar acertar uns chutes em Nando. Quando finalmente Nando se acalmou, ele ameaçou sair correndo atrás de Jonathan e só não alcançou seu intento porque Melina o segurou pela juba, fazendo um esforço sobre-humano para manter o chumaço de cabelos na mão, enquanto todos estavam sem reação, estupefatos. O Fralda conseguiu enfiar Jonathan dentro do seu carro e deixou-o em casa após levá-lo calado. Ambos em silêncio. Jonathan apenas murmurou algo sobre amá-la desde há muito. Não houve resposta.

Era mentira. Só, deprimido e sentido que era apenas tolerado por estranhos que eram como amigos postiços, ele se apaixonou repentinamente pela única mulher que realmente o tratava bem. Brutal, intenso e explícito, assim que deveria ser, na sua acepção.

Isso foi na sexta. O final de semana inteiro passou enfurnado dentro de casa, limpando as feridas psíquicas e os cortes na boca, pois Fralda também lhe deu uns tapas na cara, de mão cheia e sem qualquer consideração. Ninguém lhe perguntou suas motivações. É como se todo o desprezo que sempre sentiram por ele finalmente tivesse uma oportunidade de aflorar. Sua única amiga de verdade, ele pensava assim, como um adolescente, era Laura. Ela mudou-se e seus telefones estavam cortados, tanto o fixo como celular. Típico dela, uma duranga. Na faculdade, no sábado de manhã, disseram que ela estava viajando.

Não conseguia conversar com os pais, joguete que era nas brigas deles. Passou o domingo jogando videogame. À noite ligou para Guta. É, estou sabendo de tudo, você não passa de um filho da puta mesmo, só tendo a auto-estima lá embaixo que nem eu tinha para te namorar. Bateu na cara. De novo, pois é.

Segunda de manhã, viu chegando pela janela o ônibus com o qual ia trabalhar. Decidiu que não ia perdê-lo. Calculou bem e jogou-se em cima dele, mas acertou o moto-taxista que vinha logo atrás. Assassino ao morrer, não teve boas manchetes e foi enterrado pelos pais, alguns poucos parentes e por Guta, isso ele gostaria de saber.

Monday, May 05, 2008

Balada errada

A única sala vazia está escura o suficiente. É a menor de todas, portanto tem a grande vantagem de possuir apenas um sofá. Enorme, é verdade. Vinte minutos antes, havia entrado lá procurando um cômodo com mais privacidade, e me deparei com três sujeitos acompanhados por uma menina. Chega, não volto mais sozinho para a casa dos sofás.

Corro para a tenda. Procuro, procuro, acho. A luz negra realça seu vestido branco. Ela joga o cabelo para os lados, braços para cima; ensaia uns passinhos de samba. Drum n’bass brasileiro. Como todo mundo que havia descoberto isto ontem, tinha os quadris duros. Muito neguinho olha para aquele balançar desengonçado e ri de soslaio. O momento é este. A lábia e o requebrado desgastados pelos anos de rotina doméstica ainda hão de funcionar. Aproximo-me, deixo solto meu lado Dudu Nobre, ela sorri.

- Ninguém mais dança assim – grita no meu ouvido.

- Na minha quebrada, ninguém perdeu a manha.

Berro isto três vezes. Vale a pena. Ela começa a rir, a cara enfiada no meu ombro, as mãos apoiadas em meu peito enquanto mexe aqueles tênis brilhantes. Minha impressão de achar uma patricinha ligada no perigo estava certa. Percebi ao apontar meu rosto naquela “pista de dança”. Os bons, velhos e maldosos instintos. O poperô volta a bombar. Ela quer ficar no meio daquele barreiro. Eu não. Ainda agüento três “músicas”. Tsi, tum, tsi, tum.

Desisto, não estou com paciência pra ficar mimando madame criada por FMs e balconistas que a vestem de Cavalera. Olho para a casa, faço menção que vou pra lá com a cabeça, e saio abrindo caminho em meio ao povinho fashion. Chegando perto da janela azul, me viro e só vejo os clubbers boiolas de sempre. Começa a amanhecer. Hora de vazar. Ao encostar-me na parede para descansar um pouco, vejo uma ruiva empurrando uns agroboys. Ela me seguiu.

A porta da frente está trancada. O único jeito de entrar agora é pelo buraco do cachorro da porta de trás. Quando ela engatinha pela portinhola, eu penso na minha adolescência, no banheiro de azulejo rosa, e me pergunto por que nunca fantasiei isto antes.

Agora só havia luzes vermelhas bem fraquinhas no corredor. Os cômodos ficaram insondáveis. O solitário sofá daquele quartinho de empregada foi ocupado. Ela ri do meu desconforto, e, tropeçando nas próprias pernas, arranca uma lanterna da bolsa. Ela gargalha ao apontar o facho para a cozinha. Só dava neguinho berrando “Apaga isto, vaca”. Têm quatro, cinco pessoas por sofá. Todos homens, acho. Subindo correndo as escadas, ela gargalha ainda mais.

Tomo a lanterna de sua mão. Aí ela tem uma idéia pior. Acende a luz de um dos quartos. Ninguém acredita que existiria uma garota tão enxerida assim. Vários casais deitados, sentados, de ponta cabeça, naqueles sofás, e... Toni em cima de um magricela com a cara enfiada em almofadas. Ambos com as calças arriadas. Meu amigo que jogava bolinha de gude comigo. Pô, Toni.

- Apaga a luz agora, o que você está olhando?! – Estou olhando ele fechar o zíper, e agora me sinto duplamente otário.

- Porra Negão, justo você, me fazer este papelão - Toni arfava indignado.

E ela ri alto, mais alto ainda enquanto Toni nos puxa pelos braços através do corredor. Ele nos joga com toda força em um banheiro. Tem um sofá! E nele caímos. Ela me pergunta quem era meu amigo. “Segurança da rave”, é tudo que posso dizer. Seus risos ficam ainda mais histéricos.

Acendo a luz, e contemplo sua boca borrada de batom, maquiagem pesada escorrendo junto ao suor. Faróis acesos. Senhorita Roubada, o que vamos fazer trancados aqui?

- Quer tomar essa pílula azulzinha? Um sorriso sacana é esboçado.

- Não preciso disso.

- Nem eu.

E engole a pílula com água da torneira. Reclama que está com gosto de ferrugem. Digo que desejo experimentar o gostinho. Fazendo-se de desentendida, sugere que eu beba direto da torneira. Deito-a com jeito, e, como diria meu avô, roubo um beijo. Apago a luz. Era a deixa.

Toni e outro segurança entram e acendem a luz. Vingança. É justo. Somos arrastados pra fora da casa. Saio atrás, e não acredito no que ouço:

- Amor, onde você estava?

- Te procurando.

Mesma roupa, mesmo cabelo. É o rapazinho magrela do Toni. Com a minha mina. Abraçando-a. Dois pombinhos. Saem de mãos dadas. Nenhum deles olha pra trás. Toni, ao meu lado, parece mais resignado.

- A vida é assim. Negão... escuta, a galera do bairro, eles não precisam saber...

- Saber do quê? Não sei de nada.

Toni já havia me economizado uns dois meses de salário. Em toda festa que ele trabalhava, eu entrava na faixa. Um tapa na minha nuca, só pra não perder o hábito, e ele sai andando com o gorila camarada dele.

A casa parece tremer, não sei se por causa devido aos graves das caixas de som gigantes ou se... esquece. Não volto lá sozinho.

Tem uns malucos jogando no campinho de futebol society. O negócio é acompanhá-los. De um jeito ou outro, eu pego uma pelada aqui.

Escrevi e reescrevi este conto várias vezes no segundo semestre de 2004 para a revista Ops!, um projeto de final de curso feito por grupo de estudantes de jornalismo, do qual uma ex-namorada fazia parte. Apesar de tê-lo editado em uma versão menor, ainda estava muito extenso e fiz outro, que foi publicado com uma ilustração do escritor Chico Lopes. A versão original deste conto só foi lida pela orientadora e algumas integrantes do grupo, permanecendo inédito.

Monday, April 28, 2008

Ficção científica a curto prazo

É gente demais se espremendo. Sam estranha a expressão, “papagaio de pirata”, a qual nunca tinha ouvido, apesar de já ter adentrado na casa dos 20 anos e de já ter visto outras recepções a candidatos. Assim que o avião com Magalhães desponta por cima dos morros, alguém que estava com seu assessor direto ao celular dispara a metralhadora verbal e todos focalizam o alvo. Assim que ele, o mais bem cotado nestas eleições, desce as escadas, começa o beija-mão que notabilizou as aparições locais do seu pai. Os repórteres atropelam os petistas, novos aliados de Magalhães, que mal chegam perto, para alívio da diretoria da Associação Comercial – todos estão constrangidos com aquele disparate. A imprensa transmite ao vivo e grava declarações de vitória que não respondem a nenhuma pergunta, sejam as sobre o escândalo das contas no Saara Ocidental, sejam as totalmente inócuas.

A estratégia tramada pelo chefe de gabinete logo se revela eficaz: o forte cheiro de bioquerosene faz todos suporem que há um vazamento de combustível. Tão logo se livra dos microfones e câmeras, beneficiado pelo empurra-empurra, Magalhães se deixa levar pela onda humana, sorriso em punho, desbragado mas em guarda. Sobe na 4x4 improvisada em trio elétrico de Tio Tião, o novo-rico da ranicultura orgânica. Sam é carregada para o carro de seu tio, que pretendia partir à frente, mas sai relativamente atrás do cortejo. Os tios gritam, se esgoelam, cortando todos e entrando na contramão perto de curvas apenas para se emparelhar ao lado do carro de Magalhães, que acena irresponsavelmente para eles sem entender nada. Quando quase batem em um velho Tucson que buzina a todos pulmões, Sam definitivamente zanga-se e diz que não adiantará nada morrer antes da hora.

Ao chegarem ao teatro, têm que esperar mais puxação de saco e uma longa palestra entremeada pelos trechos do novo documentário sobre a modernização da gerência do Estado implementada por Magalhães, que permanece estóico, apesar das piadinhas de efeito que solta para deleite da platéia, que tem a frente uma claque bem treinada na arte de forçar o riso com espontaneidade. No camarim, depois de conceder uma entrevista prazerosa para o dono – que tem seu próprio programa – de uma provedora aliada de audiovisual para celulares, Magalhães enfim ouve falar de Sam, e pede para o rapaz entrar. Para sua surpresa, a cadeira de rodas traz uma garota, Samanta. Ela começa a chorar com mais essa confusão. Carismático, ele a acalma, abre a carteira, paga a primeira parcela da sua viagem de tratamento, despede-se com um abraço caloroso e desejando o melhor para ela.

Assim que Sam embarca, seu pai começa o trabalho de convencimento nos sindicatos, uma campanha efetiva e relativamente barata para Magalhães, que definitivamente mantém petistas incômodos à margem. Sam só tem que esperar quatro meses para o pleito, com morfina à vontade. Seus tios a levaram ao consulado em Amsterdã para ela votar, mas ao contrário de toda a família, ela não votou em Magalhães. O que ele pode fazer, matá-la? Finalmente, no dia seguinte, logo após ser anunciada a vitória de Magalhães, a eutanásia é feita às pressas para evitar qualquer contra-ordem e assim ela morre longe do SUS, pelo menos isso.
18/06/2007

Saturday, April 19, 2008

História para matar o tempo

Descendo a rua abaixado para melhorar o coeficiente aerodinâmico, ele não percebeu o ônibus virando a esquina da Aníbal Machado. Morreu por nada, ele não era nenhum ciclista que entraria em competição nem tinha pressa de chegar em casa, estava apenas fazendo graça; infelizmente ninguém estava olhando. Seu primo contou a história no bairro do outro lado do rio. Ser enterrado em caixão fechado é o que deixou a molecada abismada. Ninguém nunca havia imaginado que isso acontecia. A história se tornou lendária mesmo nas gerações seguintes; vinte anos depois era usada pelos pais para tentar controlar as peraltices sobre rodas da molecada. Naquele bairro, ele era alguém, mas não batizou nenhum nome de rua.

Friday, April 18, 2008

1983

Ela me deu apenas o endereço do prédio, sem o número do apartamento. Foi de propósito, com certeza, conhecendo o pendor que ela tem para dificultar tudo. Pensava que ela morava em uma casa até chegar à porta do edifício. Disse para eu passar às duas da tarde, hora em que certamente estaria acordada. Dentro do prédio, Leave me Alone tromba comigo vindo pelo corredor. Subo a escada atravessando a muralha sonora, que vai se tornando mais densa até identificar a fonte: apartamento 7, modificado a canivete para FACT 75, com as ranhuras de “FACT ...5” cheia de lasquinhas secundando o 7 de metal. Bato na porta, mas ela só atende depois que ouço a agulha se levantado e dou uns toquinhos de leve na madeira, como se estivesse fazendo figa para espantar o azar. Nunca a tinha visto de vestido e jamais a imaginaria com uma bata florida. Ela me convida para entrar com um sorriso e um aceno de cabeça, nada mais. “Desculpe-me, acabei de acordar, vou no banheiro. Instantinho”. Olho por um tempo os desenhos em sulfites colados com fitas adesivas na parede, as poesias cabecinhas assinadas por gente que desconheço totalmente e uma história em quadrinhos obscena de ruim desenhada pelo Miltão, o que me desanima de examinar os demais rabiscos que subiam até o teto, às vezes. A varanda da república, famosa, estava ali na minha frente para finalmente conhecê-la. Não tinha nada além de uma rede e umas plantinhas. Observo as pessoas abaixo, correndo pela rua de trás, e uma faxineira limpando o fundo do prédio. Todos correndo, testas enrugadas (aposto), com a exceção de uns velhinhos barrigudos e de chinelo, na porta do bar, desinteressados de tudo e por isso mesmo desinteressantes. Estes são os bons tempos da juventude aos quais me referirei como meus, contemporâneos dos tempos azafamados, acelerando para a morte, de todo mundo ali embaixo? Se este tédio será saudoso, não quero imaginar o que se avizinha com o fim da faculdade, daqui a dois meses. A universidade já é quase uma terra estrangeira, hostil com quem sonha em ficar naquela complacência estagnante e convidativa. Claro, muito neguinho engajado no movimento estudantil acha o que procura, mas eu passo por boa-praça ao dar guarida para eles quando a arara ameaça chalrar. “Voltei”. De shortinho, camiseta e All Star sem meia, cada um de uma cor, melhor assim. Os óculos não estragam nada. Ela deve ter pegado a bata de uma das meninas como pijama. “Achei o livro na biblioteca do centro, acho que salvei o nosso trabalho”. “Que bom”, ela suspira. Não escrevemos nem 15 minutos, chá gelado à mesa. Celly estava faltando no meu currículo escolar. Marijuana na rede e Chico na vitrola, mas ela não relaxou. As meninas devem chegar mais cedo hoje. Daí para o quarto que ela divide com Regina, mas no beliche a cama dela é a de cima. Com pavor de altura, não desempenhei bem até convencê-la que a fazer de pé, no chão, novidade para ambos. O último dia bom dos bons tempos ou o primeiro do resto de nossas vidas, veremos. Em dezembro prometeram uma vaga para mim no escritório do doutor Nogueira e 1984 começou como o pesadelo previsto, duplipensando juízos de valores negativos e petições favoráveis.

Thursday, April 17, 2008

É disso que o povo gosta

O capacete rachado ao meio dava idéia da violência do impacto. Quando o levantaram, a massa encefálica fugiu para o asfalto, finalmente dissipando a fissura. O pó talvez o matasse de qualquer forma. Os demais mototaxistas que meio que fizeram um piquete no local não queriam saber disso, mesmo os que sabiam. O linchamento do caminhoneiro só não foi mais cruel porque a polícia passava por perto justamente para pegar o cafezinho na boca-de-fumo. O obeso senhor foi levado às pressas ao hospital, mas não resistiu. O cinegrafista de um dos programas policiais locais, cujo apresentador garante não ter um pingo de sensacionalismo, registrou tudo isto e também os mototaxistas cercando sua moto para tomar-lhe a câmera, quando finalmente o reforço chegou. O Supermercado do Tio César e o Açougue Coliseu gostaram das inúmeras chamadas para matéria em meio aos seus reclames.

Wednesday, April 16, 2008

Maturidade

Faz tudo para não se queixar. O único modo de conter a agressão verbal é não falar. Passou a manter-se tão calado quanto no serviço ao mesmo tempo em que evita parecer taciturno. Tem funcionado bem. Agora ele passou a ser aquele bom companheiro que também ouve, aliás, que ouve muito. Nunca houve um como ele, ao menos para ela.

É um benefício que ela colheu da experiência dele. Relacionamentos, ele aprendeu, são exatamente iguais a temporadas no presídio. Resignação e bico calado são as senhas para a sobrevivência. Claro que nem tudo é fácil assim. Esses livros de auto-ajuda para casais não funcionam a contento exatamente porque também não existem manuais de auto-ajuda para presos. Às vezes o único modo de não virar mulézinha é socar a fuça de quem está por perto, mas aí as conseqüências são imprevisíveis.

De certo, apenas que o nível de agressão tem que ser zero a maior parte do tempo. Internalizado, passa batido. Boxe e musculação mantêm a harmonia até que elas passam a ter ciúmes de luvas e aparelhos e passam a demandar mais tempo, o que fode tudo. Por enquanto não tem sido assim.

Tuesday, April 15, 2008

Tudo saiu errado

Semanas de estagnação se passaram desde que ele recebeu a boa notícia pelo telefone. E nada do que estava previsto aconteceu. A firma faliu por capricho de um dos sócios, que discutiu com o chefe da Vigilância Sanitária local devido a uma banalidade, como se não houvesse nenhum podre fedendo há quilômetros de distância.

Hostilidade bate, volta e ricocheteia em quem tem uma relação apenas transversal com o fato. Desempregado, mas com mais contas a pagar, devido à precipitação de contar como certo com o que se revelou impraticável, ele teve que apelar.

Com certeza há humilhações piores do que ligar para ela. Não era o que ele sentia no momento. A voz saia abafada e chorosa, lotada de tristeza e entregando toda a insegurança há muito arraigada no que restou da sua personalidade outrora forte. Ser rejeitado por ela também nisso seria mais insuportável, dadas às circunstâncias. No entanto, ela emprestou o dinheiro, não antes sem um incômodo “Eu te avisei”. Perguntou se ela já tinha alguém novo. Não. Não podia aparecer também. O novo apartamento dela foi benzido.

Friday, March 28, 2008

Começo do fim

Ele se achava impulsionado por tudo aquilo enquanto ela achava que ele era limitado por tantos afazeres. As saudades estavam azedando e isto não estava cheirando bem para ninguém, a não ser para ele, alheio a tudo.

Na quarta-feira, antes do café da manhã, ela abriu a janela logo que ele acordou. Mandou que ele se levantasse e olhasse. “Está vendo todas estas casas nestes bairros que sobem morro acima?”. Ele fez que sim com a cabeça. “Por mais que você consiga mudar o mundo, e pode ter certeza que você vai mudá-lo muito pouco, alguém sempre estará padecendo de ignorância, dor e humilhação dentro de alguma dessas casas. Você não vai alcançar todos”.

Tomaram café calados até que ela começasse a falar sobre sua mãe e irmãs, sobre a briga que elas tiveram entre si, para desanuviar o ambiente. Olhando pela janela, ele não se vê sem ela, mas de repente não a sente junto a si no ano que vem.

Thursday, March 27, 2008

Pior sempre fica

Tentando fixar o olhar na árvore que balançava ao vento frente à janela enquanto tinha a impressão que estava vesgueando de sono, ouviu abaixo a porta se abrir, embora não tenha escutado barulho algum no portão. Surpreso, mas compreendendo que as madrugadas passadas em claro estavam saqueando sua concentração, desceu com a garrafa vazia de cerveja na mão, precavendo-se contra o pior. Não era nada demais, apenas o Pai que estava chegando mais cedo, mas um algo pior se descortinou. Bebendo à tarde, está ficando louco?, teve que ouvir. Só estou relaxando um pouco, estou muito ansioso. O Pai saiu da oficina mais cedo para aproveitar o último fim de tarde ensolarado no horário de verão. Encalorado e bem humorado, capitulou e convidou o Filho para mais uma cerveja no quintal. Pai deitou-se na rede e Filho na espreguiçadeira, ambos apenas de bermuda. A conversa preguiçosa sobre virabrequins, carburadores do tempo do onça e clientes sobre os quais nunca ouvira falar e que não o interessavam fizeram o Filho cochilar. Um último gole sozinho e o Pai ligou o rádio. Enquanto pensava se devia abaixar para não acordar o Filho, este despertou com o anúncio dos números da Megasena. Eram exatamente os que ele sempre jogava; levantou entusiasmado. Você fez o jogo para mim, né pai? A cara esbugalhada de espanto alcoólico do Pai entregou na lata que não. Puta que pariu, não jogou? Não jogou, como não? Usei o troquinho para comprar pão. Estou trabalhando demais, demais. Custava fazer a fezinha? Você tá zoando, né? Chegou perto e gritou no ouvido do Pai. Tá zoando, né? Como que fico agora? Pior não fica. A garrafa de cerveja espatifou-se na têmpora do Pai. Chutes no peito, barriga, costas e perna. Ainda buscou a outra garrafa na mesa, dentro da sala, e tacou nele. Errou. Ele mesmo chamou a polícia e entregou-se, arrependido. O Pai não quis dar queixa. Ambos continuam trabalhando como sempre, não tocam no assunto e remoem as frustrações em bares diferentes, quase sempre discutindo futebol.

Wednesday, January 30, 2008

Don Juan de araque

O aplique sugeria que era ela vaidosa. Também era vulgar, depreendia-se pelas altas botas de camurça deixadas à mostra por uma minissaia jeans e também pelo modo de mascar chicletes com a boca aberta. A blusa jeans por cima da camisa listrada que esconde os diminutos peitos fedia aos cigarros que ela fumava compulsivamente. A voz estridente e o olhar cheio de escárnio me fazem ter certeza de que ela é solteirona, mas se acha esperta o suficiente para sentir-se poderosa ao rebolar a bunda desprovida de carnes em um show da Ivete Sangalo.

A risada estrídula é pior do que a voz. Ela fazia questão de escancará-la às gargalhadas. O cabelo tingido do vermelho típico das quarentonas era a senha para a brancura que os dominava. O rosto trigueiro e magro, com os ossos protuberantes, era cheio de manchas senis. Tinha todos os dentes, mas eram amarelos e alguns decididamente estavam em bizarros ângulos, quase obtusos. Parece-me um bom desafio: fubanga, mas com auto-estima. Talvez fosse fácil, talvez fosse procurar chifre em cabeça de cavalo, como diriam meu pai e tios.

Má idéia. Ela gosta de conversar – de falar pra caralho, na verdade. Pior: tem alguns valores com que me identifico e os quais nunca encontrei nas mulheres que tive. É membro da Sociedade Protetora dos Animais. Não dá dinheiro para igreja nenhuma. Faz questão de dar esmolas. Pior ainda: na verdade, é maldosa e fala mal de várias pessoas que não conheço, mas que ela cita sem apresentação prévia, como se também fossem da minha convivência. Para cortar a conversar descarrilada, meto-lhe um beijo. Rolou, mas não rolou o que interessava. O resto da noite foi desperdiçado com mais aluguel sobre desconhecidos e uma longa viagem para uma quebrada que eu não conhecia e na qual me perdi ao voltar para casa, só encontrando o caminho quando começava a amanhecer.

Thursday, January 17, 2008

Carpe Diem

Corria bêbado, certo de que estava livre, quando tropeçou na raiz exposta de uma das árvores que margeiam o parque. Demorou a reagir ao tombo. Conseguiu jogar os dois braços à frente, para sua própria surpresa. O que não impediu de que ainda assim batesse a cabeça no chão, dado a velocidade em que estava. Ralou os braços e ainda ganhou um galo na testa, que doía ainda mais porque havia um corte no meio.