Monday, April 25, 2016

Bauhaus, uma crônica dedicada à memória de Fernando Faro

No fim dos anos oitenta era difícil demais ter acesso às bandas sobre as quais líamos em revistas especializadas ou nas de skate. Só mesmo mandando gravar fitas em lojas, no escuro, sem saber se o som era mesmo bom ou não, economizando dinheiro da mesada ou não comendo o lanche na cantina da escola. Outras alternativas eram vídeos de skate ou o Som Pop e o Vitória, ambos programas da TV Cultura. Se não tivesse disco da banda cujo clipe passou na TV, a única oportunidade de ouvir era aquela na TV.
Quando passou o clipe de Bela Lugosi’s Dead pela primeira vez eu fiquei hipnotizado. Já tinha ouvido falar de Bauhaus, imaginava que era incrível, mas aquilo estava além das minhas expectativas. Era mesmerizante. Só o Sex Pistols tinha me proporcionado isso antes: criei expectativas demais sobre a música e quando ouvi, não só não me decepcionei, como também fiquei fascinado com algo que foi além do que esperava.
O duro é que o videocassete de casa estava quebrado. Não havia previsão de conserto, ao menos tão cedo. Não havia como gravar o vídeo, portanto. E eu queria me lembrar da música. Sabia que o programa reprisava no domingo seguinte, à meia-noite. Eu e meu irmão resolvemos ficar acordados até tarde, só para vermos de novo o vídeo. Vimos e eu decorei mentalmente a batida, os acordes, os trejeitos de Peter Murphy no palco. Mas não era o suficiente. Descobri que o programa ainda reprisava na quinta de madrugada, lá pela uma da manhã. Nesse dia fingi que dormi e assisti mais uma vez essa última reprise do programa, sozinho, com o som bem baixinho. Lembrei-me com carinho disso em 1996, quando já estudava na Unesp, no campus de Bauru, e fiquei acordado até às quatro da madrugada para gravar um clipe no Lado B, nos bons tempos da MTV: Pinch, do Acetone, uma banda também soturna, mas com o som voltado para o indie rock. Nessa época eu tinha um videocassete que funcionava. É outro clipe do qual não me esqueço: além de me lembrar até hoje do Fábio Massari, jornalista e a apresentador do Lado B, brincar com a crítica gringa, que rotulou a banda de “rock descafeinado”, gravei uma versão do vídeo diferente da que foi disponibilizada pelo guitarrista da banda na web. Nunca mais vi a versão que registrei. A fita que gravei, infelizmente, oxidou.
A crônica parava no parágrafo anterior. No entanto, enquanto a arquitetava, li que Fernando Faro morreu hoje, aos 88 anos. Coincidentemente, conheci seu trabalho por causa do Bauhaus e justamente do que mencionei aqui. Enquanto esperava a reprise para rever Bela Lugosi’s Dead, eu e meu irmão assistimos o Ensaio, programa que Faro criou, pela primeira vez. Eu achava que tinha conhecido o Bauhaus em 1989, mas então foi em 1990, quando o Ensaio foi criado, pelo que acabei de ler num obituário de Faro. O curioso é que estávamos vendo só por ver, porque o convidado do programa era Caetano Veloso, que nós detestávamos – como os típicos moleques roqueiros da época e tal. Hoje eu também gosto do trabalho de Caetano, mas não foi por causa daquele Ensaio que foi ao ar, nós gostamos mesmo é do programa. O formato de somente o artista ouvir a pergunta, mas o telespectador não, foi o que nos chamou a atenção. Faro era genial em registrar as impressões do artista enquanto a pergunta, que só podia ser imaginada por nós, era feita. E verdade seja dita, o Caetano é ótimo contador de histórias. Nós dois adoramos u, causo que ele contou do Tom Zé: o colega ficou com medo de voar, arrependeu-se quando era tarde e pediu para sair do avião, dizendo, segundo Caetano, “para essa caravela, por favor!”. Rimos à beça disso, nunca esqueci. Continuei detestando a música do Caetano Veloso e 97,9% da MPB por um bom tempo, mas essa passagem e a exibição do clipe de Um Oh! e um Ah! no Som Pop, apresentado por Kid Vinil, me fizeram ver o Ensaio com o Tom Zé (naquele mesmo ano, pelo o que descobri recentemente num DVD da Trama).
Naquela época também, creio que em 1991, li uma entrevista de Daniel Ash, guitarrista do Bauhaus, na Bizz. Ele declarou que estranhou num primeiro momento que gostassem tanto da banda em um país tão ensolarado como o Brasil, mas que pensou bem e entendeu que as pessoas se deliciam com o que os transporta para outros lugares e culturas; sendo o Bauhaus tão inglês, rescendendo a chuva e frio, nada mais natural. Também acho. Agora também percebo que, ao começar um texto falando de Bauhaus e terminar celebrando o talento de Fernando Faro, acabo remetendo a uma das melhores características do Brasil, sem nenhuma novidade aí: esse caos que liga culturas díspares.

Monday, April 18, 2016

The Ex

Estávamos no show do Toy Dolls no Projeto SP. Pogando. Uma amiga já tinha me dado um toque e fiquei de olho na roda de pogo. Pelas características consegui localizá-la: cabelo curtinho e um decote bonito. A melhor amiga dela, com quem eu saia antes, queria se livrar de mim e conseguiu. Há uma famosa história de que um skinhead bateu no Olga, vocalista e guitarrista da banda, neste show. Não vi, já havia chegado junto e puxado papo. Foi uma aventura, pois havia duas meninas com as características que me foram passadas e duas estavam sozinhas. Fui na base do instinto e acertei. Estávamos nos beijando num canto quando aconteceu a confusão, se é que aconteceu. Eu estava relativamente bêbado e pus a mão dentro do decote, nem importei com quem estava por perto. Nem ela. Na mesma noite fomos para casa e transamos. No carro, na verdade, pois não tivemos paciência de esperar chegar. Essa é para casar, pensei, ao contrário do que rezava o ditado da época. A química não era da que se aprendia na escola.
No ano seguinte, 1989, voltamos ao Projeto SP. Show do Devo. Já morávamos juntos. A amiga dela fez bem de se livrar de mim, pois também me livrei dela, e ela estava certa: tínhamos muita afinidade. Éramos de uma intimidade mediúnica. Nem conversávamos tanto, pois estávamos sempre estudando juntos, e nos entendíamos sem desconcentrarmo-nos. Não era um show para pogar, mas pogamos juntos, abraçados, diante de amigos que riram da nossa cara ou ficaram atônitos. A banda que mais gostávamos de ouvir juntos à época era o Lärm, estávamos querendo pôr isso pra fora.
No último ano juntos fomos a um show do Okotô. Antes do show, enquanto esperávamos, fomos apresentados à guitarrista e vocalista, que fez uma observação sagaz: nós parecíamos irmãos. Estávamos ficando parecidos até fisicamente. Falávamos num tom de voz parecido e até o cabelo, já que o de ambos crescia, estava ficando semelhante. Seguimos com nosso "incesto" sem complicações até o fim da década. Formamos. Os empregos chamaram-nos para outras cidades. Trabalhávamos para pagar contas de telefone e não nos vermos. Só nos encontramos uma vez na década seguinte. Doeu quando a internet apareceu, muito depois.

*Miniconto livremente baseado em fatos. Fiz ao contrário do Kerouac. Os nomes das bandas é que foram alterados, assim como houve uma transposição temporal.

Monday, April 11, 2016

Throbbing Gristle, uma crônica

Ainda éramos crianças, pensando bem.
Ela me emprestava as Bizz Letras Traduzidas. Era nelas que descobria o que significava as letras das bandas que eu gostava por ter ouvido no rádio da cidade, ou na 89 FM nas raras vezes em que passava por São Paulo ou no Som Pop, na TV Cultura. Músicas do U2, The Cure, Sugarcubes, Jesus and Mary Chain e até das Mercenárias. Impressionava-me especialmente as letras do Ian Curtis. A primeira vez em que ouvi Joy Division, em uma reportagem sobre skate vertical no Realce ou no Vitória, que eram programas de esportes radicais que passavam na TV aberta, fiquei arrepiado. Era Love Will Tear Us Apart e saberia o nome da banda e da música tempos depois. Não me esqueço de quando lia uma HQ do Ranxerox na Animal uns anos depois, em 1990 provavelmente, e vi a música citada numa história, que também mencionava o Throbbing Gristle. Sabia que era uma banda a ser descoberta. Tudo se encaixava e ainda havia muito a desvendar.
O primeiro beijo foi quando ficamos sozinhos; brincávamos de esconde-esconde. Desajeitado. Pulsante, línguas duras e os dentes batendo-se. Foi só um e bastou por um bom tempo. Outro grande descobrimento.

Monday, April 04, 2016

R.E.M. - relato de um sonho lúcido.


Estávamos num restaurante na rua Paraíba. Conversava com meu amigo João Vinicius, mas não me lembro mais o que conversávamos e se já havíamos almoçado ou não. Do terraço vejo um disco voador pousar no centro da cidade. Disco por assim dizer, era um objeto afunilado e cinza, como um míssil; no entanto, pousou sem causar estragos aparentes. O céu estava muito azul e a cidade bem iluminada, o cenário devia refletir o meio-dia.

 Levanto-me para ver se havia mais algo de diferente. No local onde o OVNI pousou levanta-se outro objeto. Ele voa na nossa direção. Sobe para bem próximo de nós. É um caminhão verde. Vejo-o passar, como se estivesse transitando numa rua que sobe o morro à nossa direita, a rua Goiás, fazendo barulho de trocar marcha e com os pneus rodando. Penso num instante na falta de lógica daquilo e chego a uma conclusão: é um sonho. Estou sonhando. Como é bom ter sonhos lúcidos.

O restaurante não existe no mundo real. No lugar dele há um consultório médico. Volto para a mesa e digo para o João que ele não é de verdade. Ele ri.

- É claro que eu sou de verdade.

- Não é. Você existe, mas não é aqui, isso é só um sonho.

- Claro que não.

Diante da incredulidade dele, dirijo-me à mesa ao lado. Havia um sujeito moreno sentado nela, almoçando sozinho. Nunca havia o visto, mas o reconheceria quando voltasse à realidade, caso não fosse um construto. Abordo-o. Como estou no controle, quero ver até onde consigo bagunçar aquele cenário, antes de acordar.

- Cara, desculpe-me dizer, mas você é apenas projeção do meu ego.

Por que será que disse essa frase? Agora percebo que isso denota que eu não estava totalmente no controle.

- Como assim?

- Você não existe de verdade. Isso é um sonho. Você é uma projeção do meu ego.

Essa frase, de novo.

- É claro que eu existo.

Desisto de tentar convencer aqueles fantasmas que logo eles irão desvanecer. Se alguém dissesse isso para mim no mundo real, por que eu levaria a sério? Resolvo ir para a rua. Desço e encontro uma senhora muito simpática, de cabelos grisalhos pendendo mais para o branco. Lembro-me melhor de suas cãs do que do seu rosto, mas não era vincado, havia poucas rugas. Ela me cumprimenta e eu retribuo. Ela está decidida a conversar comigo.

- Sabe a Renata?

- Qual?

- A que fez faculdade aqui.

- Sei sim.

Não sabia. A Renata em quem pensei fez faculdade fora. Queria encerrar a conversa.

- Ela é reencarnação de uma oligarca da cidade.

Reparo em como essa senhora está elegantemente vestida, com um colar dourando e vestido laranja – o que talvez seja démodé no mundo real, mas sei lá, isso não me interessa.

- É mesmo?

- A família dela é muito boa gente.

Uma moça de uns quarenta e poucos anos passa pela rua. Ela tem os cabelos muito negros, mais rugas do que a senhora que conversava comigo em frente à porta, um belo sorriso. Ela me dá um tchauzinho com a mão pela porta e aceno de volta.

- A senhora me dá licença – atalho e saio para a rua. Não vou atrás da moça que acenou para mim e nem espero pela resposta da senhora que conversava comigo. É o meu sonho, pô! Eu deveria estar controlando-o, pois estou consciente de que é um sonho! Mas não me irrito. Estou muito fascinado, assim que saio pela porta deparo-me com uma locadora de vídeos, onde pegava filmes para assistir no videocassete – uma locadora dos tempos do VHS. A locadora chamava-se Loc Luc e fechou ainda nos anos oitenta, no mais tardar nos primórdios dos anos noventa.

Livre de empecilhos, vejo que há um número razoável de pessoas caminhando pela rua. Grito com vontade:

- Isso é um sonho! Vocês não existem!

Mal abro o berreiro, aparece uma viatura da PM na esquina. Ressabiado, nem reparo na reação dos transeuntes. Por via das dúvidas, acho melhor parar de gritar. Porra, esses caras têm que reprimir até sonhos lúcidos?

Curioso: em vários sonhos lúcidos, desde criança, eu controlo tudo, até mesmo a construção da paisagem, conscientemente. Neste não está rolando. Mas, por outro lado, ele está durando mais do que os outros. Talvez sejam mesmo projeções do meu ego todos esses elementos que me impedem de circular livremente e modificar os cenários.

Quietamente, viro a esquina, pensando no tempo em que já estou acordado dentro do sonho e ainda não despertei. Uns dois minutos? Talvez três. Acho que nunca durou tanto. Quando penso em gritar novamente para as pessoas que elas não existem, vejo que a rua Goiás está vazia. Então ela desvanece. Foi só isso e foi tudo isso.