Monday, January 25, 2016

Devo

Devo contar a história tal como aconteceu? Devo.
Em 1989 um cara de Caldas, o Fabiano, veio estudar na minha sala. Ele era repetente e bem mais maduro do que nós. Politizado e bem informado. Era de esquerda e meu melhor amigo o imitava e o zoava impiedosamente na rua; se começava a chover, por exemplo, o Márcio dizia que “é culpa da Globo”, só para sacaneá-lo, pois era uma frase recorrente do nosso colega de Caldas. O apelido do nosso amigo caldense era Biá, hoje ele é referência em direitos humanos na área acadêmica. Um dia, numa conversa de hora de recreio, ele descobriu que eu andava de skate.
- Já viu o Thrashin’?
- O que?
- O filme sobre skate, como que você não conhece?
- Ah, eu já li sobre o filme nas revistas de skate. Nunca vi. Não tem para locar aqui. Onde você viu?
- Tem em Caldas.
- Não acredito.
Caldas era uma cidade muito menor.
- Eu pego na locadora lá e trago para você amanhã.
Ele trouxe mesmo. Mas não lembro por que cargas d’água ele não levou o filme para a escola. Combinou de se encontrar comigo à tarde na velha rodoviária de Poços de Caldas, já demolida, onde hoje há uma praça de concreto – na qual a guarda municipal não deixa os garotos andarem de skate ou bike, a despeito da falta de grama, árvores e frequentadores.
Quando rememoro esse encontro assalta-me uma sensação de estranheza. Subi por uma rampa lateral e esperei numa pequena banca, uma mera reentrância naquela rampa (talvez fosse uma escada), que nos meus sonhos é curva, sempre sonho com esse lugar. Eu acho que ela era curva, de fato. Quando caminho pela avenida João Pinheiro nos meus sonhos, a velha rodoviária ainda existe e ela se apresenta como mais real do que minhas lembranças dela. Nas minhas lembranças, quando me recordo do lugar, as cores são mais esmaecidas.
Comprei alguma das revistas de quadrinhos que colecionava: a Circo, o Geraldão, a Chiclete ou, mais provavelmente, a MAD. Comprei só uma, o dinheiro só dava para isso. Eu deixava de comer lanche na escola para comprar as revistas.
O Biá apareceu com o filme e lembro-me bem de conversarmos na parte de cima da rodoviária, num parapeito, pois olhávamos para a avenida enquanto conversávamos. Como conversávamos sobre Metallica e Guns n’ Roses no colégio, fiquei surpreso quando ele perguntou se eu conhecia Devo, pois é outro universo.
- Pô, adoro!
- Tem That’s Good no filme.
- Eu já li sobre essa música.
- Mas você nunca ouviu?
Ele ficou espantado e riu. Eu lia o nome das músicas e bandas em revistas de skate como a Overall e a Yeah! e os decorava. Além de ficar exultante quando tocou Devo no filme, houve outros dois momentos musicais no Thrashin’ do qual nunca me esqueci: o show do Red Hot Chilli Peppers, uma banda sobre a qual até então eu também só havia lido a respeito, e principalmente a clássica cena da perseguição de skates (melhor do que qualquer cena de perseguição policial com carros) na qual toca Wild in The Streets. Quando reconheci essas palavras no refrão logo lembrei de uma lista de músicas favoritas de skatistas que havia numa Overall ou Yeah! Eu sabia que era do Circle Jerks, tinha memorizado o nome! Não há palavras para descrever a emoção de descobrir um tesouro enterrado, ainda mais naquela época pré-internet, em que o acesso à cultura era tão difícil. Tomei contato com o hardcore em filmes; a primeira vez que ouvi Bad Brains foi no Depois de Horas, do Scorsese. Mas eu não sabia de quem era música, não tinha referências. Já o VI do Circle Jerks foi o terceiro disco que comprei na vida.
- Não. Mas eu adoro Satisfaction, já vi o vídeo.
Tinha visto o clipe na TV Cultura. Para mim Satisfaction era do Devo; a do Rolling Stones era uma cover ruim. Tempos depois descobri que a original era do Stones. Para mim, até hoje, continua sendo uma versão mais ou menos de uma música genial do Devo.

That's Good - Devo 

Monday, January 18, 2016

Rapeman

Atualiza o site com conteúdo antissemítico. Ele gosta de rir dessa palavra e tirar sarro de quem a usa. Costuma rebater em discussões virtuais escrevendo que “mítico é o Holocausto” e que “antisse” não existe. Usa essa piadinha na vida real também, sempre seguida de uma risadinha de mofa, tão forçada quanto sua saída de perto de quem ele escarnece, pois nunca confronta ninguém pessoalmente. Gosta de dizer que não fala mal pelas costas; prefere dar tapinhas nas costas.
Queria sair da internet, mas a discussão no whatsapp da banda, a qual deixou de acompanhar, ao desligar o celular, migrou para uma conversa inbox. Estavam-no chamando na chincha.  Ninguém quer usar a letra homofóbica que ele havia feito. “Vocês nunca se importaram com isso, por que não posso falar abertamente?”, ele questiona. “Você não é nenhum Neil Peart e esse não é um tema do death”, rebate, seco, o vocalista, pondo um ponto final a uma guerra de textão. “Então está bom, vocês não são true”, capitula. Pensa em sair da banda. Depois decide isso, afinal não o expulsaram. Mas talvez seja mais importante se dedicar a ajudar a difundir o Nazbol no país. Enfim, depois pensa direito a respeito. Está tudo sob controle.
Então finalmente sai da internet. Quer dormir. Mas o telefone toca. O fixo. Fazia tanto tempo que ninguém ligava no fixo que nem se lembrava que ainda mantinha um. Atende. É a menina de ontem, sua ex-aluna.
- Oi.
- Oi.
- Eu estava bêbada. Por que você fez isso?
- Você queria.
- Eu não lembro.
- Pois é, você não lembra. Vamos esquecer então.
- Eu lembro de acordar, eu lembro como acordei! Eu te disse que gostava da amarula? Você me embebedou. Por que você fez isso comigo?
- Você gostou.
- Não gostei nada. Nem lembro.
- Então nem sequer há algo para ser esquecido.
- Escuta aqui, eu não lemb...
- Boa noite, beijo.

Vai dormir tranquilo; todas as vezes em que fez isso nunca teve problema. Sonha com deus, o seu Deus, o que o encontrou no seminário e disse para largar tudo e aproveitar tudo. No entanto, não consegue lembrar muito bem do sonho, ao acordar. Nunca havia dormido tão bem.

Monday, January 11, 2016

Big Black

Tinha um CD do Big Black. A compilação dos EPs. Eu já era ansioso, pulava as faixas chatas. Foi assim ao longo de metade dos anos noventa, nos quais havia, num bar, a menina. Ela passou mal, breja demais, se é que não tinha algo mais na parada. Conheci a melhor amiga dela. Nós a amparamos. A melhor amiga logo a substituiu, para a alegria dos três. Numa noite em combustão a língua linda incendiou meu pau, no estacionamento da faculdade. Só assim descobri que Seth, faixa que começava com um longo discurso e que eu nunca havia escutado, era a melhor música do CD do Big Black. Gozei na música seguinte, Jump the Climb. Ela engoliu tudo. Pulamos fora do carro e ficamos conversando longe um do outro. A canícula era tão desumana que não suportávamos mais o calor de nossos corpos. Ainda assim, beijamo-nos, encostando apenas bocas, dentes, línguas e sorrisos. Perdi a garota depois de alguns meses. O CD, uns anos depois. 

Originalmente esse texto era uma prosa poética chamada Descoberta; a escrevi em 23 de novembro de 2014. Deixei-a de lado por não ficar satisfeito com o resultado, além de achar explícita demais, e reencontrá-la foi realmente uma descoberta. Hoje a retirei da estrutura de versos e a reescrevi levemente; ainda a acho um pouco pesada, mas não entendo por que não gostei imediatamente do texto.

Monday, January 04, 2016

Pop Group

O cheiro do feijão cozido impregnava o apartamento. Era uma leseira depois do almoço e da escola. Mas ninguém usava esse termo “leseira”, acho. Falávamos que estávamos morgados. Acho que ficávamos morgados o dia todo, por nossos relógios biológicos não estarem adaptados a acordar cedo. Só melhorávamos quando saímos pra rua para zoar, do meio da tarde em diante.
O rádio estava sempre ligado. Legião Urbana, Ira! e Titãs tocavam o tempo todo, eram tão populares quanto Roberto Carlos era para os nossos pais. Tinha banda chata e convencional como o Barão Vermelho também, isso lá tinha. O doido, no entanto, é que no meio da programação, às vezes, tocava Garotos Podres, Replicantes e Toy Dolls. A primeira vez que ouvi “Eu quero matá-lo/aquele porco capitalista” foi numa rádio FM normal, dessas que tocam, sei lá, Chris Brown. Tá, naquela época tocava Chris de Burgh, não era tão diferente assim também.
O interessante é que não consigo imaginar uma rádio convencional tocando O Satânico Doutor Mao e os Espiões Secretos em 2016. Até porque não é um clima otimista de redemocratização, mas sim uma vaibe sinistra em que a extrema-direita volta a pedir golpe militar na cara dura. Pior ainda, no fim dos anos oitenta não havia essa praga neopentecostal fundamentalista. À época, havia toda uma grita contra censura; hoje, se alguém tocar algo com o nome “satânico” no rádio, correrá o risco de perder o emprego. Bem, provavelmente naquela época também e talvez eu esteja edulcorando o passado, afinal a Igreja Católica conseguiu censurar o Je Vous Salue Marie já na época da besta do Sarney. Isso fez com que eu assistisse ao filme com uns quinze anos. Levou outros quinze anos para ter coragem de assistir um filme do Goddard de novo, pois assisti ao filme apenas porque ele foi proibido – e achei chato pra caralho.
Enfim, só quem viveu antes do advento da internet e não tinha grana pra comprar discos para saber como é emocionante quando se tocava uma banda da qual você gostava muito no rádio. Era a oportunidade de gravar a música, você tinha que ficar atento. E o mais importante: não ligar na rádio para pedir a música. Senão eles soltavam alguma maldita vinheta em cima da música. O importante era ligar a rádio e se ligar como um caçador de tesouros no fundo abissal. Eu não gravei Papai Noel, Velho Batuta. Tive que esperar anos para ouvir a música depois, após o começo dos anos noventa. Vocês acham que tocava só Nirvana no rádio? Mal tocava. As rádios preferiam 4 Non Blondes e outras bandas mais palatáveis, nem Pearl Jam rolava tanto assim. O poperô já tinha dominado tudo antes. Mas já sabia que seria assim, não confiava nos DJs. Eu ouvia Smiths desde os anos oitenta e lia algumas das letras.