Tuesday, August 29, 2017

Vazio de Romeu

O surgimento do Sararah – e seu provável declínio, daqui a algumas semanas, ou mesmo dias – fez com que me lembrasse de uma história constrangedora para mim. Achei que pegariam no meu pé por anos, durante a adolescência, por causa dela, mas passou batido, para a minha surpresa. Agora vou relembrá-la e eu mesmo vou queimar o meu filme. Aliás, “queimar filme” é uma expressão denunciadora de certa senilidade precoce, afinal não há mais filme algum a ser queimado, e algo extremamente queima filme.
Mas peraí. Primeiro um suspense. Não contarei a história assim, logo no começo. Vou te engambelar, leitor. Você há de concordar que é necessária alguma contextualização. O Sararah é um aplicativo saudita que permite o envio de mensagens anônimas. Segundo matéria da BBC, significa “honestidade” em árabe. Faz-se um perfil no aplicativo e as pessoas mandam as tais mensagens dizendo o que realmente pensam. Uma temeridade em tempos de redes sociais cheias de discursos de ódio, mas na prática o Sararah meio que virou um Tinder de quem vive na friendzone – traduzindo: outro aplicativo, só que de pegação, para quem já conhece quem deseja, mas não tem coragem de dizê-lo diretamente.
Creio que o Sararah já está vivendo seu ocaso, francamente. Parece ter sido um rápido modismo. No entanto, remete aos dias de correio elegante. Quando estava na sétima ou oitava série a escola em que estudava, no fim dos anos oitenta, sei lá por que, num ato lúdico, resolveu institucionalizar a prática. Na hora do recreio instalaram alto-falantes no pátio e liam os bilhetinhos anônimos que os estudantes escreviam uns para os outros. Tinha zoeira, que eles com certeza filtravam, mas também havia os recadinhos de amor. Nunca recebi nenhum. Daí forjei um para mim, mas deixei o bilhetinho cair do bolso. O bully da minha sala pegou antes que eu pudesse esboçar reação, leu em voz alta e tirou o maior sarro, na frente de todos.
Achei que pagaria caro por isso, mas logo fui esquecido, conforme expliquei no início. Minha falta de carisma não me permite nem ser alvo de bullying. Voltando a 2017, quando notei o Sararah se alastrando, fiz um perfil e logo já fui mandando recado para mim mesmo, mas eu mesmo me delatei assim que o fiz. Afinal, delação também está na moda e pode render algum bônus. Surpreendentemente, recebi alguns recadinhos legais de terceiros sim. Mas nude que é bom ninguém mandou.
Crônica publicada no Jornal da Cidade, Poços de Caldas, em 26/08/2017.

Tuesday, August 22, 2017

Futuro Negro

Na escola, nas séries iniciais, odiava quando as professoras nos ensinavam a identificar a estrutura literária de um texto. Criança ainda, me insurgia contra a noção de que o clímax textual deveria ser sempre um pouco antes do fim. Em vários escritos isto não tinha sentido; às vezes, note-se, sequer estava presente este suposto orgasmo literário. Ou, como isto é subjetivo, para mim o clímax era noutro ponto. Adulto, vejo como estava certo.
Entretanto, esta recordação retornou avassaladora quando estava quase terminando a leitura de Ganga-Zumba, livro épico de João Felício dos Santos, dias atrás. Ao decorrer das peripécias, a despeito da trama se passar no Nordeste e narrar as aventuras e desventuras de Zumbi dos Palmares, Dandara e inúmeros negros que não se submeteram à escravidão, foi solidificando-se em mim a percepção de que a narrativa mimetizava as epopeias clássicas gregas. Nunca as li, mas curiosamente as conheço desde criança, devido às adaptações cinematográficas que assisti nos anos oitenta, na Sessão da Tarde. Perto do fim do livro, reconheci uma referência explícita às odisseias gregas numa frase de um lirismo paradoxalmente rude. Num instante de enlevo, emiti um “Nossa!” inaudível, que só reconheci porque eu mesmo articulei a interjeição. Fiquei boquiaberto. Literalmente boquiaberto, o que jamais acontece, que eu saiba.
Na página seguinte está a conclusão da história. Plácida, muito plácida. Tenho que reconhecer como minhas professoras do Instituto Educacional São João da Escócia eram boas. Não sou muito chegado no conceito de politicamente correto, mas lembro vagamente até de explicações em sala de aula sobre como o adjetivo “negro” não era racista e lembro-me que estranhava a conotação negativa que davam à palavra. Incomodava-me, sobremaneira, o verbo “judiar”, que desde tenra idade me parecia preconceituoso com judeus – e é mesmo, como vim a descobrir. Jamais o uso. Mas o uso corriqueiro das palavras negro e negra como adjetivos pejorativos é estigmatizador também, a despeito das justificativas dadas em sala de aula. Não deveria ser. No futuro, ou seja, agora, a leitura do romance histórico sobre o que se passou no Quilombo dos Palmares iluminou a minha existência.

Esta crônica é uma reelaboração da minha micrônica 1927, reescrita e ampliada. O título é uma homenagem à banda brasileira de pós punk experimental Black Future. Foi publicada originalmente no Jornal da Cidade (Poços de Caldas) em 19 de agosto de 2017.
Tirei com celular a foto da edição que li do Ganga-Zumba, publicada em 1985 (o livro foi publicado primeiramente nos anos sessenta).

Tuesday, August 01, 2017

Cisnes

Era a nossa rua. Resolvemos que seria o nosso bairro.
As primeiras exibições de Warriors, os Selvagens da Noite na TV aberta foram um marco histórico para a minha geração. A maioria dos moleques, invocados ou não, queria provar aquele gosto de aventura fora-da-lei do filme. Sem armas, com senso de lealdade e resolvendo desavenças na porrada, tal como no filme. As eventuais reprises iam amealhando mais adeptos do “ganguismo” de araque, com o passar dos anos oitenta. Quem não tem senso de aventura não vai entender que isso nada tem a ver com violência gratuita, perda de valores da civilização ocidental e outras asneiras de missivista padrão de jornal – para citar um ser verdadeiramente pernicioso d’antanho, hoje transmutado nas fileiras de um exército virtual sem peias.
Então montamos a nossa gangue. Fajuta, claro. Nem lembro o nome, se é que tinha. Não tinha um Cisne, o líder do Warriors; nós todos éramos líderes, numa estrutura horizontalizada, por assim dizer. E fomos tocar o terror, a nossa maneira. Ou seja, não fazendo nada, só ficando sentados na esquina de baixo da Rua Platina, jogando conversa fora e tomando conta do nosso “território”, um conceito tão caro às gangues do filme. Nunca li o livro de Sol Yurick no qual foi baseado o antológico filme de Walter Hill, então não sei se é algo tão importante na trama original, mas imagino que sim. Para nosso bairrismo pueril, era importante. Nosso território era aquela rua.
Finalmente, um dia, nossas vítimas vieram ao nosso encontro. Uns molequinhos menores do que nós que moravam na avenida que margeia o bairro Marçal Santos, a João Pinheiro. Eles vieram jogar bola justo no nosso “território”. Nós os cercamos. Perguntamos se eles tinham pedido licença para jogar bola lá. Claro que não. Então os mandamos ir embora, pois explicamos que aquele era nosso território. Fomos ameaçadores o suficiente para eles vazarem mesmo.
No dia seguinte, depois da escola e do almoço, como de costume, nos sentamos sob a sombra da árvore da esquina. Então o molequinho mais falante apareceu. Sozinho. Desafiador. Com camisa de botão, penteado certinho e uma cara ingênua cheia de verdades. Alguém perguntou o que ele queria. Acho que fui eu.
- Eu conversei com meu pai e ele disse que não existe esse negócio de território!
Nós rimos e o mandamos picar a mula. Ele se foi, obediente. Afinal, era menor que nós e estava sozinho. Assim que ele se afastou, um de nós, creio que o Paulo Augusto Rodrigues, adiantou-se e precaveu-nos.
- Sujou, galera. Acho melhor não ficarmos na rua um tempo, para não dar rolo.

Abandonamos nosso “território” umas semanas e não tocamos mais no assunto quando o reocupamos, sem discutirmos com mais ninguém. O menino não voltou lá com o pai dele. Não teve problema nenhum. Nós éramos mais bundas-moles do que Os Órfãos, a pior gangue do filme.

Crônica originalmente publicada no Jornal da Cidade de 27 de maio de 2017, em Poços de Caldas. É baseado no meu texto Swans, o qual reescrevi e revisei.

Still do filme Warriors, os Selvagens da Noite (1979), dirigido por Walter Hill.

Legião

Exorcista e Poltergeist. Pô, era sacanagem. Falaram para eu não assistir, mas não me metia medo. Sexta-Feira 13 tirava de letra. Achava que teria alguns sustos e boa.
Quando Poltergeist estreou na TV foi aquele alvoroço. Muitas chamadas na programação ao longo da semana que antecedeu à exibição provocaram um frisson na moçada. Era um filme contemporâneo, ainda estávamos nos anos oitenta. Ah, pra quê? Mal vi o começo e já fiquei meio arrepiado com a expectativa que criei. Desliguei a TV e desisti. Uma meia hora depois me enchi de coragem. Quando religuei, vi a cena dos trovões. Desliguei de novo e naquela época não havia controle remoto assim fácil, ainda bem, pois não vi a tal cena da TV com chuviscos. Só fiquei sabendo anos depois. Naquela tensão, discutindo com a babá, a driblei e liguei de novo numa cena horrenda – ou ao menos me parecia terrível, afinal era criança. Assustado, desliguei DE NOVO e acabei humilhado pelos risinhos de mofa da moça. A cena que me apavorou deve ser algo risível hoje até para criancinhas; os efeitos especiais provavelmente ficaram muito datados. Mas para mim não era e fiquei dormindo mal por semanas. O pior era quando trovejava.
E o Exorcista então? Vi por menos tempo ainda. Até hoje, tenho a impressão que é um filme muito tenso. O bizarro é que vi as duas continuações pouco tempo depois e achei ambas bestas. Mas o original, o clássico de William Friedkin com a Linda Blair, nunca vi inteiro. Hoje nem tenho mais curiosidade, mas antigamente era pelo trauma que o medo infantil me incutiu. O que não tem o menor sentido: divertia-me na mesma época não só com os Sextas-Feiras 13, mas também com uma infinidade de filmes de terror gore, como O Massacre da Serra Elétrica, A Volta Dos Mortos-Vivos, Re-Animator, A Hora do Espanto e outras preciosidades que esbanjavam carnificinas, zumbis e vampiros.
Meu problema era com demônios. Tentando racionalizar sobre isso agora, creio que é porque com vampiros, zumbis e psicopatas o problema era se meter no lugar errado numa hora imprópria. Mas os capetas pegavam qualquer um em qualquer lugar e qualquer hora, era muita maldade sem razão. Não que os outros seres tivessem alguma racionalidade, mas tinha mais ou menos um por quê. Tipo, você vacilou e esbarrou num morto-vivo. Ou vai transar justo perto do lago onde o Jason morreu, maior falta de respeito. No entanto, com demônios você estava amaldiçoado porque sim. Acho que era isso com que encanava.
 Uma conversa casual na rua redimiu meu sono naquela época. Ouvi-a por puro acaso mesmo, eu nem tinha provocado o assunto e cheguei à rodinha no meio da prosa. Um moleque um pouco mais velho, o Marcão, explicou para nós que possessões demoníacas aconteciam apenas nos Estados Unidos, podíamos até ver que não tinha filme nacional sobre isso. Ah bom! Fez todo o sentido do universo para mim. Só podia ser. Deus é brasileiro e patriota, certeza. Estava a salvo. 
Tempos depois assistia tranquilamente Uma Noite Alucinante - A Morte do Demônio, Hellraiser, O Portão e outros filmaços que faziam sucesso nas locadoras. E era um hipócrita. Quando assistimos ao Evil Dead 2 – que é divertidíssimo – de galera, meu amigo Paulo tapava os olhos nas cenas mais cabulosas e eu tirava sarro, como se fosse muito macho.

Originalmente publicado no Jornal da Cidade, Poços de Caldas, 29 de julho de 2017.

O porquê do sumiço

Não tenho publicado mais neste blog porque quebrei o pulso direito andando de skate e estava reeditando algumas crônicas no Jornal da Cidade - todas com correções, alguns títulos aportuguesados e acréscimos, em especial a crônica Cabine C, que foi totalmente reescrita -, com exceção da crônica "Conta Comigo, Rullyan", que foi escrita antes do acidente e foi mandada exclusivamente para o jornal. Desde o final de semana passado, agora que a fisioterapia já fez meu quadro evoluir consideravelmente, comecei a mandar crônicas totalmente inéditas para o jornal. Todas as crônicas que foram publicadas lá, focando em especial a minha infância e adolescência (com uma única exceção, a Stiff Little Fingers), podem ser encontradas neste link: http://www.jornaldacidade1.com.br/tag/daniel-souza-luz/